A crise envolvendo a Ucrânia, Rússia, os Estados Unidos e a Otan tem origem no fim da Guerra Fria. Com o colapso dos regimes comunistas no Leste Europeu, a aliança militar entre europeus e americanos avançou rumo a leste, com países que antes eram da esfera soviética passando à zona de influência ocidental. Na madrugada desta quinta-feira, 24, o presidente Vladimir Putin decidiu atacar a Ucrânia, após três meses de pressão militar.
Com a ascensão de ao poder de Putin na Rússia, em 2000, lentamente começou uma reação russa no sentido de conter essa expansão para o leste. Isso ocorreu porque, para Putin, é fundamental uma espécie de 'zona-tampão' entre a Rússia e o Ocidente para a defesa estratégica de seu país.
Diante disso, primeiro, o Kremlin trabalhou para desestabilizar governos pró-Ocidente na Ucrânia e no Caucaso, ainda na primeira década deste século. A partir de 2007, a preocupação de Putin com o avanço da Otan o levou a operações militares contra a Geórgia, em 2008, e contra a Ucrânia, com a anexação da Crimeia em 2014.
No fim de 2021, Putin mobilizou militares e linhas de suprimento na fronteira, para pressionar a Otan a desistir de avançar para as ex-repúblicas soviéticas, e até mesmo, a retirar tropas de países como Bulgária e Romênia.
Por que Putin decidiu ameaçar a Ucrânia agora?
Putin considera expansão da Otan para o leste uma ameaça existencial à Rússia. Nos últimos anos, ele tem reconstruído o poderio militar russo e reafirmado sua importância geopolítica na região.
Conforme a força bélica russa cresceu, suas ameaças tornaram-se mais intensas. As bases de mísseis da Otan na Polônia também são descritas por ele como uma ameaça. Além disso, Putin insiste que Ucrânia e Belarus, historicamente e do ponto de vista cultural, são partes da Rússia.
Aos 69 anos, Putin tem como objetivo redesenhar as fronteiras geopolíticas da era soviética, com a Ucrânia retornando à área de influência russa. Menos claro é como ele pretende fazer isso por meio da força. O custo de uma intervenção militar seria alto, seja por sanções ou até mesmo com uma resposta armada com o Ocidente, mas não se sabe se Putin se contentaria com um meio termo. Até agora, nenhum lado cedeu e uma solução diplomática parece emperrada.
O que está em jogo para os países europeus?
O maior risco para a Europa, principalmente para potências como França, Alemanha e Reino Unido, é a sobrevivência da estrutura de segurança que ajudou a manter a paz no continente desde o fim da 2.ª Guerra. Com essas potências divididas sobre qual a melhor resposta às ameaças de Putin, o conflito também evidenciou as fraturas internas da União Europeia e da Otan.
Com a saída da chanceler Angela Merkel, que cresceu no leste da Alemanha na época da Guerra Fria, fala russo fluentemente e desenvolveu uma boa relação com Putin, a Europa perdeu um interlocutor inestimável com Moscou. Seu sucessor, Olaf Scholz, foi criticado por não assumir um papel de destaque na crise. A Europa tem importantes laços comerciais com a Rússia e perderia muito mais do que os EUA com as sanções impostas após a invasão russa da Ucrânia. Também depende do fornecimento de gás russo, uma fraqueza que Putin explorou em disputas anteriores.
Um histórico da atual crise
Putin começou a mobilizar tropas na fronteira no fim de novembro. A partir de janeiro, as tensões cresceram, com os Estados Unidos alertando para a iminência de um ataque russo. Depois de a Ucrânia sinalizar que poderia desistir da Otan, a Rússia prometeu retirar tropas da fronteira - o que não foi corroborado pela Otan e os EUA.
Em 17 de fevereiro, foram registradas explosões no leste da Ucrânia, que levaram os EUA a denunciar uma tentativa russa de arrumar um pretexto para a invasão. No dia seguinte, o presidente americano Joe Biden, afirmou que dados de inteligência do governo americano indicam que Putin decidiu invadir a Ucrânia.
Por que as negociações não avançam?
Integrantes do primeiro escalão do governo russo, incluindo Putin, defendem a teoria de que a não-expansão do bloco em direção a Rússia foi uma garantia negociada durante a dissolução da União Soviética. Segundo a narrativa russa, James Baker, o secretário de Estado americano nos últimos dias da Guerra Fria, teria negado a possibilidade de expansão da Otan rumo à Europa Oriental quando atuou como o principal diplomata de George H.W. Bush. O fracasso do Ocidente em cumprir esse acordo, segundo o argumento russo, é a causa real da crise que atinge a Europa.
Mas os registros oficiais sugerem que essa é uma narrativa parcial do que realmente aconteceu, usada para justificar agressões russas. De fato, houve discussões entre Baker e o líder soviético Mikhail Gorbachev nos meses posteriores à queda do Muro de Berlim, em 1989, sobre os limites à jurisdição da Otan após a reunificação da Alemanha, porém nenhumapromessa foi feita no acordo final assinado por russos, americanos e europeus.
Por outro lado, a Rússia violou um acerto que o país realmente fez, relacionado à Ucrânia. Em 1994, depois do fim da União Soviética, o governo russo assinou um acordo com os EUA e Reino Unido, chamado de Memorando de Budapeste, pelo qual a agora independente Ucrânia abria mão de 1,9 mil ogivas nucleares em troca de um compromisso por parte de Moscou de "respeitar a independência, a soberania e as fronteiras da Ucrânia" e de "evitar o uso da força" contra o país.
A Rússia violou a soberania quando anexou a Crimeia e patrocinou forças aliadas em uma guerra contra o governo de Kiev no Leste ucraniano.
Como a Rússia e a Ucrânia são ligadas historicamente?
Os laços históricos remontam ao século 9, quando o povo Rus mudou sua capital para Kiev - um legado que o presidente Putin invoca com frequência ao argumentar que a Ucrânia é ligada à Rússia. A Ucrânia fez parte da União Soviética até declarar independência, em agosto de 1991.O território ucraniano serviu como parte estratégica da União Soviética, com grande indústria agrícola e importantes portos no Mar Negro.
A conexão histórica entre os países ainda está presente retoricamente nessas tensões. “Estou confiante de que a verdadeira soberania da Ucrânia somente é possível por meio da parceria com a Rússia”, escreveu Putin em julho. “Juntos sempre fomos e sempre seremos muito mais fortes e bem-sucedidos. Porque somos um só povo.”
De acordo com um censo de 2001, mais de 50% da população da Crimeia e de Donetsk identificaram o russo como sua língua nativa (a Ucrânia não realizou nenhum outro censo mais recentemente). Putin afirma estar defendendo os direitos dos habitantes de língua russa dessas regiões.
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