Aos 87 anos, a vida do embaixador Rubens Ricupero é uma história de sucesso. Seus avós imigraram da Itália para o Brasil no final do século 19 para escapar da pobreza. O avô materno se estabeleceu em São Paulo e trabalhou como carpinteiro na oficina de bondes da Light. Um dia, um pesado eixo metálico se desprendeu e o atingiu na cabeça. Ele ficou cego e paralítico. Nascido em 1937, Ricupero cresceu num bairro do Brás povoado por famílias de imigrantes operários e pobres. Seus vizinhos, quase todos filhos de viúvas, com pais mortos precocemente, não tiveram grandes chances na vida.
A sina diferente dos colegas de infância se deveu em grande parte ao estímulo dos pais que, apesar da pouca instrução, lhe incutiram o gosto das leituras e do estudo. Ricupero formou-se em Direito na Universidade de São Paulo (USP) e entrou por concurso no Itamaraty, onde escalou os postos mais importantes da carreira diplomática. No governo Itamar Franco, chegou a ministro de Estado. Chefiou a pasta do Meio Ambiente e, há 30 anos, era o titular do Ministério da Fazenda em um dos marcos da vitória do Brasil contra a hiperinflação: o lançamento do Real como moeda. Depois, ainda foi por nove anos um dos subsecretários-gerais das Nações Unidas.
Essa trajetória é contada no livro de memórias recém-lançado do embaixador. A inspiração da obra pode ser traçada nos diários da mãe Assumpta. Desmentido vivo da afirmação de Albert Camus de que pobre não tem memória, a mãe de Ricupero não deixava esquecer nada e registrava tudo. Com as evocações de uma São Paulo extinta em que se fazia frio e se falava italiano e as lembranças dos personagens com quem conviveu em sua carreira diplomática, desde os mais famosos como Guimarães Rosa, João Cabral de Melo Neto e Clarice Lispector, até os mais obscuros, Ricupero também deixa transparecer a intenção, com suas reminiscências, de não querer deixar nada esquecido nas 700 páginas do livro. Atravessa-se o cartapácio com facilidade e deleite graças a uma prosa límpida e fluida e também ao caráter da obra. Longe de um panegírico sobre suas realizações, as memórias do embaixador são um testemunho sobre a história recente do País, um registro pessoal sobre êxitos e fracassos da sociedade brasileira.
O embaixador teve vivência longa e íntima com o poder para dar esse depoimento. Transferido para Brasília na época da inauguração da capital, teve a oportunidade de trabalhar ou conviver de perto com praticamente todos os presidentes, desde Jânio Quadros, e todos os chanceleres à frente do Itamaraty, desde Afonso Arinos. Ele também é um profundo conhecedor de História. Em 2017, publicou A Diplomacia na Construção do Brasil, um clássico desde o lançamento. Neste livro, reconta a história brasileira do ponto de vista das relações do Brasil com o mundo e da sua política externa, entremeando com relatos da sua experiência pessoal. Nas memórias, Ricupero faz o caminho inverso. Relembra sua trajetória de vida, entrelaçando-a com a história do País - uma “madrasta”, segundo o embaixador, se comparada com a geografia que nos abençoou com a vantagem de viver num continente no qual não nos envolvemos em guerras há 150 anos.
Por causa das dificuldades do Brasil de lidar com um legado histórico que nos deixou uma sociedade altamente desigual, com pouca educação e cultura política precária, as reflexões de Ricupero embutidas nas memórias, lastreadas numa visão humanista e de profunda fé cristã, passam longe de qualquer triunfalismo. Ao rememorar dores e descaminhos, deixam um ponto de interrogação sobre o futuro: a realidade irá um dia concretizar a visão idealizada, expressa na política externa tradicional do Itamaraty, de um Brasil que será uma potência diferente das demais no mundo, sem armas nucleares, defensora da paz, da justiça, dos direitos humanos e da proteção ambiental? Os altos e baixos dos últimos 60 anos registrados por Ricupero permitem uma resposta ambivalente.
Dois episódios emblemáticos relembrados nas memórias explicam essa incerteza. O primeiro, de fracasso, foi em seguida à renúncia à Presidência de Jânio Quadros em 1961, que abriu, nas palavras do embaixador, “um dos mais nefastos ciclos da história moderna brasileira” e culminou com a ditadura militar entre 1964 e 1985. Após a crise em torno da posse de João Goulart, Ricupero estava em Brasília em setembro de 1961 no dia da posse do primeiro gabinete chefiado por Tancredo Neves, no arranjo parlamentarista improvisado para evitar uma guerra civil.
Na mesma noite, Ricupero participou de um jantar com o então deputado San Tiago Dantas, nomeado para o Itamaraty. No encontro, ouviu do chanceler que, se o parlamentarismo fracassasse e a inflação não fosse controlada, a sociedade iria se fragmentar em grupos polarizados e violentos e haveria uma intervenção militar. “Mas não será como no passado, uma pausa para convocar eleições. Desta vez, as Forças Armadas se prepararam para permanecer por muito, muito tempo! Será uma experiência inédita, que o Brasil jamais conheceu até agora”, previu Dantas para os comensais, segundo o relato de Ricupero.
