NARAYANPUR, Índia — Em mais de uma década praticando e pregando o cristianismo, Badinath Salam foi expulso de casa em várias ocasiões e sofreu assédios frequentes. Mas em dezembro, recorda-se ele, os abusos ficaram violentos. Líderes de seu vilarejo indiano originário bateram tambores para convocar os habitantes de todos os 100 lares para uma limpeza, afirmou ele. Na ação, moradores agrupados espancaram seus vizinhos cristãos, que compõem um quinto da população do vilarejo, e deixaram Salam três dias no hospital.
Quando as batidas de tambores começaram novamente uma semana depois, em 9 de janeiro, Salam fugiu para se salvar. Nesta parte da Índia central, ele não foi o único cristão obrigado a escapar.
Desde dezembro, vigilantes hindus no Estado de Chhattisgarh, no leste indiano, enfurecidos pela popularização do cristianismo e agrupados por líderes políticos locais, têm atacado e obrigado o deslocamento de centenas de cristãos convertidos em dúzias de vilarejos, deixando um rastro de igrejas danificadas, conforme testemunhou a reportagem e uma viagem recente à região e segundo o relato cristãos locais e ativistas.
Esta visita à região remota — a um dia viajando de carro a partir do aeroporto mais próximo — revelou a dimensão do caos e suas inquietantes consequências. Nos vilarejos, cristãos conversos cobertos de hematomas e cicatrizes decorrentes de espancamentos revolviam escombros de igrejas destruídas por multidões que empunharam marretas.
Líderes nacionalistas hindus protagonizaram comícios inflamados em localidades remotas prometendo mais ação contra conversões ao cristianismo. Em um ginásio do governo na cidade de Narayanpur, famílias obrigadas a fugir, incluindo a de Salam, buscaram refúgio, dormindo sobre esteiras próximo a algumas sacolas com trocas de roupa e grãos.
A violência irrompeu em uma das regiões mais singulares culturalmente na Índia, um trecho de colinas cobertas de florestas em que missionários de diferentes religiões e até guerrilheiros maoistas há muito disputam corações e almas de tribos originárias.
Mas esse episódio também ilustra uma verdade maior a respeito da Índia de hoje: que a antipatia em relação a religiões abraâmicas, tanto islamismo quanto cristianismo, com frequência retratadas como crenças estrangeiras trazidas para a Índia por invasores ao longo da história, pode ser empunhada como uma eficaz força de mobilização para alcançar objetivos políticos.
Por toda a Índia, relatos de violência contra muçulmanos com frequência aumentam à medida que eleições se aproximam, um fenômeno que alguns cientistas políticos têm atribuído a tentativas de partidos hindus de energizar sua base. Na região do sul do Estado de Chhattisgarh conhecida como Bastar, o bicho-papão é cristão.
A violência em Bastar começou em dezembro e atingiu cerca de 100 vilarejos, afirmam ativistas locais.
Em 2 de janeiro, membros de um grupo hinduísta local conhecido como Janjati Suraksha Manch atacaram uma igreja católica na cidade de Narayanpur, onde destruíram imagens e estilhaçaram vitrais a pedradas. Em 12 de janeiro, mais de 200 homens subiram no telhado de uma pequena igreja no vilarejo de Chimmdi, construída por Jai Singh Potai, e o colocaram abaixo. Dobrando a esquina, eles destruíram outra igreja e escreveram num quadro negro: “Se vocês não abandonarem o cristianismo, isso vai acontecer novamente”.
Para Entender
“A coisa vai ficar feia entre hinduístas e cristãos”, afirmou Potai enquanto observava o estrago certa noite, oculto na escuridão. Ele afirmou que logo pretende sair de lá definitivamente.
Por um século, as pobres tribos originárias que vivem por aqui, fora da sociedade indiana com base em castas, adorando árvores e rios em vez do panteão hinduísta, foram consideradas campo fértil para conversões por missões católicas, que gradualmente fincaram raízes.
Mas nas duas últimas décadas, afirmam moradores da região e especialistas de fora, tensões religiosas aumentaram após uma nova leva de missionários evangélicos migrar para lá, do sul da Índia e do exterior, ocasionando reações negativas de líderes locais e nacionalistas hindus que também têm ganhado tração.
