Em uma cidade da Rússia controlada pela Ucrânia, civis russos presos temem pela vida

Para as forças ucranianas na área, a ofensiva é vista menos como uma conquista para anexação no longo prazo e mais como uma tática de negociação

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Por Siobhán O'Grady (The Washington Post ) e Tetiana Burianova (The Washington Post)

SUDZHA — As linhas azuis e amarelas pintadas em dois postes de sinalização na entrada desta cidade russa ofereciam evidências inequívocas de que alguns cidadãos da Rússia estão vivendo sob o controle de Kiev e que a guerra de Vladimir Putin na Ucrânia realmente não está indo como planejado.

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Na tarde do dia 17 de agosto, um sábado 11 dias após as forças ucranianas cruzarem a fronteira e chegarem a esta região russa, soldados patrulhavam as ruas danificadas de Sudzha com fitas azuis chamativas nos braços, examinando o céu em busca da aproximação de drones. Grafites cobriam a fachada de uma loja, renomeando-a como “ATB”, uma popular rede de supermercados ucraniana. Bandeiras russas foram removidas dos prédios administrativos, mas as ucranianas, azuis e amarelas, não tinham sido hasteadas.

Civis russos — a maioria dos quais são idosos ou deficientes — dormiam no porão de uma antiga escola ou sentavam-se calmamente no pátio, onde soldados lhes entregavam água e comida.

Um comandante de unidade de drones grava vídeo do lado de fora de uma loja etiquetada com as iniciais “ATB” em homenagem a uma rede de supermercados ucraniana, em Sudzha. Foto: Ed Ram/The Washington Post

O ar cheirava a fumaça e morte, e estilhaços e destroços cobriam as estradas. As casas da vila pareciam praticamente intactas, mas os prédios no centro de Sudzha, uma cidade de 5.000 habitantes, foram seriamente danificados por bombas e artilharia. Repórteres do Washington Post escoltados até lá por tropas ucranianas no sábado não viram evidências de que os militares ucranianos tenham saqueado ou atacado civis. Os civis russos entrevistados pelo Post em Sudzha disseram que estavam sendo bem tratados e não sabiam de nenhum morador que tivesse sido morto — mas que ainda querem sua cidade devolvida ao controle russo.

Uma mulher mais velha chorou, implorando por um corredor humanitário para a cidade de Kursk, controlada pela Rússia. Um homem de 91 anos pediu aos jornalistas do Post que o levassem com eles para a Ucrânia para encontrar sua filha em Kharkiv — um sinal de como a invasão de Putin separou tragicamente parentes por anos. Soldados ucranianos estavam presentes em metade das entrevistas do Post com civis.

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A maneira como as tropas ucranianas estão operando no território e parecem estar tratando a população local reforça as alegações oficiais de que a Ucrânia vê o objetivo de sua ofensiva menos como uma conquista para anexação no longo prazo e mais como uma tática de negociação que será usada para pressionar a Rússia a devolver os territórios ucranianos ocupados. Ainda assim, as forças ucranianas continuam a pressionar e destruir infraestrutura crítica para evitar vantagens das tropas russas.

Para as forças no local e para muitos em toda a Ucrânia, a incursão é vista como uma tática de vital importância para impedir que Putin tente congelar o conflito em situação de desvantagem para a Ucrânia.

“Acho que isso é temporário”, disse Boxer, 28 anos, um comandante de unidade de drones que ajudou a planejar o ataque. Ele estava falando do bunker subterrâneo dentro da Rússia onde vive agora, que há apenas duas semanas abrigava recrutas russos. “Acho que todos, incluindo nosso comando, acham que estamos fazendo isso para acabar com a guerra.”

Ele é da cidade de Enerhodar, que caiu para as forças da Rússia em março de 2022. “Espero que esta operação nos ajude a voltar para casa mais cedo”, acrescentou. “Porque tudo isso é ótimo, mas eu quero mesmo é ir para casa.”

Dois anos e meio após a invasão em grande escala da Ucrânia pela Rússia, as forças de Kiev lançaram uma ofensiva surpresa pela fronteira na região de Kursk, na Rússia, em 6 de agosto, pegando desprevenidas as tropas russas, incluindo muitos recrutas inexperientes. Desde então, a Ucrânia apreendeu centenas de soldados russos como prisioneiros de guerra e cerca de mil quilômetros quadrados de território russo, colocando imensa pressão sobre Putin, que tentou proteger os russos comuns do impacto de sua guerra na Ucrânia.

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Em seus comentários noturnos de domingo, o presidente ucraniano Volodmir Zelensky disse que a operação na região de Kursk, na Rússia, pretendia criar “uma zona-tampão no território do agressor”.

Jornalistas do Post viajaram para dois locais dentro da Rússia controlados pela Ucrânia com soldados ucranianas no dia 11 de agosto. As condições da visita eram que o Post identificasse os soldados pelo primeiro nome ou codinome, de acordo com as regras militares, e não revelasse locais sensíveis.

Soldados ucranianos jantam em uma posição militar ucraniana na região de Kursk. Foto: Ed Ram/The Washington Post

Os jornalistas viajaram em dois veículos, acompanhados por tropas ucranianas. Enquanto os carros passavam por um posto de fronteira agora destruído, onde a Ucrânia sobrepujou as forças russas no início de 6 de agosto, um soldado que atende pelo codinome Crim, de sua Crimeia natal, virou-se para os repórteres e sorriu.

“Bem-vindos à Rússia”, disse ele.

Os carros aceleraram por estradas de terra e asfaltadas, passando por campos onde nuvens de fumaça subiam em todas as direções por causa dos ataques recentes. Veículos militares ucranianos com triângulos colados na frente e nas laterais para se identificarem passaram por nós. As tropas alertaram que a estrada estava minada, que soldados russos escondidos na floresta poderiam armar uma emboscada e que a Rússia regularmente lança drones de ataque Lancet e joga bombas planadoras na área.

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Os carros passaram por uma grande fazenda onde Crim disse que ajudou a deter três recrutas russos dois dias antes. Primeiro, eles amarraram suas mãos e cobriram seus olhos, mas depois deram cigarros a eles, antes de entregá-los para a contra-inteligência ucraniana. “Expliquei a eles em russo que não somos como eles”, disse ele, “e que nada aconteceria a eles”.

Soldador conserta drone em uma posição militar subterrânea que costumava ser ocupada por soldados russos, mas agora é ocupada por ucranianos na região de Kursk. Foto: Ed Ram/The Washington Post

Na posição do bunker da unidade, a cerca de 30 minutos de Sudzha, as tropas ucranianas andavam calmamente do lado de fora, cozinhando bolinhos e checando seus telefones com o Starlink. Gatos e cachorros vagavam em volta das pilhas de lixo que os russos deixaram para trás. No andar de baixo, capacetes e coletes ucranianos estavam empilhados nas prateleiras ao lado dos beliches onde as tropas russas costumavam dormir. Um soldado estava sentado em uma mesa improvisada, assistindo a um vídeo mostrando como consertar um drone FPV. Os artigos pessoais dos russos ainda estavam espalhados: talheres, um violão e livros religiosos, incluindo orações para soldados.

Os ucranianos escreveram mensagens nas paredes. Acima da pia, um deles havia rabiscado: “Boa noite, somos da Ucrânia”. Outro escreveu: “Limpe a pia depois de usar. Seja legal”.

Boxer disse que os soldados estão comendo rações suecas de alta qualidade — como macarrão com polvo — e alimentando os animais do lado de fora com os suprimentos russos restantes, incluindo a um porco.

Na viagem para Sudzha, Boxer pediu a um de seus soldados, Valeriy, 48 anos, para fornecer cobertura superior para o grupo que viajava em um veículo blindado canadense, operando uma metralhadora pesada M2 Browning da escotilha no teto do veículo.

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“Fique de olho na floresta e atire em qualquer coisa que vir”, Boxer disse a ele enquanto todos se acomodavam dentro.

Pessoas esperam do lado de fora de uma escola que está sendo usada como abrigo antiaéreo em Sudzha. Foto: Ed Ram/The Washington Post

Os soldados tocaram música pop no sistema de som do veículo e passaram por apenas um civil do lado de fora: uma mulher de meia-idade que estava cuidando de dois cavalos grandes, um branco e um marrom, em seu jardim da frente. Ela não olhou para nós.

Uma vez dentro da cidade, todos foram instruídos a ouvir atentamente as instruções de Boxer. “Quando eu disser ‘drone’, escondam-se todos sob as árvores”, disse ele.

Os repórteres do Post correram ao lado dos soldados ucranianos enquanto eles se moviam por dois quarteirões saindo do veículo blindado em direção a um prédio onde cerca de 70 civis estão hospedados para se proteger de bombardeios e artilharia. Alguns voltaram para casa, pois a intensidade dos combates diminuiu nos dias mais recentes.

Mulheres do lado de fora disseram que estão recebendo remédios, alimentos e outras formas de ajuda, e agradeceram aos soldados ucranianos. Apesar da guerra que está acontecendo do outro lado da fronteira, na Ucrânia, elas nunca imaginaram que isso aconteceria com elas. “Nós nem pensamos nisso. Não conseguimos entender”, disse Liudmila, 45 anos, que, como outros civis russos nesta reportagem, falou sob a condição de que apenas seu primeiro nome fosse usado, por medo de represálias.

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Soldados ucranianos caminham na cidade de Sudzha, controlada pela Ucrânia Foto: Ed Ram/The Washington Post

“Deixe Putin fazer um acordo com seu Zelenski”, disse Marina, 57 anos, dirigindo-se às forças ucranianas que escoltavam os jornalistas do Post pela cidade. “Nós realmente queremos algum tipo de acordo, rapazes. Vocês vieram até nós. Obrigada, vocês estão nos tratando muito bem. Mas vocês devem entender, nós queremos voltar para nossos filhos, para casa, vocês entendem? Queremos que as coisas sejam resolvidas da melhor maneira.”

