Em Israel, o pior para a democracia ainda está por vir; leia a análise

Do ponto de vista do governo Netanyahu, enfraquecer a já combalida democracia israelense não é um fim em si, é um meio para alcançar seus objetivos

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Por Adam Shinar

THE NEW YORK TIMES — Muitos israelenses se preparam para o que virá a seguir. O descontentamento gerado pela lei que elimina o poder da Suprema Corte de revisar e reverter decisões do governo e seus ministérios sob o argumento de irrazoabilidade e a mudança constitucional que a medida conforma desencadearam enormes protestos por sete meses. Pouco antes da aprovação da legislação, na segunda-feira, mais de 1,1 mil reservistas da Força Aérea, entre eles mais de 400 pilotos, declararam que se recusariam a se apresentar ao serviço se a reforma fosse aprovada. Após a votação, dezenas de milhares de manifestantes, em um grito coletivo de fúria, bloquearam estradas e interditaram cruzamentos importantes, enfrentando tropas policiais que tentaram dispersá-los com cavalaria, canhões d’água e força bruta. Dezenas foram presos.

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Assim que a legislação foi aprovada na Knesset por 64 a zero — todos os 56 parlamentares de oposição deixaram o recinto em boicote à votação — petições em desafio foram rapidamente submetidas à Suprema Corte na esperança de que o tribunal derrube a nova lei. Essa esperança, contudo, pode ser frustrada.

Todos os componentes propostos pela reforma — um esforço concertado para intensificar o poder do Executivo — são emendas às Leis Básicas, o conjunto de legislações que funcionam como uma Constituição de facto de Israel. A Suprema Corte derrubar uma emenda à Lei Básica equivale a aceitar a ideia de uma “emenda constitucional inconstitucional”: teoricamente possível, mas incrivelmente improvável. É verdade que o tribunal já se declarou competente para invalidar emendas às Leis Básicas, mas apenas em campos muito específicos, como indeferir a definição da identidade de Israel como Estado judaico e democrático.

Manifestações contra a reforma do judiciário em Israel levaram milhares de pessoas para as ruas do país  Foto: Oded Bality / AP

A nova lei certamente danifica a democracia de Israel — por exemplo, abre portas para a corrupção — mas a questão sobre a Suprema Corte determinar ou não que a legislação que nega a natureza democrática do Estado vigore segue aberta.

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Um cenário mais plausível é a Suprema Corte esperar para ver quais outros componentes da reforma proposta serão aprovados, especialmente os relativos a nomeações de magistrados, enfraquecendo a independência de conselhos jurídicos dentro dos ministérios do Executivo. Se isso acontecer, contrapesos críticos dentro do governo serão corroídos e a supervisão judicial em Israel será efetivamente encerrada. Isso dará ao governo de Binyamin Netanyahu controle não apenas sobre o Parlamento, mas também sobre o Judiciário e o serviço civil independente, eviscerando a já frágil separação entre poderes. Nesse caso, a Suprema Corte terá uma tarefa mais fácil em derrubar o pacote inteiro.

Mas “esperar para ver” engendra riscos significativos. Três dos ministros mais progressistas do tribunal, incluindo a presidente, estão prestes a se aposentar (dois em outubro deste ano, o seguinte em outubro de 2024). Se os magistrados forem substituídos por ministros mais conservadores — um desfecho provável com o atual governo é quase certo se Netanyahu for bem-sucedido em politizar o mecanismo de nomeação — as chances de derrubar o plano maior diminuem consideravelmente, permitindo que a reforma constitucional ocorra e transformando Israel em um país em que o Executivo governará com poucas restrições ao seu poder.

O primeiro-ministro de Israel, Binyamin Netanyahu, conversa com membros do parlamento israelense antes da votação de uma das emendas da reforma do judiciário israelense  Foto: Maya Alleruzzo / AP

Componentes da reforma

Nos dias em torno da votação produziu-se muitas análises a respeito das especificidades da legislação, incluindo o fim da “irrazoabilidade” enquanto argumento para reverter decisões do governo. Essa discussão é equivocada. A artigo que abole o princípio da razoabilidade não pode ser desatrelado do pacote legislativo como um todo, que, em geral, extinguirá a democracia israelense que conhecemos. É evidente que o governo pretende aprovar todos os componentes da reforma.

Membros proeminentes do governo Netanyahu já afirmaram isso, anunciando que o mecanismo de nomeação de magistrados será o próximo item da pauta quando a Knesset retornar do recesso, em outubro. Ainda que Netanyahu tenha afirmado que buscará alcançar acordos com a oposição nesse meio-tempo, tentativas anteriores de consenso fracassaram. Perspectivas para concessões mútuas são rarefeitas, particularmente em razão da pressão interna dos membros de sua coalizão para empurrar esta agenda.

