Guerra na Ucrânia ‘parece justa’ para parte da população em países aliados da Rússia

Maioria do mundo condenou Putin, mas países onde governos permaneceram neutros apoiaram tacitamente a Rússia

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Por John Eligon

THE NEW YORK TIMES - Para um cineasta independente em Hanói, Vietnã, o presidente russo, Vladimir Putin, é um “sábio líder”. No Rio de Janeiro, um ex-proprietário de restaurante afirmou estar convencido de que a Ucrânia contratou atores para se passarem por feridos de guerra. E um médico de 27 anos que vive perto de Nairóbi, no Quênia, questionou como os americanos podem se ultrajar com a invasão russa quando “por tantos anos monopolizaram a anarquia”.

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A maioria do mundo condenou Putin ruidosamente e inequivocamente por ele ter detonado uma guerra contra a Ucrânia. Mas em países onde os governos permaneceram neutros, apoiaram tacitamente a Rússia ou encorajaram a disseminação de notícias falsas ou higienizadas a respeito da guerra, cidadãos expressam uma narrativa muito mais complicada e complacente a respeito da invasão de Putin.

Entrevistas com dezenas de pessoas nesses países — do Vietnã ao Afeganistão, da África do Sul à China — revelam que, mesmo que muitos se incomodem com a guerra e a perda de vidas inocentes, alguns simpatizam com as justificativas da Rússia para sua invasão à Ucrânia e não aceitam o cenário de bem contra o mal apresentado pelos Estados Unidos e pela Europa.

Ucraniana grávida atingida em bombardeio russo contra maternidade em Mariupol não resistiu, assim como seu filho Foto: Evgeniy Maloletka/AP

Suas visões são forjadas por fatores como laços profundos e históricos de seus países com a Rússia e o histórico de intervenções e atrocidades perpetradas por alguns países ocidentais — assim como por desinformação, que em alguns lugares é disseminada pelo Estado, e censura.

Em muitos, ressoou o argumento de que o esforço da Ucrânia em aderir à Otan comprometeu a segurança da Rússia. Outros aferraram-se à nostalgia em relação à antiga União Soviética. E houve quem não conseguisse se alinhar ao Ocidente por considerá-lo hipócrita. Essas atitudes ajudaram a incentivar florescentes teorias de conspiração a respeito da guerra.

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“Os EUA invadiram o Iraque e ninguém fez o mesmo barulho que as pessoas estão fazendo contra o Putin”, afirmou Eni Aquino, de 52 anos, comentarista esportiva de Goiânia, no Centro-Oeste do Brasil.

O presidente brasileiro, Jair Bolsonaro, mantém fortes laços com Putin e viajou a Moscou pouco antes da invasão, mas assumiu uma posição de neutralidade em relação à guerra. Pesquisas mostram ampla aprovação a essa posição.

‘Atores’

Arthur Maia Caetano, de 68 anos, afirmou que, desde que fechou seu restaurante no Rio de Janeiro, por causa da pandemia, começou a usar o tempo para ler sites russos de notícias e boletins dos cerca de 70 grupos que segue no aplicativo de mensagens Telegram.

“Quando comecei a analisar a guerra cuidadosamente, vi que a primeira a morrer é a verdade”, afirmou Caetano, que acredita em alegações infundadas que circulam online, como a de que a Ucrânia teria contratado atores para fingir que eram cidadãos feridos e que o país mantém laboratórios de armas químicas financiados pelos EUA.

Na China, a mídia estatal se esforçou bastante para disseminar reportagens falsas a respeito do que está acontecendo na Ucrânia.

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Os meios de comunicação republicaram propaganda russa sem verificar sua veracidade, incluindo relatos falsos afirmando que a Ucrânia estava usando civis como escudos humanos e que o presidente Volodmir Zelenski havia deixado Kiev.

Ainda que autoridades chinesas não tenham endossado explicitamente as ações do Kremlin, elas definiram a invasão como uma decisão racional da Rússia de resistir à agressão do Ocidente, especificamente dos EUA.

