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Como Lula e Daniel Ortega foram de aliados ideológicos à expulsão mútua de embaixadores

Os dois se conheceram na época da Revolução Sandinista nicaraguense e se mantiveram próximos por questões políticas, mas escalada autoritária de Ortega congelou os contatos com o Brasil

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Foto do author Carolina Marins
Foto do author Jéssica Petrovna

As relações diplomáticas entre Brasil e Nicarágua chegaram ao seu ponto mais baixo nesta quinta-feira, 8, depois de o Brasil expulsar a embaixadora nicaraguense do país. O movimento foi uma resposta à decisão do governo sandinista de Daniel Ortega de expulsar o embaixador brasileiro. Historicamente próximos, as relações de Ortega com Luiz Inácio Lula da Silva já vinham se deteriorando desde o ano passado.

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Lula conheceu Ortega em 1979 quando ainda era líder sindical e Ortega liderava a Frente Sandinista de Libertação Nacional. Lula viajou a Manágua no ano seguinte para acompanhar as celebrações de aniversário da Revolução Sandinista. Desde então, eles mantiveram boas relações, especialmente durante a chamada primeira onda rosa de governos de esquerda na América Latina.

O sandinista, porém, foi se tornando uma pedra no sapato do petista ao caminhar para um sentido cada vez mais autoritário, situação semelhante com o que ocorre com a Venezuela de Nicolás Maduro. Assim como ocorre agora com a ditadura chavista, a diplomacia de Lula insistiu que o Brasil não deveria fazer críticas contundente contra o país para evitar fechar os canais de mediação que poderia vir a ter.

O presidente Luiz Inacio Lula da Silva é recepcionado por Daniel Ortega no aeroporto de Managua em 2007 Foto: Celso Junior/AE

“Existe essa proximidade histórica e ideológica”, afirma Daniel Buarque, jornalista, doutor em Relações Internacionais e editor-executivo do portal Interesse Nacional. “E existiu desde a eleição uma rejeição do Lula em romper e em reconhecer que Daniel Ortega virou um ditador. É uma questão histórica que a gente vê claramente que Lula e o PT têm dificuldade.”

“No final das contas é um pouco parecido com a lógica da aproximação que Lula e o PT vão ter com o regime cubano, um regime que também veio da luta armada, que depõe um líder autocrata alinhado à direita e aos Estados Unidos basicamente”, explica Leonardo Paz, pesquisador do Núcleo de Prospecção e Inteligência Internacional da FGV e professor do departamento de Relações Internacionais do Ibmec.

“Lula naturalmente vê o companheiro Ortega, durante muito tempo, como uma figura interessante no sentido de um líder de esquerda que conseguiu prosperar, conseguiu participar de um golpe da luta armada, sai da luta armada, assume a presidência do país, sai da presidência na década de 90 e volta depois, por via eleitoral, então parece tudo mais ou menos democrático”, continua.

A situação, porém, se torna dramática na jovem democracia nicaraguense quando o país viveu em 2018 a maior série de protestos de sua história contra reformas do governo. Naquela época, o regime respondeu com repressão e rompeu com a igreja católica, um movimento que sempre é muito arriscado na América Latina. A partir daí, vários clérigos foram perseguidos e presos e muitos fugiram do país.

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Esfriamento recente

Dois momentos foram fundamentais para desgastar a amizade e praticamente congelar os esforços de mediação: a expulsão de opositores nicaraguenses que o Brasil se ofereceu para abrigar e a prisão do bispo Rolando Álvarez.

A ditadura de Ortega já mostrou que ia ser uma dor de cabeça para Lula durante a campanha eleitoral, quando o então presidente Jair Bolsonaro passou a utilizar a amizade entre os dois como arma contra o petista.

Na época, Lula chegou a dizer que Bolsonaro era “infinitamente pior” que Ortega e comparou os sucessivos mandatos do sandinista - que burlou regras Constitucionais do país - com a situação da então chanceler da Alemanha, Angela Merkel. “Por que Angela Merkel pode ficar 16 anos no poder e Daniel Ortega não? Qual é a lógica?”, questionou Lula.

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Já no começo do novo mandato de Lula, a Nicarágua demonstrou a consolidação de sua escalada autoritária ao retirar em fevereiro de 2023 a nacionalidade de mais de 300 cidadãos nicaraguenses. Entre eles, muitos ex-companheiros de Ortega na Revolução Sandinista, como Gioconda Belli, Luis Carrión e Sergio Ramírez.

Em março do ano passado, durante uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas, o Brasil disse que poderia abrigar opositores expulsos do país. Poucos dias depois, a ditadura destituiu a então embaixadora do país no Brasil, Lorena del Carmen Martínez, sem explicar os motivos.

Lula e Daniel Ortega no Palácio do Itamaraty em 2010 Foto: Eraldo Peres/AP

Dias antes, o governo estava resistindo durante uma reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU em condenar as violações de direitos humanos do país. No fim, o Brasil não aderiu à declaração que citava crimes contra a humanidade de Ortega e defendeu uma “posição construtiva” do Brasil no trato com o regime.

“Não se trata de suavizar, e sim de abrir espaço para o diálogo, que é parte essencial da diplomacia. O primeiro passo, na opinião do Brasil, deve ser sempre a tentativa de buscar um entendimento, quem conhece a história da política externa brasileira sabe disso”, defendeu o chanceler Mauro Vieira ao Estadão na época.

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Ao mesmo tempo, outra encrenca se desenrolava para a diplomacia brasileira: O bispo Rolando José Álvarez Lagos, crítico de Ortega, foi condenado a 26 anos e 4 meses de prisão por “traição à pátria”. A prisão provocou críticas do Vaticano e o para Francisco se referiu a Ortega como “desequilibrado” e disse que o país é uma “ditadura grosseira”.

Em junho daquele ano, durante uma viagem ao Vaticano, o papa pediu a Lula para interceder junto a Ortega, o que o brasileiro disse que o faria. Recentemente, Lula disse que Ortega nunca atendeu as suas ligações.

“Na América Latina, ir contra a igreja católica custa muito alto e eu acho que parte desse custo fez com que a situação do Ortega e do Lula ficasse mais distante. Certamente qualquer partido político ou força política que comece a atacar a igreja católica fica numa situação muito delicada”, afirmou Paz.

No movimento mais recente, a Nicarágua expulsou o embaixador brasileiro Breno de Souza Brasil Dias da Costa por ele não ter comparecido na celebração dos 45 anos da Revolução Sandinista. Segundo apurou o Estadão, ao ser notificado sobre a queixa, o governo brasileiro chegou à pedir à Nicarágua que ponderasse, mas ficou sem resposta.

Hoje, o governo Lula expulsou, em um gesto de reciprocidade, a embaixadora da Nicarágua no Brasil Fulvia Patricia Castro Matu.

“Como a Nicarágua não é exatamente parte desse grande movimento internacional como foi Cuba, por exemplo, e não tem tanta relevância para o Brasil em termos políticos e econômicos, a relação ficou um pouco encostada esse tempo todo e ninguém deu muita falta da Nicarágua. Dá falta agora quando o evento desse acontece”, completa Leonardo Paz.

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