Michael Kearney Jr., um organizador comunitário de Charleston, Carolina do Sul, admite que não gosta muito do histórico de Kamala Harris como promotora. Mas, depois que o presidente Joe Biden desistiu da corrida presidencial e a apoiou como sua substituta, Kearney deixou de lado suas dúvidas – e abriu sua carteira.
“Estou totalmente envolvido”, declarou Kearney, 41 anos, que disse ter enviado US$ 20 para a campanha de Harris esta semana. Nathan Gaines, de Milwaukee, um barbeiro de 43 anos e veterano do Exército, disse que estava inclinado a votar em Donald Trump – ele chama o ex-presidente de “Big T” – apesar de ter apoiado os democratas em todas as eleições desde que Barack Obama se tornou presidente.
Mas a perspectiva de Harris como principal nome da chapa o fez repensar essa mudança. Gaines agora diz que está aberto a pelo menos considerá-la. “Se Kamala se candidatar, isso mudaria a história”, disse ele. “Eu daria uma chance a ela.”
Os eleitores negros impulsionaram a candidatura de Biden em 2020. E muitos permaneceram leais a ele mesmo depois de seu péssimo desempenho no debate no mês passado. Mas, como outros americanos, as dúvidas a respeito da sua capacidade de liderar a chapa do partido estavam crescendo antes de ele abandonar a disputa no domingo.
Conforme Harris emerge como a provável candidata democrata, muitos eleitores negros estão olhando para sua escolha em novembro com renovado entusiasmo, vendo-a como uma oportunidade para derrubar barreiras históricas de longa data e eleger um candidato negro como presidente pela terceira vez em 16 anos. Mas, em entrevistas por todo o país, o seu recente entusiasmo também é temperado por novas preocupações.
Muitos eleitores negros expressaram preocupações em relação ao tipo de eleitores que Harris poderia afastar em um clima político que parece mais polarizado do que nunca. Outros enfatizaram que seu apoio a Harris não era garantido e que ela teria que conquistar seus votos. E embora ela tenha sido vice-presidente nos três anos e meio mais recentes, alguns disseram que ela ainda era desconhecida em muitos aspectos e que precisaria se apresentar de forma mais completa ao país.
O apoio dos eleitores negros aos democratas tem sido essencialmente consistente desde a era dos direitos civis. Em 2020, Biden conquistou o apoio de 92% dos eleitores negros. Mas pesquisas recentes mostraram que Biden está lutando para manter esse apoio. Em pesquisas nacionais, cerca de 15% dos eleitores negros dizem defender Trump, um aumento em relação a 2020 (de acordo com o censo de 2020, os negros representam 14,2% da população dos EUA).
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Gaines, que mora em Milwaukee, disse não ter certeza de que Harris conseguiria ganhar seu voto. Ele está mantendo a mente aberta até outubro.
“Ela tem que mostrar um pouco de força”, disse ele. “Não quero colocar minha energia em alguém que vai se esquecer de mim depois das eleições.”
Kearney, que vive em Charleston, disse que sua maior preocupação não era realmente com Harris. “Os meus receios ou eventuais preocupações que tenha não são quanto à capacidade dela de fazer campanha”, disse ele, acrescentando, “nem quanto à sua capacidade de captar doações, nem sua capacidade de lidar com Donald Trump em um debate”.
“Minha preocupação”, disse ele, “é com os brancos”. Será que um número suficiente deles, perguntou-se ele, apoiará uma mulher negra, que ele considera qualificada e competente?
Alguns americanos certamente veriam em Harris – a primeira indicada por um grande partido que seria ao mesmo tempo mulher e birracial, com herança jamaicana e indiana – uma figura transformadora e inspiradora. Mas, em um país tão dividido, alguns eleitores negros disseram duvidar que a natureza histórica da candidatura de Harris fosse uma vantagem.
Harris se tornaria a indicada com muitas das vantagens – e desvantagens – do cargo que já exerce. Sua experiência política é muito mais profunda do que durante a sua fracassada campanha presidencial em 2019, quando tinha cumprido menos de três anos do seu primeiro mandato como senadora dos EUA.
Kristy Smith, 42 anos, de Atlanta, disse que os Estados Unidos que elegeram Barack Obama em 2008 – polarizado como às vezes era, mesmo então – já não existe mais. “Acho que as coisas pioraram”, disse Kristy, que trabalha com vendas e disse que apoiaria Harris, apesar de duvidar se ela possa ser eleita.
“Este é um cenário político completamente diferente – as coisas eram mais civilizadas naquela época”, acrescentou ela. “As pessoas podiam, pelo menos ocasionalmente, superar a divisão partidária. Democratas e republicanos poderiam ser amigáveis e trabalhar juntos. Parecemos muito divididos enquanto país agora.”
Harris se tornaria a indicada com muitas das vantagens – e desvantagens – do cargo que já exerce. Sua experiência política é muito mais profunda do que durante a sua fracassada campanha presidencial em 2019, quando tinha cumprido menos de três anos do seu primeiro mandato como senadora dos EUA.