Zhang Han, de 37 anos, tem consumido avidamente essa narrativa. Programador de uma empresa de tecnologia situada em Shenzhen, no sul da China, Zhang afirmou que inicialmente ficou chocado com as ações de Putin. Mas afirmou que também simpatizou com o desejo do líder russo de absorver a Ucrânia e apontou para a ambição da China de se unificar com Taiwan, a ilha autogovernada que Pequim reivindica há muito tempo como sua.

“Evidentemente, lamento a situação dos ucranianos e espero que a guerra possa acabar logo”, afirmou ele. “Mas a mentalidade de um grande país é assim.”

No Vietnã, autoridades do governo também tentaram controlar a narrativa a respeito da guerra. Dois editores, de uma revista online e de um meio de comunicação estatal, afirmaram que receberam diretrizes a respeito da cobertura da guerra que incluíram reduzir a profundidade e a frequência das reportagens e banir o termo “invasão”. Ambos pediram para não ser identificados por medo de represálias do governo.

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Vuong Quoc Hung, corretor de ações de 36 anos, de Hanói, afirmou que cresceu assistindo documentários e filmes na TV vietnamita a respeito dos heróis soviéticos do Exército Vermelho que combateram a Alemanha nazista durante a 2.ª Guerra. Isso o fez se apaixonar pela Rússia, afirmou ele.

“Então, quando a Rússia ataca a Ucrânia, pessoas como eu simpatizam com a Rússia, assumindo que isso se trata puramente de autodefesa russa”, afirmou ele.

Mortes de inocentes

Mas, para alguns, é difícil equilibrar na equação as vidas de ucranianos inocentes que estão se perdendo. Essas perdas são impossíveis de justificar, afirmaram alguns, mesmo achando que a Rússia tenha direito de atacar em autodefesa.

Apesar de Tran Trung Hieu, cineasta independente de 28 anos, de Hanói, se opor firmemente às atrocidades da guerra, ele afirmou que sua confiança em Putin não se abalou.

“Estou bastante certo de que um sábio líder como o presidente Putin deve ter pensado bem antes de mandar tropas para a Ucrânia”, afirmou Hieu, que nasceu na Rússia.

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Ele acrescentou que foi “grande fã do ‘Tio Putin’ porque ele sempre toma atitudes drásticas”.


Na Índia, a afinidade em relação à Rússia vai muito além da amizade. A Índia depende da Rússia para aproximadamente metade de seu fornecimento de armas e não criticou a Rússia de nenhuma maneira. Alguns na Índia criticam os EUA por combater guerras no exterior.

“Por onde eles passaram, deixaram um rastro de caos”, afirmou Naresh Chand, tenente-general do Exército indiano aposentado que treinou na Rússia e na Ucrânia.

Para alguns, a posição do Ocidente em relação à Ucrânia cheira a hipocrisia.

O médico Lucky Muange, que vive no Condado de Kiambu, vários quilômetros ao norte de Nairóbi, afirmou que a Otan e os países ocidentais não têm direito de difamar Putin, quando eles próprios invadiram e ocuparam nações pobres no passado — ou interfeririam para derrubar seus governos.

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“Então agora, quando é a Rússia que faz isso, eles ficam chocados?”, afirmou ele.

Desde o início da guerra, o governo sul-africano tem sido inflexível em sua posição de neutralidade e tem pedido paz repetidamente. Mas as autoridades também se esforçaram para ressaltar a antiga e duradoura amizade do país com a Rússia.


Siyabonga Ntuli, desenvolvedor de softwares de 28 anos, de Johannesburgo, afirmou que as alegações de Putin a respeito de nazistas na Ucrânia são propaganda falsa, destinada a justificar a invasão. Ainda assim, afirmou Ntuli, ele acredita que Putin teve um bom motivo para entrar em guerra contra a Ucrânia, porque a expansão da Otan ao leste ameaçou a Rússia.

“É uma pena que a Ucrânia tenha de acabar pagando a conta por isso”, afirmou ele. “Mas acho que a Otan sabia disso. Acho que eles queriam testar a determinação dele.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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