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Do ponto de vista do governo Netanyahu, enfraquecer a já combalida democracia israelense não é um fim em si, é um meio para alcançar seus objetivos. Uma vez que os contrapesos ao poder do Executivo forem removidos, a coalizão de governo de Netanyahu poderá avançar com sua agenda substantiva: fortalecer o controle sobre a Cisjordânia, erguer mais assentamentos coloniais no território palestino e, eventualmente, anexá-lo; aumentar o apoio financeiro aos judeus ultraortodoxos e assegurar sua dispensa do serviço militar; cercear avanços da comunidade LGBT+; reverter direitos das mulheres, especialmente relativos a segregação de gênero por orientação religiosa, casamento e divórcio; e favorecer direitos e interesses de judeus sobre outros grupos, dentro Israel e nos territórios ocupados, em detrimento de palestinos, árabes-israelenses e outras minorias.

Colonos israelenses reagem durante um protesto de ativistas de esquerda contra os planos do governo do primeiro-ministro Benjamin Netanyahu de reformar o sistema judicial, no assentamento de Kdumim, na Cisjordânia Foto: Maya Alleruzzo/AP

Não se trata de mera especulação. Acordos firmados dentro da coalizão são explícitos a respeito desses objetivos, e leis que refletem essa agenda já foram introduzidas. Os exemplos são numerosos, portanto considerem os seguintes acontecimentos das semanas recentes: uma proposta para expansão do uso de comitês de admissão em cidades pequenas, que de fato proíbem árabes e cidadãos de outras minorias de viver em municipalidades predominantemente judaicas; uma lei que autorizaria o ministro da Segurança Nacional, Itamar Ben-Gvir, um político de extrema direita condenado por apoiar a organização terrorista judaica Kach, a prender cidadãos que ele e outras autoridades creiam representar “risco real para a segurança pública”; e amplas mudanças em diretrizes de funcionamento de meios de comunicações que politizariam a agência que regula emissoras de TV e que ao mesmo tempo aumentariam os benefícios para o Canal 14, pró-Netanyahu.

Esses passos planejados complementariam leis já existentes. Dois exemplos notáveis são a colossal transferência de fundos para escolas e instituições educacionais judaicas ultraortodoxas, poucas delas lecionando o cerne do currículo (matemática, inglês, ciências) necessário para assimilação na sociedade em geral, e uma lei que garantiu a  Ben-Gvir mais controle sobre a polícia na determinação de seus procedimentos e prioridades, incluindo investigações. Para tanto, nós deveríamos adicionar mudanças sutis, mas não menos drásticas, ao serviço público, no passado elogiado por seu profissionalismo e apartidarismo. O governo parece determinado em introduzir um sistema clientelista, distribuindo cargos para apoiadores de sua coalizão. Demissões e nomeações em funções públicas proliferaram sem nenhum escrutínio significativo.

Desde janeiro, a maioria dos israelenses que têm tomado as ruas o fez acreditando que o governo caminha na direção da violação do pacto mais básico entre o Estado e seus cidadãos e que seu país poderá deixar de ser uma democracia. Algo ainda mais profundo, porém, está em operação: não apenas a possibilidade de colapso da democracia israelense, por mais imperfeita que ela possa ser, mas o possível desfazimento da identidade básica de Israel enquanto Estado judaico e democrático.

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Por toda parte em Israel há uma preocupação crescente com a ascensão da religião na esfera pública e o privilégio de interesses de judeus dentro de Israel e nos territórios ocupados. Num país que dedica cada vez mais recursos à continuidade da ocupação e dos assentamentos coloniais; num país que não separe religião e Estado, em que casamentos sejam sujeitos à lei religiosa e permitidos apenas entre casais heterossexuais; num país que destine quantidades tremendas de recursos para instituições religiosas, em que os judeus ultraortodoxos não sirvam às Forças Armadas e sua participação no mercado de trabalho seja extremamente baixa, insistindo que a própria tessitura da sociedade israelense está cada vez menos convincente. A batalha nas ruas não trata apenas da mudança constitucional, trata de Israel poder seguir uma democracia liberal no futuro.

Para que esse futuro aconteça, é necessário o estabelecimento de um novo contrato social entre Israel e os israelenses. Eu conversei com centenas de cidadãos preocupados. Quase sem exceção, todos me pedem algum sinal de esperança. Portanto aqui vai: desde sua fundação, Israel tem se fragmentado e polarizado cada vez mais; mas os últimos sete meses de mobilização cívica e despertar democrático têm operado um verdadeiro milagre, unindo os cidadãos de uma maneira inconcebível no passado.

Esta mobilização certamente tem seus defeitos, mas é promissora para o campo progressista à medida que começa a reconstruir alianças antigas e forjar novas unidades. Talvez então, apesar do ceticismo e desespero onipresentes, este seja o início de um caminho melhor para o país. Apesar de tudo, eu tento continuar otimista. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

*O professor Shinar leciona direito constitucional na Universidade Reichman, em Israel

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