THE NEW YORK TIMES - Os trens de Tel Aviv estavam lotados numa noite do mês passado, quando Inbal Boxerman, uma mãe de 40 anos, foi impedida de embarcar por um bando masculino. Um deles disse a ela que as mulheres não podiam entrar —a área estava reservada para homens.
Boxerman ficou atordoada. Ela tentava entrar em um trem público, e a segregação de assentos é ilegal em Israel. Os homens que a pararam pareciam ser manifestantes que voltavam de um ato de apoio à coalizão governista, que inclui partidos ortodoxos e de ultradireita e pressionam por mais segregação e por um retorno a papéis de gênero mais tradicionais.
“Eu falei: ‘Sério?’”, conta Boxerman, que trabalha com marketing. “Minha amiga se aproximou e também disse: ‘Está falando sério?’ Mas eles apenas riram e disseram: ‘Esperem o próximo trem, vocês poderão viajar sentadas’. E então as portas se fecharam.”
O transporte público é a última frente de uma guerra cultural em Israel sobre a posição das mulheres numa sociedade fortemente dividida entre uma maioria secular e uma minoria —politicamente poderosa— de judeus ultraortodoxos, que desaprovam a mistura de mulheres e homens em público.
Embora a Suprema Corte tenha decidido que é ilegal forçar as mulheres a se sentarem em lugares separados em ônibus e trens, as mulheres ultraortodoxas costumam embarcar nos ônibus de seus bairros pela porta traseira e sentar-se nos bancos do fundo do veículo. Agora a prática parece estar se espalhando para outras partes do território.
Incidentes como o descrito por Boxerman receberam ampla atenção da mídia desde que o primeiro-ministro, Binyamin Netanyahu, aliou-se a partidos extremistas para formar a coalizão que governa o país, no final do ano passado.
Netanyahu fez várias concessões que incomodaram os israelenses seculares dentro desse acordo. Entre elas estão propostas para segregar o público por gênero em alguns eventos públicos, criar novos bairros residenciais exclusivos para ortodoxos, permitir que empresas se recusem a fornecer serviços baseados em crenças religiosas e expandir os poderes dos tribunais rabínicos, exclusivamente masculinos.
Expansão
Os defensores da expansão da jurisdição dos tribunais rabínicos —como Matan Kahana, um ex-ministro para assuntos religiosos que permanece no Parlamento, mas não integra a coalizão governista— argumentam que Israel, como sociedade pluralista, deveria tolerar a segregação em alguns locais para acomodar os ultraortodoxos, para quem essa separação representa um estilo de vida.
“Sou a favor dos tribunais rabínicos —eles são um símbolo da soberania israelense em nossa própria terra e de nossa conexão eterna com a lei hebraica”, disse ele no Twitter no início deste ano.
Embora algumas mulheres dentro da coalizão liderada pelo partido Likud sejam leais a essas ideias, grande parte do esforço para fortalecer os tribunais rabínicos é feita pelos dois partidos ultraortodoxos, que não permitem que mulheres concorram a cargos.
As leis de Israel não foram alteradas para refletir as concessões de Netanyahu, mas alguns temem que as mudanças já estejam chegando, às custas das mulheres. A imprensa israelense tem sido inundada por reportagens sobre incidentes considerados discriminatórios nos últimos meses.
Motoristas de ônibus no centro de Tel Aviv e no sul de Eilat se recusaram a pegar mulheres jovens porque elas usavam tops ou roupas de ginástica. No mês passado, homens ultraortodoxos na cidade religiosa de Bnei Brak pararam um ônibus público e bloquearam a rua porque uma mulher estava na direção.
O serviço nacional de emergência médica e de desastres de Israel também está pela primeira vez segregando homens e mulheres na parte acadêmica do treinamento paramédico, informou a mídia local na semana passada. Um porta-voz da organização, Nadav Matzner, disse que muitos alunos são religiosos e enfatizou que todo o treinamento clínico será realizado em ambientes mistos. Além disso, os paramédicos continuarão a ser orientados a cuidar de todos.
Segregação
Na última década, a segregação se infiltrou em muitas áreas. As pequenas faculdades públicas que matriculam estudantes ultraortodoxos em busca de diplomas de graduação dividem as turmas entre masculinas e femininas. Alguns cursos de educação para motoristas e treinamento de empregos do governo têm sessões separadas por gênero, e algumas bibliotecas públicas oferecem horários separados para homens e mulheres.
Agora, as exigências dos partidos ultraortodoxos e de ultradireita da coalizão poderão transformar radicalmente a face de um país onde direitos iguais para as mulheres não só são garantidos pela Declaração de Independência de 1948 como foram reforçados em várias decisões importantes da Suprema Corte.