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Em menos de três anos, a profecia se concretizou. Sabotado por Jango, o parlamentarismo não vingou. O próprio San Tiago Dantas, apesar de ser do PTB, mesmo partido do presidente, foi rejeitado como primeiro-ministro pelo Congresso. Com a volta do presidencialismo, Dantas assumiu o Ministério da Fazenda e tentou implantar um programa de austeridade econômica, abandonado por causa da oposição da esquerda radical no governo.”Na marcha rumo à ditadura, os atores principais davam a impressão de sonâmbulos, como os estadistas que conduziram a Europa à Primeira Guerra Mundial, sem consciência clara do que faziam. No verão de 1914, ninguém desejava de fato a guerra, mas ninguém tampouco estava disposto a moderar as ambições nacionais como preço para evitá-la. No Brasil de 1961 a 1964 igualmente, os participantes da vida política não agiam como se a democracia e a liberdade fossem valores absolutos, não devendo ser subordinados ou sacrificados a outros valores desejáveis”, descreve Ricupero.
Trinta anos depois, o embaixador participou de outro episódio-chave, desta vez uma história de êxito. Como escreve, “entrou no romance do Real na condição de um desses personagens secundários que entra na trama sem muita explicação quando a ação já vai avançada”. Foi convocado por Itamar Franco para assumir o Ministério da Fazenda quando Fernando Henrique Cardoso, que montara a equipe com o plano para estabilizar a inflação e lançar uma nova moeda, assumiu a candidatura a presidente da República. Itamar, que não queria um nome ligado a FHC, o encarregou de tocar adiante o plano com a mesma equipe. Havia grandes reticências em relação ao êxito do Real, por causa de um histórico de planos fracassados, dificuldades econômicas e técnicas e um enorme obstáculo político: um governo no fim e uma eleição presidencial no meio, em que o candidato favorito, Luiz Inácio Lula da Silva, chamava o Real de “estelionato eleitoral”.
Quinto titular da Fazenda em pouco menos de dois anos de governo Itamar, Ricupero rememora um encontro no ministério com o economista Lawrence Summers, então subsecretário do Tesouro dos Estados Unidos. À queima-roupa, Summers vaticinou o fiasco do Real. “A situação orçamentária brasileira é muito precária e não permitirá manter a estabilidade por tempo suficiente”, disse o representante do governo Bill Clinton. O embaixador respondeu a Summers que ele estava certo do ponto de vista teórico e que o ideal seria lançar a nova moeda com uma situação fiscal mais sólida. “Ideal ou não, na falta de condições, teremos de criar as condições, isto é, a moeda é que vai gerar apoio político para depois levar avante o ajuste, e não contrário”, retrucou Ricupero, segundo conta no livro .
Mesmo sem âncora fiscal, o Real foi lançado durante a campanha presidencial, em julho de 1994. Conquistou o apoio popular e catapultou a candidatura de FHC que derrotou Lula e permitiu a sequência do plano e seu êxito na estabilização da inflação. Nas memórias, Ricupero lembra que o Real, ao contrário de outros planos, foi lançado sem apoio do Fundo Monetário Internacional (FMI). “A população teve mais esperança na moeda que as instituições e muito dirigentes. A nação como um todo, a coletividade, se converteu à ideia da estabilidade monetária. Sentiu que a estabilidade significava mais para o pobre que para o rico, era mais importante para quem vivia de salário e não tinha como se defender da subida de preços”, escreve o embaixador.
Ricupero teve papel importante na conquista de corações e mentes. Na preparação e no lançamento da nova moeda, desempenhou duas missões: a de ser o “algodão entre os cristais” entre o mercurial Itamar e a equipe econômica para impedir intervenções populistas do Planalto; e a de ser o comunicador do plano junto à população. Com suas feições de monge beneditino, Ricupero encarnou a função de “Apóstolo do Real”, como foi batizado por Itamar. No papel de dar entrevistas para explicar o plano, deu tão certo que passou a ser parado na rua por pessoas que lhe beijavam as mãos. Até que 19 minutos de uma conversa antes de uma entrevista ao vivo para a TV Globo, vazadas por satélite e captadas por antenas parabólicas, o tiraram do “romance do Real” de forma tão inesperada quanto entrou.
Na conversa, ao falar de uma controvérsia em torno do índice que media a inflação da nova moeda, Ricupero soltou as frases a que sempre será associado. “Eu não tenho escrúpulos. O que é a bom gente fatura, o que é ruim a gente esconde”. Com o vazamento da conversa e o escândalo gerado, perdeu a credibilidade de “Apóstolo do Real” e o cargo na Fazenda, do qual se demitiu. Nas memórias, Ricupero admite que nunca teve coragem de rever as imagens da conversa e que gostaria de apagar aqueles 19 minutos da sua vida. “Fiz papel de tolo, ao me deixar me levar pela presunção e a vaidade. Fui culpado do pecado de hubris, a desmesura, o esquecimento das limitações pessoais, a pretensão de ser mais do que era”, escreve, ao admitir com franqueza que se criara falsamente uma imagem de santidade em torno de sua figura.
Depois do escândalo da parabólica, Ricupero não ocupou mais cargos públicos. Ressente-se hoje de que o episódio também contribuiu para que ele fosse escanteado da história do Plano Real. O lançamento das memórias do embaixador cumpre a função de recolocá-lo na fotografia. Mas o livro, ao rememorar as turbulências do Brasil que cobrem a trajetória de uma vida, permite outra lição. O Real se consolidou como moeda, apesar das predições em contrário. É uma demonstração de que a história não é pré-determinada e é escrita dia a dia por cada geração e pelos seus lideres politicos. Trinta anos depois do plano, o País continua sem alcançar a estabilidade fiscal. Nesse intervalo, o desafio aumentou e se tornou mais dificil com um Orçamento cada vez engessado. Como há 60 anos, no golpe de 1964, o ambiente político voltou a ser contaminado por radicalismos e polarizações extremadas. Na última eleição presidencial, as ameaças de uma intervenção militar e um golpe voltaram a assombrar o País. Na encruzilhada da questão fiscal, cada vez mais próxima, a sociedade brasileira vai acertar o caminho ou não?
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