PERDASDEFOGU (NEW YORK TIMES) – Em uma estrada situada em um ponto distante das montanhas da ilha de Sardenha, na Itália, uma placa fixada do lado oposto a um parquinho abandonado dá boas-vindas aos visitantes de Perdasdefogu, casa do “Recorde mundial de longevidade familiar”. Próxima à Praça da Longevidade, retratos em preto e branco dos rostos envelhecidos dos moradores centenários são exibidos na sossegada rua principal. A cidade parece morta, mas cartazes publicitários prometem ressuscitá-la por meio das palavras DNA e Longevidade.
A cidade isolada, antes conhecida por abrigar uma base militar que por anos serviu de plataforma de lançamento tanto para mísseis de longo alcance quanto para oportunidades econômicas, está tentando se posicionar como capital mundial da longevidade.
Sofrendo baixas taxas de natalidade e fuga de jovens, como muitas outras cidades italianas em razão da redução do mercado de trabalho, Perdasdefogu busca reconhecimento do Guinness World Records enquanto município com “maior concentração de centenários” – atualmente, há sete deles entre cerca de 1.780 habitantes – para tentar rejuvenescer a economia.
A esperança é que estrangeiros avessos à morte, desesperados para aprender segredos da longevidade, apareçam e façam o turismo decolar; ou que geneticistas ávidos para estudar os hábitos dos moradores invistam em infraestrutura sofisticada – e talvez até melhorem o serviço de telefonia obsoleto, instalando cabos de fibra ótica.
Entretanto, há uma intrusa no território da ancestralidade. Seulo, uma localidade ainda menor da ilha e ainda mais remota, tem atrapalhado os planos ambiciosos de Perdasdefogu desde que lançou uma declaração e passou a disputar o título. Agora, Perdasdefogu quer tirá-la de campo.
“Nem vale a pena falar deles”, contou Salvatore Mura, de 63 anos, engenheiro e político local, que submeteu a candidatura de Perdasdefogu ao Guinness. Ele argumentou que Seulo, por ter menos de mil habitantes, não atende aos requisitos do Guinness para o ranking e portanto está fora da disputa. “Questão de matemática.”
Mura caminhava ao lado de Giacomo Mameli – um energético escritor de 81 anos, que tem esperança de que o novo status da cidade gere publicidade para o festival literário que ele organiza – pela praça do Juízo Final, e a dupla passou diante de um mural de idosos usando suéteres e bonés coppola.
Ambos deram todo tipo de explicação para a longevidade dos moradores da cidade. Apontaram para hortas com abobrinhas enormes; falaram do pão de batata local que, sugeriram, deveria ser estudado por geneticistas; e exaltaram benesses digestivas naturais, incluindo um queijo ácido que remexe como gelatina. “Isso é antiácido natural”, afirmou Mameli, se referindo a uma tigela de queijo na mão.
Os homens apontaram para retratos de centenários pendurados na floricultura da cidade – cujo principal movimento é por causa dos funerais – e na pousada da irmã de Mameli, que mencionou que Seulo tem uma concentração maior de centenários
“Mas eles não têm mil habitantes”, ironizou o irmão. “Pior para eles”.
Os homens pararam no bar da família de Melis, que em 2014 entrou no Guinness por possuir nove irmãos vivos com idades somadas que ultrapassavam 800 anos.
Mura afirmou que o milagre econômico de Perdas, como os locais se referem à cidade, já começou – com uma marca de vinho inspirada nos centenários e uma empresa que vende mel “adocicado pelo ar que as pessoas idosas respiraram”.
Em sua caminhada, ele e Mameli se encontram com os anciões da cidade nas piazzas e diante das casas e falam aos membros do clube dos centenários a respeito do poder do minestrone (sopa de legumes típica da Itália) local, do ar da montanha, dos grãos-de-bico e do estilo de vida simples de Perdasdefogu. Apesar da glorificação, os centenários tendem a sair do roteiro.
Mura pediu a Bonino Lai, de 102 anos, que falasse a respeito dos superalimentos locais. Em vez disso, Lai recordou da época em que ele e os amigos saíam em busca de peças de mísseis, lançados da base militar já fechada por despejar lixo tóxico de urânio enriquecido no ambiente, “e de cogumelos”. “Eram bons”, acrescentou. “Todo mundo procurava.”
Outros alegaram que a variedade do cardápio era o tempero – ou pelo menos o conservante – da vida. Annunziata Stori, que completará 100 anos em agosto, enrolava semolina na forma de pequenos pães de massa fregolar. “Um dia eu preparo isso. Amanhã é spaghetti. Outro dia, lasanha”, disse.
Adolfo Melis, também com 99 anos e um dos remanescentes dos irmãos recordistas, carrega um rosário no bolso de sua jaqueta e tem outra hipótese: o mais importante é não se irritar com as coisas.
