Em uma Europa à deriva sem os EUA, Macron aproveita o momento para liderar

Recomendações do presidente francês para uma ‘autonomia estratégica’ e uma força europeia para ajudar a Ucrânia ficam repentinamente oportunas em um mundo com EUA menos confiáveis

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Por Catherine Porter (The New York Times)

Nas semanas que se seguiram à convocação do presidente francês, Emmanuel Macron, de uma eleição antecipada, no verão passado (Hemisfério Norte), que resultou em um Parlamento francês profundamente dividido, se seu nome surgisse em alguma conversa era frequentemente para pedir sua renúncia.

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O impopular presidente, há muito ridicularizado pelos críticos, classificado como indiferente, controlador e arrogante, parecia certo de que passaria os últimos três anos de seu mandato como um pato-manco regendo um governo instável, de sua própria criação, com um elenco rotativo de primeiros-ministros e pouco a mostrar.

Mas o presidente Donald Trump mudou as coisas. O líder americano reverteu abruptamente 80 anos de política amigável em relação à Europa, retirando o apoio à Ucrânia e se aliando à Rússia, deixando os líderes europeus apavorados e perdidos. Com isso, ele transformou este momento na hora certa de Macron.

O presidente da França, Emmanuel Macron, reunido com o presidente dos EUA, Donald Trump, no Salão Oval da Casa Branca, em Washington, em fevereiro: francês tenta liderar a Europa  Foto: Ludovic Marin / AFP

O presidente francês, que antes parecia prestes a desaparecer, agora figura nas manchetes diariamente. Macron reuniu líderes europeus repetidas vezes em Paris, voou para Washington e depois para Londres e, em geral, tornou-se o ponto focal do esforço da Europa para se manter por conta própria.

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Após anos de alerta sobre a “iminente morte cerebral” da Otan, o alerta de Macron agora parece premonitório, já que Trump ameaça dar as costas para a aliança.

A fala de Macron sobre tropas europeias em campo para ajudar a manter a paz na Ucrânia, há pouco tempo rejeitada e classificada como impossível por aliados incrédulos, agora é um plano que vem sendo trabalhado como uma forma plausível de conter os combates.

Da mesma forma, a visão de Macron sobre uma Europa com “autonomia estratégica” em relação aos Estados Unidos já foi amplamente descartada, considerada uma ideia distante de um homem mais propenso a declarações radicais do que avançar. A invasão da Rússia à Ucrânia fez com que ele colocasse mais ênfase em um “pilar europeu” dentro da Otan. Mas outros líderes da União Europeia parecem prontos para segui-lo no objetivo de permitir que os europeus se defendam melhor.

“Crises são muito boas para um presidente, pois os colocam de volta no centro das atenções”, disse Vincent Martigny, professor de ciência política na Universidade de Nice, Côte d’Azur.

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Além disso, disse ele: “Macron é o único capaz de ser o líder”.

O provável próximo chanceler alemão, Friedrich Merz, ainda não formou governo. Embora a crise tenha aproximado o primeiro-ministro britânico, Keir Starmer, da UE, seu país não é mais um membro do bloco. E não está claro se os esforços da primeira-ministra italiana, Giorgia Meloni, para mediar tensões com aliados europeus interessam particularmente a Trump.

Portanto, Macron ocupou o vácuo de liderança. Depois que o vice-presidente JD Vance criticou os líderes europeus durante seu discurso na Conferência de Segurança de Munique, no mês passado, sinalizando a mudança radical do presidente americano em relação a alianças estrangeiras, o presidente francês e seu gabinete entraram em ação.

Macron convocou uma primeira reunião de líderes europeus em Paris quase imediatamente após o término da conferência, que foi seguida de outra no dia seguinte. Ele foi o primeiro líder europeu a ir a Washington falar diretamente com Trump, informando seus colegas da UE sobre a reunião posteriormente.

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Poucos dias após uma visita desastrosa à Casa Branca de presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, tanto Macron quanto Starmer orientaram seu aliado a respeito de como consertar a situação.

De acordo com um diplomata francês próximo a Macron, o presidente francês fala com Trump a cada dois dias, em média, e com Zelenski e Starmer ainda mais regularmente. O caminho diante da Europa agora parece seguir em grande medida o rumo para o qual Macron tem apontado há anos.

O primeiro-ministro do Reino Unido, Keir Starmer, cumprimenta o presidente da França, Emmanuel Macron, após uma reunião bilateral em Londres  Foto: Christophe Ena/AP

Nos dias recentes, seu plano, antes aparentemente distante, de tropas europeias fazendo valer um acordo de paz entre a Rússia e a Ucrânia, começou a tomar uma forma mais concreta. O Reino Unido e a França já se comprometeram a enviar soldados, e o ministro das Relações Exteriores dinamarquês, Lars Lokke Rasmussen, afirmou na segunda-feira que seu país também está preparado para participar.