Mas muitos eleitores negros disseram que ela talvez nunca consiga satisfazer aqueles que duvidam se ela está preparada para assumir a presidência. Muitos deles também veem um indício de preconceito racial em tais questões relacionadas ao preparo dela.
“Ela está pronta? Essa é uma pergunta assustadora”, disse Olga François, 56 anos, que trabalha em uma associação de defesa da ciência em Washington. Olga disse acreditar que a candidatura de Harris é uma oportunidade para os americanos repensarem suas noções do que significa “estar pronto”. Ela planeja se voluntariar para ajudar a registrar eleitores agora que Harris está na disputa – algo que ela disse não fazer há décadas.
“Os EUA ainda tem algumas verrugas e dores históricas que não foram curadas”, disse Olga, acrescentando entender que era impossível não discutir a raça e o gênero de Harris. “Mas”, disse ela, “também acredito que seja injusto reduzi-la apenas a essas coisas. Precisamos vê-la por inteiro.”
Alguns eleitores negros disseram que ainda não sabiam muito a respeito de Harris além das linhas gerais de sua biografia na Califórnia antes de ela se tornar vice-presidente: promotora local, procuradora-geral estadual, senadora.
“Conheço um pouco da história dela, mas não tudo”, disse Samuel Gilstrap, 22 anos, de Atlanta. Gilstrap, um estudante do Instituto de Tecnologia da Geórgia (Georgia Tech), recebeu a notícia de que Harris estava concorrendo como “um alívio” porque disse acreditar que ela será uma candidata mais forte do que Biden.
Harris também terá de enfrentar dúvidas a respeito da sua campanha presidencial muito desequilibrada cinco anos atrás. No início, no verão de 2019, ela disparou para chegar entre os nomes favoritos à candidatura, mas rapidamente vacilou e, finalmente, desistiu da disputa antes que um único estado tivesse realizado uma primária ou caucus.
A história política está repleta de exemplos de candidatos presidenciais que fracassaram e derreteram na sua primeira disputa e regressaram nas eleições seguintes. O principal deles é Biden, cuja primeira candidatura à presidência, em 1988, foi desastrosa.
Em sua primeira campanha presidencial, a popularidade de Harris entre os eleitores negros aumentou cedo e ultrapassou seu apoio entre os eleitores brancos. Mas esse embalo não durou. E entre os eleitores negros, ela logo ficou muito atrás de candidatos democratas como os senadores Bernie Sanders e Elizabeth Warren.
Pesquisas recentes sugerem que há alguma razão para acreditar que os eleitores brancos – especialmente aqueles sem diploma universitário – são mais céticos em relação a ela. Na pesquisa mais recente do New York Times/Siena College com eleitores registrados na Pensilvânia – o estado disputado que deu a Biden delegados suficientes no Colégio Eleitoral em 2020 – 83% dos democratas brancos que se formaram na faculdade favorecem Harris, em comparação com 69% de democratas brancos sem diploma universitário.
Em 2020, Harris foi apanhada entre críticas da esquerda, que a acusava de defender práticas draconianas de justiça criminal, e da direita, que afirmava que as suas opiniões se inclinavam demasiado para a esquerda.
Em entrevistas, os eleitores negros disseram que esses ataques permaneceram em suas mentes. Mas alguns disseram acreditar que Harris poderia se definir em seus próprios termos agora e lançar a percepção de que estava do lado errado de um sistema de justiça criminal que encarcera desproporcionalmente os negros.
“Acho que parte da publicidade negativa que ela recebe por causa de sua época como procuradora-geral é exagerada”, disse Antoine Marshall, 37 anos, advogado de Raleigh, Carolina do Norte, acrescentando que não achou as críticas do tipo “‘ah, ela trancafiou muitos negros’” capturam o que ela realmente conquistou quando era promotora.
Outros eleitores disseram que estavam ansiosos para ver Harris realizar algo que Biden teve dificuldade em fazer: dar a Trump um verdadeiro desafio em um debate.
“Donald Trump não vai mexer com ela como fez com Joe Biden no debate”, disse Stephen Singleton, 68 anos, ministro pastoral da Arquidiocese Católica de Detroit.
Imediatamente após a saída de Biden, os coletivos Win with Black Women e Win with Black Men realizaram sessões virtuais para mobilizar apoio a Harris, atraindo dezenas de milhares de ligações. O grupo de mulheres, uma rede de 4.000 lideranças negras femininas, arrecadou mais de US$ 1,5 milhão, de acordo com a campanha de Harris. O anfitrião do evento masculino, Roland Martin, disse nas redes sociais que a arrecadação do seu evento foi de US$ 1,3 milhão.
Gilstrap, estudante da Georgia Tech, disse que esperaria para ver se alguém desafiaria Harris pela indicação antes de decidir apoiá-la. Mas, se for ela a candidata, ele gentilmente sugeriu que ela se preparasse para o que poderia estar por vir.
“Espero que isso não inflame a divisão política que já estamos vendo”, disse Gilstrap. “Ela pode querer conversar com Obama a respeito disso. Ele teria algumas boas contribuições a fazer.” /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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