O morador mais velho da cidade é oficialmente Antonio Brundu, de 104 anos, cujo pai viveu até os 103. Em um tom sério, falou a respeito da importância de perseverar em meio ao sofrimento.
“Se você não tem um trabalho estável, que tipo de vida você vive?”, perguntou ele, que parecia intrigado diante de uma pilha de jornais locais noticiando a alegação de Seulo. Brundu expressou preocupação com a bisneta de 26 anos, que o ignorou na cozinha enquanto olhava o celular. “Eu tinha 45 cabras!”
Uma coisa sobre a qual todos concordaram foi a respeito do orgulho em relação ao novo recorde da cidade. “Habitante por habitante, somos número 1″, afirmou Antonio Lai, de 100 anos (e não é parente direto de Bonino), cujo apelido é “Pistola”, gabando-se de que dois anos atrás conseguiu renovar sua carteira de motorista (“Devia ser uma habilitação inglesa”, afirmou o marido de sua neta, Giampiero Lai. “Ele dirigiu do lado errado da pista”).
A fama no Guiness veio com benefícios que Lai não tem nenhuma intenção de abrir mão. “Uma mulher de 84 anos – um mulherão – veio me dar um beijo”, afirmou ele.
A concorrente Seulo
Seulo tem uma placa parecida – “A cidade dos centenários” – e também decorou a rua à beira da colina com fotos em preto e branco de moradores que chegaram a marca de 100 anos. A loja de souvenires turísticos oferece exemplares de “The Blue Zones Kitchen: 100 Recipes to Live to 100″ (Culinária das Zonas Azuis: 100 receitas para viver até os 100 anos), de Dan Buettner, que descreve a si mesmo como um “explorador” – e é dono do recorde no Guinness World Records em pedaladas de longa distância. O livro ajudou a colocar no mapa Seulo e outras localidades das chamadas Zonas Azuis, onde as pessoas são mais longevas.
Os habitantes zombam da pretensão de Perdasdefogu ao trono da longevidade. “A coisa simplesmente não é assim”, afirmou Maria Murgia, de 89 anos, vestindo véu e vestido negro, quando caminhava com a amiga Consuelo Melis, de 30 anos, de top esportivo e calças de ioga. “Eles erraram a conta.”
“Somos nós os recordistas!”, berrou Giovanni Deiana, de 79 anos, sentado com os amigos no banco de um parquinho sem crianças, próximo ao limite do vilarejo, preocupando-se com a possibilidade de sua mulher viver até os 106 anos, como a mãe dela. “Nós!”
Como Perdas com sua base militar, Seulo também foi conhecida por outra coisa. Um mural pintado no prédio da prefeitura mostra um jovem dos anos 30, barbudo, usando botas de pastor e segurando um diploma de medicina – em honra ao antigo recorde da localidade de apresentar a maior densidade de cidadãos com nível universitário na Itália. “Mas eles foram embora”, afirmou o prefeito, Enrico Murgia, de 55 anos.
Murgia afirmou que os cinco centenários vivos no vilarejo – que tem mais dois cidadãos prestes a completar 100 anos – confere a Seulo, de apenas 790 habitantes, uma densidade de pessoas super idosas muito maior do que Perdasdefogu (no dia 9 deste mês, uma delas, Pietrina Murgia, morreu aos 100 anos, e o número baixou para quarto).
Engenheiro de formação, Murgia desenhou gráficos de pizza e escreveu equações para demonstrar “o índice real que nos coloca como a cidade com maior longevidade no mundo”.
Contas à parte, a distinção de Seulo em razão da extrema longevidade de seus habitantes, afirmou Murgia, é um “veículo de marketing” – e ele saiu pela cidade distribuindo um panfleto turístico, intitulado “Descubra o elixir da longa vida”. Entregou o material para pessoas que já vivem por lá.
Murgia parou na residência de Anna Mulas, de 100 anos, que, quando indagada por ele a respeito do segredo para sua notável resiliência, recordou-se que carregou sacos de cimento na cabeça para ajudar a construir sua casa. Durante a conversa, no entanto, ela se preocupou principalmente em repreender a filha por não oferecer doces suficientes para as visitas.
Murgia caminhou até o Museu da Longevidade, que ostenta murais de retratos de idosos e está prestes a ser inaugurado, e prometeu “uma atividade turística imersiva”.
No pôr do sol, ele olhou para o vilarejo colorido em tons pastéis e lamentou a época em que uma gripe suína matou milhares de porcos, o que pôs fim a muitos empregos e forçou pelo menos 200 cidadãos a se mudar. “Teríamos hoje mil habitantes”, afirmou ele. “Se aqueles 200 tivessem ficado, poderíamos disputar com Perdas.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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