Boxer contou a elas sobre sua cidade natal, bombardeada e ocupada pelos russos. Ele serviu no exército desde os 18 anos, quando a Rússia invadiu a Ucrânia e anexou a Crimeia em 2014. “Bem, acho que somos apenas civis inocentes”, respondeu Marina.

“Eu também pensava assim quando éramos civis”, ele respondeu. “Temos um pedido: fotografe nossa Sudzha e envie para Putin”, disse Tamara, 65 anos. “Mostre isso ao nosso presidente, deixe-o ver.”

“Queremos paz e harmonia”, disse Marina. “Não queremos mais nada; não precisamos de mais nada. Por favor, ajude-nos, ajude-nos.”

Um caminhão de entrega de água entrou no pátio, e as mulheres formaram fila com garrafas plásticas. Elas disseram que outra entrega fora feita no dia anterior.

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Um soldado ucraniano entregou pacotes de rações militares secas a um garoto de 13 anos chamado Daniel. Ele correu para o porão sorrindo.

Embora não tenham alegado terem sido maltratados pelas tropas ucranianas, os civis russos não foram poupados das indignidades da guerra que muitos ucranianos vivenciam há anos.

Quatro adultos estavam sentados em um banco perto da entrada do abrigo no porão. Quando perguntado como ele estava, um homem chamado Stanislav, apontando para seu filho deficiente, de 47 anos, respondeu: “O que você acha, é bom no porão?”

Daniel senta-se perto de uma placa que diz: 'Civis no porão. Sem soldados', do lado de fora de uma escola em Sudzha. ( Foto: Ed Ram/The Washington Post

Quando perguntado a respeito de quantos banheiros eles tinham, ele respondeu: “Um balde”. Apesar dos combates intensos nos dias mais recentes, os repórteres do Post ouviram apenas uma pequena explosão em Sudzha. Os civis disseram que as explosões geralmente eram mais altas durante a noite.

No andar de baixo, no abrigo antiaéreo, o ar estava úmido e fétido. Não há eletricidade, e em cada quarto, civis estavam amontoados em colchões no escuro, apertando os olhos enquanto jornalistas passavam com faróis e lanternas. A maioria era velha, embora houvesse algumas crianças.

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Em um quarto, uma mulher pequena e imóvel chamada Valentina, 75 anos, que estava segurando sua própria lanterna, gritou de seu colchão pedindo ajuda. Outra mulher idosa, Olga, 93 anos, caiu perto da porta e precisava de ajuda, ela disse. Boxer entrou e ajudou a mulher a se levantar. Então ela se sentou novamente em seu colchão no canto.

Valentina agradeceu. Outro soldado ucraniano também a ajudou, ela disse, carregando-a em seus braços de sua casa até seu veículo e depois descendo as escadas para o abrigo. “Sou muito grata a ele. Uma pessoa tão gentil”, ela disse.

No mesmo quarto, Mikhail, 91 anos, implorou por ajuda para ir a Kharkiv para encontrar sua filha, cujo sobrenome ele lutava para lembrar. “Você poderia me ajudar de alguma forma?”, ele perguntou. “Minha memória está fraca agora.”

Pessoas dormem no porão de uma escola que está sendo usada como abrigo em Sudzha. Foto: Ed Ram/The Washington Post

No final do corredor, uma adolescente estava sentada entre um grupo de adultos, segurando um bicho de pelúcia. Era um presente de soldados ucranianos, ela disse.

No corredor, Marina implorou novamente por uma saída de Sudzha.

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“Estamos implorando, implorando por algum tipo de arranjo para que possamos sair daqui, por favor. Estamos pedindo a vocês”, ela disse aos jornalistas enquanto as tropas ucranianas apressavam a saída de todos do prédio, pedindo que retornassem pela fronteira para a Ucrânia antes do pôr do sol. Quando perguntada para onde queria ir, ela respondeu: “Pelo menos até Kursk”, a cidade controlada pela Rússia a cerca de 120 quilômetros de distância.

Do lado de fora, os soldados novamente vasculharam o céu em busca de drones e então colocaram todos de volta no veículo blindado para retornar à sua base. De lá, eles escoltaram os jornalistas do Post de volta à Ucrânia. O grupo passou por uma bandeira branca adornada com uma suástica que as tropas ucranianas haviam plantado no lado russo da fronteira. Eles disseram que marcava a entrada e a saída da Rússia, que eles chamavam de “estado nazista”.

Ao longo da fronteira, a fumaça ainda subia por todos os lados. Várias bombas planadoras russas atingiram as aldeias do lado ucraniano nas últimas horas. Um veículo em um posto de controle ucraniano estava pegando fogo.

Os soldados abriram a porta do veículo dos repórteres do Post e pediram um extintor de incêndio. Os jornalistas o entregaram e então dirigiram mais para o interior da Ucrânia. Os soldados ucranianos que os escoltaram para fora deram meia-volta — e então retornaram para a Rússia./ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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