Na terça-feira, Macron recebeu comandantes militares de cerca de 30 países, que se reuniram em Paris para uma conferência de defesa e segurança, para solicitar mais compromissos.

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Um dos gestos mais ousados de Macron foi abrir discussões com líderes europeus sobre o compartilhamento da proteção do arsenal nuclear da França. Além da Rússia, a França e o Reino Unido são os únicos dois países na Europa que possuem armas nucleares.

A sugestão ecoou o status de liderança que Macron quer para a França, um país que há muito se orgulha da independência de seu arsenal nuclear. Mas também reflete a nova desconfiança em relação ao compromisso dos EUA com os aliados europeus e a convicção de Macron de que a agressão russa pode se expandir ainda mais se não for controlada com a promessa de proteção nuclear.

“Estamos entrando em uma nova era”, disse ele durante um discurso televisionado, na semana passada. “A paz não está mais garantida em nosso continente.”

Ele acrescentou: “Quero acreditar que os EUA permanecerão ao nosso lado, mas devemos estar prontos caso isso não aconteça”.

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No entanto ainda não é certo se alguma das buliçosas ações de Macron será bem-sucedida. Na terça-feira, a Ucrânia disse que estaria aberta a um cessar-fogo com a Rússia, mas Moscou não deu nenhum sinal de estar preparado para firmar tal acordo. A posição temperamental de Trump aparentemente muda a cada dia.

A presunção de liderança europeia de Macron também irritou alguns aliados. Durante uma chamada para informar seus homólogos europeus sobre sua viagem a Washington, Meloni criticou Macron questionando-o a respeito de que qualidade que ele havia se outorgado para ir à Casa Branca, de acordo com fontes familiarizadas com a comunicação.

O ministro da Defesa da Itália, Guido Crosetto, acusou Macron de oferecer tropas europeias à Ucrânia sem ter “a decência” de consultar outros países da UE. “Não se envia tropas como se envia um fax”, escreveu Crosetto, cujo governo se opôs ao envio de soldados para a Ucrânia na rede social X.

Ainda mais, há uma série de questões práticas sobre como Macron financiará tamanho aumento de gastos enquanto a França enfrenta uma crise orçamentária.

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Macron preparou seu país para a ameaça de guerra anunciando um aumento nos gastos militares durante os próximos cinco anos — sem impostos adicionais, prometeu ele — e uma expansão da fabricação de armas. Depois dos EUA, a França é o segundo maior exportador de armas do mundo.

Outros países europeus também anunciaram que elevarão seus gastos militares, potencialmente auxiliados por propostas da Comissão Europeia, incluindo um programa de empréstimo de € 150 bilhões, cerca de US$ 164 bilhões, para comprar mais armas e tecnologias.

Mas a crise existencial maior obliterou todas as miudezas práticas neste momento. Na França, pesquisas recentes mostram que o índice de aprovação do presidente subiu de 4 para 7 pontos entre pessoas com mais de 25 anos e menos de 35 — o maior salto desde a chegada da covid, em 2020, de acordo com o barômetro mensal do Instituto Francês de Opinião Pública.

O presidente da França, Emmanuel Macron, cumprimenta o presidente da Ucrânia, Volodmir Zelenski, após uma reunião em Bruxelas, Bélgica  Foto: Ludovic Marin/AP

A população francesa concorda amplamente com Macron — no sentido de que a Europa deve continuar a apoiar a Ucrânia e investir mais em sua própria defesa contra uma potencial ameaça russa e de que os EUA não podem mais ser considerados um aliado confiável.

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Até mesmo vários oponentes políticos do presidente elogiaram seus esforços diplomáticos e concordaram com sua análise.

“Não sou macronista, mas ele foi muito bem. O importante é tentar unir as pessoas e convencê-las de que a situação é muito séria e que obviamente nós precisamos de uma mobilização nacional”, disse o senador Cédric Perrin, do partido Os Republicanos, que preside a comissão de relações exteriores e Forças Armadas no Senado francês.

Em vez do homem se erguer à altura do momento, parece que chegou a hora do que Macron vem afirmando desde pouco após sua primeira eleição, em 2017, quando fez seu primeiro longo discurso na Sorbonne exaltando a necessidade urgente de a Europa sair da sombra dos EUA.

Naquela época, o político tcheco Andrej Babis, que meses depois se tornou o primeiro-ministro de seu país, lhe deu um tapa com luva de pelica: “Ele deveria realmente se concentrar na França”.

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Hoje, muitos na Europa admitem que Macron estava certo o tempo todo. “Na República Tcheca, nós apreciamos muito a liderança do presidente da França”, disse o embaixador tcheco em Paris, Jaroslav Kurfürst. “Emmanuel Macron ganhou muita credibilidade em nossa parte do mundo”. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO