Em uma fábrica de iPhones na China central, milhares de trabalhadores entraram em confronto com policiais antidistúrbio e derrubaram barreiras. Em Guangzhou, no sul, manifestantes saíram à força de edifícios trancados para confrontar profissionais de saúde e saquear alimentos. E online, muitos chineses expressaram fúria contra as autoridades depois da morte de uma bebê de 4 meses, cujo pai afirmou que o socorro foi atrasado em razão das restrições relativas à pandemia de covid.
À medida que as rígidas regras anticovid da China entram em seu terceiro ano, cada vez mais sinais de descontentamento emergem em todo o país. Para o líder chinês, Xi Jinping, a insatisfação é um teste para o seu terceiro mandato — sem precedentes — no poder e sublinha a dúvida urgente sobre como ele será capaz de fazer a China superar a era da covid.
As raras expressões de desafio ocorridas nas últimas duas semanas são os sinais mais visíveis da frustração e o desespero ocasionados pelos lockdowns, quarentenas e testagens em massa que transformaram o cotidiano das pessoas. Essa raiva — combinada aos surtos de covid em todo o país que levaram o registro de casos a uma alta recorde — prenuncia um inverno obscuro adiante.
Anteriormente este mês, as autoridades afirmaram que ajustariam as restrições relativas à covid para limitar o impacto que as medidas têm surtido sobre a economia e os recursos do governo. A mais recente elevação no número de casos coloca em dúvida essa promessa ao mesmo tempo que muitas autoridades voltam a aplicar medidas rígidas para tentar impedir a disseminação do coronavírus.
A capacidade de Xi encontrar um meio-termo refletirá sobre o status da China enquanto centro mundial de manufatura e um dos principais impulsionadores do crescimento econômico global. Algumas multinacionais já procuram outros lugares para expandir sua produção.
“O que estamos testemunhando na Foxconn é a falência do ‘modelo China’”, afirmou o analista político Wu Qiang, com base em Pequim, referindo-se à empresa taiwanesa que opera na China central a fábrica que produz metade dos iPhones do mundo. “Trata-se do colapso da imagem da China enquanto potência manufatureira — e da relação da China com a globalização.”
Muitos estarão atentos para observar se o caos na fábrica da Foxconn se espalhará para outras partes. Mesmo antes da revolta que irrompeu na fábrica esta semana, a Apple havia alertado que um lockdown mal organizado por lá surtiria impacto sobre suas vendas. Analistas previram tempos mais longos de espera nas compras de Natal de iPhones 14 Pro e 14 Pro Max.
“Se o governo continuar com sua política de covid zero, a Foxconn será apenas o começo. Há a Foxconn hoje, mas outras fábricas encararão situações similares”, afirmou Li Qiang, fundador do Observatório Trabalhista da China, um grupo de defesa de direitos dos trabalhadores chineses, com sede em Nova York.
Os funcionários da Foxconn protestaram contra um atraso em pagamentos de bônus e a incapacidade da fábrica taiwanesa de isolar novos trabalhadores de funcionários que testaram positivo para o coronavírus. Os novos contratados foram recrutados recentemente, após milhares de funcionários deixarem a Foxconn no mês passado em razão de um surto de covid.
Entre a noite da terça-feira e a madrugada da quarta, milhares de trabalhadores entraram em confronto com policiais antidistúrbio e profissionais de saúde, de acordo com quatro funcionários que conversaram com a reportagem do Times.
Os manifestantes derrubaram barreiras, roubaram alimentos e arremessaram pedaços de cercas de metal contra as autoridades.
“Protestamos o dia inteiro, da manhã até a noite”, afirmou Han Li, um dos novos funcionários, de Zhengzhou, que se juntou ao protesto. Ele afirmou que se sentiu enganado e que os pagamentos de bônus e as condições de vida na fábrica eram diferentes do que lhe haviam prometido. Han afirmou ter visto funcionários sendo espancados e colegas feridos.
Vídeos compartilhados por trabalhadores da Foxconn com o Times mostram milhares de funcionários derrubando barreiras e arremessando cercas metálicas que as reforçavam contra policiais portando equipamentos antidistúrbio e trajando macacões de proteção sanitária. Um dos vídeos, registrado ao amanhecer, mostrou um resultado contundente: um funcionário caído na calçada, curvado, enquanto os agentes de segurança o pisoteavam e chutavam. Outro trabalhador apareceu em imagens sentado na rua, com um abrigo ensanguentado e uma toalha em volta de sua cabeça.
Em um comunicado, a Foxconn atribuiu os atrasos nos bônus a “um erro técnico” em seu sistema de contratações. Em relação à violência, a empresa prometeu trabalhar com seus funcionários e o governo para “evitar que acidentes similares voltem a ocorrer”.
Um porta-voz da Apple disse ao Times que membros da empresa estão em Zhengzhou “analisando a situação” e trabalhando com a Foxconn “para garantir que as preocupações de seus funcionários sejam resolvidas”.
Na noite da quarta-feira, a Foxconn prometeu US$ 1,4 mil para funcionários que queiram se demitir, oferecendo-lhes transporte gratuito para suas residências.
“É só decepção”, afirmou Han na quinta-feira. “Agora só quero pegar minha indenização e ir para casa.”
De certas maneiras, as dificuldades da China são obra do próprio Xi. A China insistiu em rígidas políticas “covid zero”, destinadas a erradicar infecções pelo coronavírus, mesmo enquanto seus esforços de vacinação defasaram. Por três anos, Pequim investiu em propaganda em apoio aos controles rígidos, argumentando que essa era a única maneira de proteger vidas. O governo chinês também descreveu consequências assustadoras sobre a disseminação descontrolada do coronavírus em grande parte do restante do mundo.
Ao mesmo tempo, muitos passaram a questionar a necessidade dos lockdowns. Nesta semana, quando milhões de chineses assistiram os jogos da Copa do Mundo no Catar, eles viram multidões sem máscara torcendo por seus times favoritos. Usuários de redes sociais chinesas postaram mensagens expressando sarcasmo e inveja, comparando suas vidas clausuradas com as estridentes celebrações na TV.
Xi, um dos líderes chineses mais poderosos em décadas, tem usado censura pesada e punições severas para silenciar os críticos. Isso torna particularmente marcantes expressões públicas de descontentamento como a de Guangzhou, na semana passada, quando multidões de trabalhadores migrantes organizaram um agressivo protesto após serem confinados por mais de três semanas.
No Distrito de Haizhu, sob lockdown, lar de aproximadamente 1,8 milhão de habitantes, os trabalhadores, muitos dos quais submetidos a longas jornadas e baixos salários na indústria têxtil de Guangzhou, tomaram as ruas para protestar contra falta de alimentos. Os manifestantes derrubaram cercas e barreiras, e vídeos que circulam online mostraram outro confronto entre cidadãos e a polícia.
Conforme os casos continuam a aumentar, os recursos de prevenção e resposta do governo à pandemia — que incluem alimentos, leitos hospitalares e instalações para quarentena — escassearam em alguns lugares, forçando trabalhadores a dormir nas ruas ou, no caso de Haizhu, em um túnel, afirmaram trabalhadores.
As pessoas também têm se enfurecido com notícias de mortes causadas por atrasos em atendimentos hospitalares ocasionados pelas restrições relativas à covid. Anteriormente este mês, a morte de um menino de 3 anos na cidade de Lanzhou, após restrições para o controle do coronavírus evitarem que ele fosse levado imediatamente para um hospital, causou uma erupção de indignação e raiva, assim como um novo escrutínio a respeito dos custos da política de “covid zero”.
Um descontentamento similar emergiu online na semana passada, depois da morte de uma bebê de 4 meses cujo pai relatou no Weibo, uma rede social chinesa parecida com o Twitter, atrasos no atendimento hospitalar. Devido aos protocolos anticovid, agentes de saúde se recusaram a enviar uma ambulância, e quando finalmente uma ambulância apareceu, os paramédicos se recusaram a levar a filha dele para o hospital. No total, demorou 12 horas para ela receber socorro médico.
“Espero que os departamentos relevantes intervenham, investiguem uma série de brechas na prevenção à pandemia, inações e irresponsabilidades — e busquem justiça para nós, pessoas comuns”, escreveu o pai da bebê, Li Baoliang. No domingo, as autoridades publicaram os resultados de uma investigação sobre o incidente. Ainda que o governo tenha expressado condolências à família, a culpa da tragédia foi atribuída a indivíduos da equipe médica que, segundo o governo, tiveram um senso de responsabilidade débil.
Abaixo da reclamação online de Li, muitos comentários apontaram para os problemas ocasionados pelas políticas projetadas para proteger o público. “O que está tirando a vida das pessoas, afinal? A covid mesmo?”, questionou um dos comentários. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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