Daqui a menos de um ano os argentinos voltarão às urnas para definir quem será o próximo presidente, em mais um pleito que caminha para girar em torno da figura de Cristina Kirchner. Ainda que pareça distante, a corrida já inicia após a virada do ano, quando começam as negociações partidárias. Segundo analistas, a poucas semanas de 2023, tudo dependerá de dois fatores: a melhora - ou piora - econômica e a influência de Cristina Kirchner dentro do peronismo.
O cenário para 2023 na Argentina segue incerto, até mesmo para o presidente Alberto Fernández. Embora já tenha anunciado sua intenção de concorrer à reeleição, não se sabe se ele terá força política nem mesmo para receber o apoio de sua coalizão partidária, o Frente de Todos, que parece preferir sua vice-presidente ou até seu “superministro” da Economia, Sergio Massa.
Seu cenário, na verdade, é bastante pessimista, com uma rejeição acima de 70%, uma inflação anual de 88%, que corrói o poder de compra dos argentinos a cada dia, e é ignorado até por sua vice. “A realidade é que ele chega bem enfraquecido”, afirma María Lourdes Puente, professora na Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina, “Ele diz que quer concorrer à reeleição, mas a verdade é que o núcleo duro da coalizão que é representado por Cristina Fernández de Kirchner não está disposto a continuar a apoiá-lo, na verdade, ela está tirando aos poucos o apoio a ele.”
Em um bastidor político que ocupou as manchetes dos jornais argentinos esta semana, Fernández chegou a celebrar o telefonema que recebeu de Cristina após ser hospitalizado em Bali, na Indonésia. Ele teria visto o gesto como um sinal de pacificação após semanas de confrontos internos e depois não trocar uma palavra com sua vice, noticiaram jornais como Clarín e La Nación.
“Já não há diálogo entre ela e Fernández, e já quase não sobra ninguém na gestão de Fernández. Foram fugindo quase todos”, aponta a professora. A hipótese levantada pelo professor de ciência política da Universidade de Buenos Aires, Facundo Galván, é de que o presidente apenas declarou intenção de se reeleger para não terminar de perder os membros de seu Gabinete. “Se ele disser que não está buscando concorrer, quem o seguirá até o último dia? Ninguém! Fica sem capacidade de governar. Então parece lógico que o diga isso mesmo quando não tem chances”, explica.
Mas mesmo dentro da oposição, a coalizão Juntos por el Cambio, se vê em uma intensa disputa entre Maurício Macri, Patricia Bullrich e Horacio Larreta. No momento, dos dois lados do espectro, é impossível prever quem serão os candidatos.
O fator econômico
De acordo com Lourdes Puente, frente a situação econômica atual da Argentina, hoje é mais interessante ser oposição do que o governo. Com o risco constante de desvalorização cada vez maior da moeda e uma pobreza crescente - com direito a flagras pela imprensa internacional de pessoas buscando comidas e roupas em lixões - qualquer partido que assumir o próximo governo terá um futuro sombrio pela frente.
Em julho, o governo apontou o nome de Sergio Massa como o novo “superministro” da Economia, depois de perder dois ministros em menos de dois meses. Ele herdou a missão de salvar uma economia que vive a mais alta inflação dos últimos 30 anos e arrisca passar dos três dígitos até o final deste ano. Após sua posse, Massa lançou um grande pacote de reforma econômica que inclui até um plano aos moldes do Plano Real de Fernando Henrique Cardoso para valorizar o peso argentino.
Com as medidas, que viralizou recentemente com cotações mais altas para o “dólar coldplay” e dólar catar”, Massa ganhou destaque nas políticas do governo, aparecendo até mais do que o presidente, o que tem contribuído para alavancar o nome do ministro como um candidato competitivo dentro do peronismo. Mas seu grupo ainda é pequeno e precisa de mais capilaridade, o que tem buscado ao se aproximar cada vez mais de Cristina.
Porém, espera-se que os impactos dessas medidas sejam sentidos apenas mais à frente, possivelmente nas vésperas das eleições gerais. E é justamente essa expectativa que tem levado a uma forte disputa interna dentro do peronismo: ter ou não eleições primárias em agosto.
Na Argentina existem as Primárias Abertas Simultâneas e Obrigatórias (Paso) em que os eleitores podem votar para definir quais serão os partidos a disputar as eleições gerais e quais serão os nomes a compor as listas. São abertas porque todos participam, sejam filiados ou não, simultâneas porque todas as coalizões fazem as suas disputas em um mesmo ciclo eleitoral e obrigatórias porque todos precisam participar.
O Paso surgiu em 2009 para tornar transparente e acessível à população a escolha dos candidatos eleitorais, mas também para resolver as disputas internas dos partidos. Porém, este ano, os kirchneristas lutam para passar um projeto de lei que eliminaria o processo, com a justificativa de economizar dinheiro.
A intenção real, apontam analistas, é em parte surfar na força política que o kirchnerismo tem dentro do peronismo hoje, tornando Alberto Fernandez ou qualquer outro que queira ser candidato muito fraco para negociar; e por outra parte tornar a disputa política dentro do Juntos por el Cambio uma batalha fragmentadora.
“Alberto Fernández quer manter as primárias, a oposição quer manter e o kirchnerismo quer eliminá-las para evitar a concorrência interna”, explica Facundo Galván. Os kirchneristas agora pressionam Fernández para que ceda, enquanto a oposição acusa o grupo de Cristina de estar mudando as regras eleitorais.
A onda Javier Milei
Além da Economia, a maior dificuldade dentro da política argentina hoje é o surgimento de uma figura política tão ou mais central quanto Cristina Kirchner. Com um Fernandez apagado e impopular, há quem diga que é ela quem governa de fato. E qualquer eleição no país se centra em apoiadores e opositores de Cristina, abrindo pouco espaço para o meio-termo.
Sendo uma figura quase mística na política argentina, como apontou Lourdes Puente, ao mesmo tempo que desperta um apoio fervoroso de parte do eleitorado, Cristina carrega consigo uma grande rejeição. Com a oposição tendo falhado em surfar na onda da rejeição kirchnerista, nomes mais radicalizados começaram a ganhar espaço, entre eles: Patrícia Bullrich, presidente do partido de Macri, e principalmente Javier Milei.
Nas perguntas espontâneas das pesquisas de intenção de votos, muitos argentinos apontam o nome de Javier Milei como favorito - 23,8% segundo a última pesquisa Synopsis divulgada pelo Clarín nesta quinta-feira, 24, contra 22,3% de Cristina. Milei é um economista ultraliberal que ganhou destaque após seu partido se tornar a terceira maior força política no Parlamento nas eleições legislativas de 2021.
Mas o apoio das ruas, até o momento, não se converte em força política, e dentro do Juntos por el Cambio, sua representação é mínima. “Um número maior de intenções de voto hoje na Argentina não significa nada, porque entre o o dia das eleições, este poderá ser outro país”, afirma Galván. “Este é um país muito mutável, não nem sei quem estará mandando em agosto, ou até ao final da Copa do Mundo”.
Mas o professor reconhece que figuras como Milei podem ganhar uma força não prevista, por isso, nada está descartado para 2023. “Se houvesse algum evento político catastrófico, um colapso do sistema partidário tradicional que pode ocorrer em nossa sociedade latino-americana, ele poderia aparecer em melhor posição”.
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