Sob sol e calor de 34°C (com sensação térmica de 38°C), milhares de americanos ocuparam nesta sexta-feira, 28, os arredores do longo espelho d’água diante do memorial de Abraham Lincoln, em Washington, para uma manifestação por igualdade racial. Alguns levantaram a barra da calça e foram para o meio da água, com cartazes e camisetas com mensagens contra o racismo.
A imagem remete às fotos da célebre Marcha de Washington, de 1963, quando o líder do movimento por direitos civis nos EUA, o pastor Martin Luther King, fez o icônico discurso I Have a Dream (“Eu tenho um sonho”). A manifestação de hoje foi uma releitura do movimento contra o racismo impulsionado por King.
Em 28 de agosto de 1963, o ativista discursou para cerca de 300 mil pessoas aos pés do memorial. Quase 60 anos depois, o mesmo lugar foi ocupado para renovar a campanha pela igualdade racial. Mekeda Smith, de 38 anos, carregava um cartaz com uma foto em preto e branco de uma manifestante da década de 60, colada entre a frase “Minha avó fez, agora é a minha vez!” “Esta na foto é a minha avó”, conta Mekeda. “Ela marchou esta mesma marcha em 1963 e eu senti que precisava vir aqui hoje e mostrar que, tanto tempo depois, nós continuamos brigando por justiça.”
Protestos contra o racismo e a violência policial contra negros se espalharam por mais de 150 cidades americanas no início de junho, depois que George Floyd, um negro de 46 anos, foi morto após um policial branco ajoelhar sobre seu pescoço e sufocá-lo por quase nove minutos.
O vídeo em que Floyd repete que não conseguia respirar fez multidões irem às ruas por várias semanas nos EUA. A marcha de hoje em Washington começou a ser organizada em junho, com a força do movimento antirracismo, e ganhou nova motivação nesta semana, depois de mais um caso de violência policial contra um negro, desta vez em Kenosha, no Estado de Wisconsin. Jacob Blake levou sete tiros nas costas à queima-roupa e ficou paralisado da cintura para baixo.
A morte violenta de um americano negro após abordagem feita por policiais brancos é uma notícia que vem se repetindo e já causou protestos similares ao longo da história. Os negros são 13% da população americana, mas mais de 30% dos mortos pela polícia. Em junho, o caso de Floyd, somado ao pano de fundo social e econômico de um país em recessão e com o maior número de mortos por coronavírus no mundo, colaboraram para que as manifestações fossem comparadas aos protestos de 1968, depois da morte de Martin Luther King.
A pandemia de coronavírus limitou os planos dos organizadores do evento desta sexta-feira. A expectativa inicial era de que 100 mil pessoas comparecessem, mas ônibus fretados que levariam manifestantes de outros Estados para a marcha foram cancelados depois que a prefeita, Muriel Bowser, impôs uma quarentena obrigatória para os visitantes de 27 Estados onde há surto de coronavírus.
Mesmo assim, era fácil encontrar participantes que viajaram de longe para participar do evento. A reportagem do Estadão encontrou moradores da Geórgia, Califórnia, Wisconsin, Minnesota e Virgínia, além dos que vivem no próprio Distrito de Columbia. Quem chegava no evento tinha a temperatura corporal medida e podia pegar uma máscara descartável para proteção do coronavírus. Praticamente todos os manifestantes usavam máscaras, mas o distanciamento social de mais de dois metros entre cada pessoa não era possível. Uma tenda com teste rápido de covid-19 gratuito foi montada para atender quem desejasse.
Batizada de "marcha do compromisso: tire seu joelho dos nossos pescoços", a manifestação reuniu parentes de Blake, Floyd e de outros americanos negros mortos pela polícia, como Breona Taylor e Eric Garner, que deram depoimentos emocionados à multidão. "Nós estamos cansados. Eu estou cansado de olhar as câmeras e ver negros sofrendo", disse o pai de Blake, Jacob Blake Sr.
O filho mais velho de Luther King, Martin Luther King III, disse que apesar de a marcha ser sobre o famoso sonho de seu pai, "não se deve nunca esquecer o pesadelo americano". Parte do discurso de King III foi uma crítica às tentativas de supressão de voto. "Há um joelho no pescoço da nossa democracia e nossa nação não pode viver muito tempo sem o oxigênio da liberdade", disse. Nos discursos, ativistas pediram que os manifestantes tomem ações concretas e votem na eleição deste ano.
O movimento tem forte componente de crítica ao presidente Donald Trump, que tem adotado uma retórica da "lei e da ordem" em oposição aos manifestantes, que já chamou de radicais, anarquistas, saqueadores e bandidos. Horas antes do início da marcha em Washington, em discurso na convenção republicana, o presidente repetiu o tom e disse que seu governo apoia os policiais.
Durante a convenção republicana, oradores afirmaram que os EUA não são um país racista. A cobrança por um acerto de contas racial é um tema central na campanha presidencial deste ano.
Depois de discursos, os manifestantes caminharam até o memorial em homenagem a Martin Luther King no meio da tarde. No local, há frases célebres do líder de movimentos civis gravadas em paredes de pedra. Voluntários e organizadores da marcha distribuíram suprimentos pelo caminho: água, barras de proteína, salgadinhos, pequenas caixas de nuggets vegano e bebidas isotônicas eram entregues aos manifestantes.
Em meio ao calor intenso, parte da marcha – que transcorreu de maneira pacífica – começou a dispersar por volta das 16 horas (17 horas em Brasília). Pequenos grupos passaram a se concentrar em pontos estratégicos da capital, como os arredores da Casa Branca e a frente da sede do Departamento de Justiça. Às 18 horas, uma forte chuva espantou quem ainda estava na rua.