Ódio aos cristãos
A socióloga Nandini Sundar, da Faculdade Délhi de Economia, afirmou que o aumento nas conversões ao cristianismo em Bastar foi parte do mesmo movimento evangélico global que alcançou rápido crescimento em outros países, incluindo Estados Unidos e Brasil.
“Mas aqui os cristão são minoria, acabam espancados, e os fundamentalistas hindutva têm apoio do Estado”, afirmou ela, usando um termo que define a ideologia nacionalista hindu. “Há fundamentalismos agressivos dos dois lados que se manifestam nos moradores desses vilarejos.”
A estatística mais recente do governo, de 2011, mostra que apenas 1,9% dos moradores do Estado de Chhattisgarh segue o cristianismo, em linha com os 2,3%, ou 28 milhões, de cristãos em toda a Índia.
Mas essa estimativa pode estar subnotificada, porque o governo conta apenas as pessoas que se identificam como cristãs em documentos oficiais. Em Bastar, o número verdadeiro de cristãos — ou “vishwasi”, como eles chamam a si mesmos — pode estar próximo a um quinto da população local, afirmam ativistas de ambos os lados do cisma cristão-hinduísta.
A mulher de Salam, Sonari, tornou-se a primeira cristã convertida em seu vilarejo, Remavandh, 20 anos atrás. Ela foi deixada com uma criança órfã, filha de sua irmã morta, e, desesperada, entregou-a para um casal cristão, em Narayanpur. O casal adotou a criança, recordou-se Sonari, e convidou a mulher para conhecer a capela de sua casa.
Passados três anos, “todos no vilarejo viram como eles cuidaram dela — e se inspiraram”, afirmou Sonari Salam. “Um a um, eles começaram a aparecer.”
Em pouco tempo, o marido de Sonari, Badinath, começou ele próprio a pregar. Quando pastores missionários não apareciam em Remavandh, ele pronunciava sermões a respeito dos milagres de Jesus e a promessa da vida eterna. À medida que sua pequena congregação cresceu, para cerca de 10 lares, afirmou Badinath Salam, o ressentimento dos vizinhos aumentou.
Mas as tensões não resultaram em violência, afirmou ele, até 2018, quando o Partido Bharatiya Janata (BJP) — legenda nacionalista hindu que controla o governo central mas é defasada politicamente em Chhattisgarh — perdeu o poder no Estado para o partido Congresso Nacional Indiano. “Quando eles começaram a perder, começaram os problemas”, afirmou Salam.
Almas e votos
Diz-se que o cristianismo foi levado para o subcontinente indiano por São Tomé Apóstolo, que chegou a Kerala em 52 d.C.
Nos primeiros anos da Índia independente, o primeiro-ministro Jawaharlal Nehru e seu partido de inclinação à esquerda, o Congresso Nacional Indiano, se inquietaram com um fluxo de missionários entrando na Índia e oprimindo culturas tribais do país — e baniram os missionários estrangeiros.
Políticos de direita também se preocuparam. Nos anos 90. Dilip Singh Judeo, então um dos líderes do BJP, começou a organizar cerimônias de “regresso” em Chhattisgarh. Ele reunia cristãos convertidos e lavava seus pés. Sacerdotes hinduístas arrebentavam um coco no chão. E depois disso, os homens e mulheres de tribos originárias — mesmo que jamais tivessem praticado o hinduísmo antes — eram declarados hindus.
“Essas almas não reclamadas, por assim dizer, sempre foram vistas por todos como disponíveis”, afirmou a proeminente advogada especializada em direitos humanos Shalini Gera, que vive em Bastar.
Em décadas anteriores, missões católicas se inseriam gradualmente nas comunidades, afirmou Gera. Imagens da Virgem Maria eram às vezes vestidas com saris. Retratos de personagens bíblicos tinham características faciais de povos originários. Algumas igrejas realizavam casamentos seguindo costumes híbridos, mesclados entre o cristianismo e a cultura local.
Mas os cristão evangélicos chegaram na década passada abrindo caminho rapidamente com seus sermões ardentes, afirmou Gera. E também ocasionaram inquietações.
Dinesh Kashyap, ex-parlamentar do BJP que perdeu o assento em 2019, afirmou que a situação é grave para os hinduístas locais. Segundo ele, evangélicos percorrem o interior aliciando indianos pobres e crédulos; e já converteram 40% dos moradores dos vilarejos. “Eles oferecem comida, roupas e dinheiro”, afirmou Kashyap em seu escritório. “Eles até constroem casas.”