“O que está acontecendo aqui não é uma questão de esquerda e direita. Eles estão mudando as regras do jogo, e isso terá um efeito dramático para as mulheres”, diz Moran Zer Katzenstein, que comanda tanto o grupo pró-democracia Bonot Alternativa quanto uma entidade apartidária que funciona como um guarda-chuva para organizações femininas. “Nossos direitos serão prejudicados antes.”
Integrantes da Bonot Alternativa aparecem nos protestos antigovernamentais semanais vestidos com túnicas escarlates e toucas brancas que imitam as mulheres desprivilegiadas forçadas a ter filhos da série de TV distópica baseado no livro de Margaret Atwood “O Conto da Aia”.
Em um relatório global sobre desigualdade de gênero divulgado pelo Fórum Econômico Mundial em junho, que classifica 146 países, Israel caiu para o 83º lugar, do 60º lugar no ano passado. Embora o relatório tenha classificado Israel em primeiro lugar em termos de educação das mulheres, a classificação do país para o empoderamento político das mulheres caiu de 61º no ano passado para 96º, logo abaixo do Paquistão.
Há menos mulheres no governo do que há um ano. Dois dos partidos ultraortodoxos da coalizão governista efetivamente proíbem as mulheres de concorrer a cargos públicos, ignorando uma decisão da Suprema Corte de 2019 que dizia que elas deveriam acabar com a prática.
Um dos primeiros projetos de lei apresentados pelo partido ultraortodoxo Shas da coalizão propunha a prisão de mulheres por seis meses se elas visitassem o local sagrado do Muro das Lamentações em Jerusalém com roupas “inadequadas” ou imodestas. Embora o projeto tenha causado tanta indignação que foi abandonado, a coalizão tomou outras medidas que preocupam as mulheres.
Ele proibiu o uso de substantivos femininos em anúncios de empregos no serviço público, embora o hebraico tenha formas masculinas e femininas distintas para cargos. E embora o governo tenha aprovado uma lei exigindo monitoramento eletrônico de homens sujeitos a ordens de restrição por causa de violência doméstica, os críticos dizem que a lei foi significativamente atenuada para que se aplique apenas a homens considerados uma ameaça imediata ou com antecedentes criminais.
Defensores dos direitos das mulheres também estão preocupados com os esforços do governo para enfraquecer a Suprema Corte, que endossou a igualdade de direitos das mulheres em várias áreas, por exemplo ao facilitar processar empregadores por salários desiguais, revogar a proibição do Exército para contratar pilotos de caça mulheres e determinar que a segregação por gênero em trens e ônibus públicos é ilegal.
Ainda assim, o tribunal permitiu a segregação em salas de aula de graduação, concessão feita para incentivar homens ultraortodoxos a obter educação e ingressar na força de trabalho, pondera a professora e jurista Yofi Tirosh, vice-reitora da Faculdade de Direito da Universidade de Tel Aviv. Muitos homens ultraortodoxos se dedicam a estudos religiosos em tempo integral e não trabalham ou servem no Exército.
Tirosh diz que as mulheres poderiam perder oportunidades à medida que mais recursos financeiros fossem investidos em programas para homens, alunas fossem afastadas de empregos normalmente vistos como masculinos e a segregação se estendesse a ambientes de trabalho e locais públicos.
Saiba mais
Quando mulheres e homens se sentam separadamente em shows e concertos financiados com dinheiro público para atender aos desejos dos ultraortodoxos, diz ela, “as mulheres ficam no fundo”.
A mais recente ameaça ao status das mulheres é uma lei proposta pela coalizão para expandir os poderes dos tribunais rabínicos, que baseiam suas decisões na lei religiosa judaica.
O tribunal rabínico ortodoxo já tem jurisdição sobre o divórcio para todos os judeus em Israel e dá apenas aos homens o poder de dissolver formalmente um casamento. As mudanças propostas também concederiam a eles possível jurisdição sobre os aspectos econômicos de um divórcio e permitiriam que atuassem como árbitros em questões civis, como disputas trabalhistas ou contratuais, desde que as partes consentissem. Os críticos do projeto de lei dizem que o consentimento nem sempre é dado livremente.
Se os legisladores aprovarem o projeto de lei, que já passou por uma audiência preliminar, ele reverterá uma decisão da Suprema Corte de 2006 que restringiu os poderes dos tribunais rabínicos para arbitrar questões civis.
Uma proposta mais recente permitiria que os tribunais rabínicos determinassem a pensão alimentícia em algumas circunstâncias, de acordo com a professora Ruth Halperin-Kaddari, diretora fundadora do Rackman Center for the Advancement of the Status of Women na Bar Ilan University.
“É importante enfatizar: os tribunais rabínicos têm apenas juízes do sexo masculino”, disse a professora Halperin-Kaddari. “Não há outro país no norte global, entre Estados considerados democracias liberais, que dê poderes formais a um sistema totalmente, completamente masculino e que exclui as mulheres. Em vez de abolir isso, Israel está indo na direção oposta e expandindo seu poder”.
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