Kashyap conduziu suas próprias cerimônias de lava-pés e “regresso”, organizou comícios para denunciar conversões ao cristianismo e liderou protestos para exigir que benefícios do governo destinados a povos tribais sejam negados aos cristãos. Nas semanas recentes, ele ajudou a mobilizar o Janjati Suraksha Manch, que os cristãos acusam de estar por trás da violência. Kashyap negou qualquer delito, afirmando que tem defendido manifestações pacíficas.
Os hinduístas dos vilarejos “não querem brigar com ninguém”, afirmou ele. “Mas estão muito preocupados com as conversões. Se alguém em sua família subitamente mudasse de fé você não acharia isso estranho? É assim que as pessoas se sentem nesta região.”
Kashyap, acompanhado de seguranças armados com submetralhadoras, entrou em um SUV em uma tarde recente e arrancou para um comício em que líderes do BJP exigiam a libertação de hindus presos em razão de ataques recentes contra igrejas. Os líderes do BJP disseram a uma pequena multidão que autoridades de Estado lideradas pelo partido rival, Congresso Nacional Indiano, abusaram do poder ao negar o estabelecimento de fiança para a libertação dos hindus.
Um a um, os políticos que discursaram descreveram a querela sobre as conversões não apenas como uma luta religiosa, mas também como uma luta por votos. Eleições estaduais serão realizadas este ano em Chhattisgarh.
“Se nós tolerarmos as ações deste governo, elas destruirão nossa identidade e cultura tribal”, afirmou no microfone o legislador estadual Raja Ram Todem, que também mobilizou o grupo Janjati Suraksha Manch. “Preparem-se para extirpar este governo nas próximas eleições.”
Medo irradia
Em meados de janeiro, a polícia local anunciou várias prisões — enfurecendo líderes locais do BJP — mas restabeleceu a normalidade. Na semana passada, a polícia disse que escoltou de volta às suas casas todos os cristãos obrigados a fugir.
Mas muitos continuavam pessimistas. “Vai ser assim até a próxima eleição”, afirmou um líder cristão em Narayanpur, que falou sob condição de anonimato por temer represálias.
Nas semanas recentes, emergiram mais relatos de ataques contra cristãos em outras partes da Índia. Uma igreja do bairro de Mahim, em Mumbai, foi vandalizada. Um grupo de voluntários jesuítas foi, segundo relatos, atacado no Estado de Maharashtra. No Estado de Uttar Pradesh, estudantes sul-coreanos foram abordados dentro de uma universidade por homens que os acusaram de ser missionários, o que chegou às manchetes dos jornais de circulação nacional.
O medo também irradia para além de Chhattisgarh. Durante um culto numa manhã recente de domingo, na Igreja Pentecostal de Bethel AIM, localizada em um beco do distrito vizinho, de Narayanpur, homens e mulheres levantavam os braços em louvor, dançando ao som de uma banda de rock e gritando “Aleluia!”.
Próximo aos fundos do recinto, a mais nova integrante da congregação de 300 fiéis, uma mulher nervosa chamada Pavan, fechava os olhos com força e orava ferventemente. Os líderes do vilarejo em que ela vive, próximo a Narayanpur, estavam ameaçando despejá-la, afirmou Pavan, então ela havia despertado antes do amanhecer, colocado um casaco e entrado em um ônibus para comparecer a este culto, a três horas de sua casa.
Pavan afirmou que sofreu depressão e tentou suicídio dez anos atrás, antes de conhecer o cristianismo. “Ele nunca me abandonou quando precisei”, afirmou ela. “Então como eu poderia abandonar Jesus agora?”
O pastor da igreja, Able Varghese, pediu para um assistente fechar os portões do local. Seus vizinhos integram a organização nacionalista hindu Vishva Hindu Parishad, e alguns fiéis temiam um confronto desnecessário. Natural de Kerala, no sul da Índia, Varghese afirmou que se mudou para Chhattisgarh em 1997, sem igreja nem fiéis. “Sempre houve pressão, mas nunca tão extrema”, afirmou ele. E hoje? Varghese sorriu. “Dediquei minha vida a espalhar a palavra de Jesus. Se eu morrer cedo, que assim seja”, afirmou o pastor. “Cabe a Deus decidir.” / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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