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Entenda como batalhas judiciais enfraqueceram o sistema de cotas raciais nos EUA

Após décadas de aprovação pública, as ações afirmativas estão novamente sob ataque nos Estados Unidos

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Por Jerome Karabel

THE NEW YORK TIMES — No histórico discurso que pronunciou na cerimônia de formatura da Universidade Howard, em 4 de junho de 1965, o então presidente americano, Lyndon Johnson, expôs as bases intelectuais e morais das ações afirmativas. Falando menos de um ano depois da aprovação da Lei dos Direitos Civis e dois meses antes da aprovação da Lei dos Direitos de Voto, ele invocou uma metáfora que permanece ressonante 50 anos depois: “Nós não podemos libertar uma pessoa que passou anos acorrentada, levá-la à linha de partida da corrida e dizer-lhe, ‘Você é livre para competir com todos os outros’, acreditando honestamente que fomos completamente justos”.

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Tendo em conta a conclamação de Johnson e respondendo a demandas do movimento de direitos civis por justiça racial, muitas faculdades e universidades seletivas alteraram suas políticas de admissão com o objetivo expresso de aumentar o número de estudantes negros. A necessidade por mudança era incontestável: até 1960, apenas 15 alunos (0,5%) aprovados em Harvard, Yale e Princeton eram pretos.

Na Escola de Medicina da UCLA, que como outras instituições da Universidade da Califórnia seguiu uma política oficial de não considerar a cor das pessoas nas admissões, nenhum negro recebeu grau de doutor em medicina entre 1955 e 1968. Entre os profissionais do direito, incluindo formandos de cinco faculdades historicamente negras, menos de 1% eram pretos em 1968. As ações afirmativas ofereceram um caminho para que diferenças imensas entre circunstâncias pessoais fossem levadas em conta para consertar um erro histórico.

Pessoas ouvem alto-falantes enquanto esperam em frente à Suprema Corte dos EUA, enquanto os juízes se preparam para emitir suas decisões mais importantes do ano sobre ações afirmativas, em Washington, DC, EUA, 22 de junho de 2023.  Foto: SHAWN THEW / EFE

Após uma breve lua de mel com a aprovação do público, as ações afirmativas passaram a ser afrontadas por reações poderosas e têm estado sob ataque desde então. Décadas de processos judiciais e legislações desgastaram o uso das preferências raciais. E agora, em uma decisão por 6 a 3, a Suprema Corte as sepultou definitivamente.

A intensidade e a duração do ataque são tristes confirmações de que muitos americanos continuam relutantes em acertar as contas com a barbaridade da nossa história racial. Todos os períodos de progresso para as pessoas negras foram afrontados por reações racistas. Em resposta à Reconstrução, os brancos do Sul desenvolveram uma história inteiramente nova e mítica a respeito da escravidão, da Guerra Civil e da própria Reconstrução.

Negação da história

Mais de um século depois, essa insistência em negar a história está viva. Vejam as leis em um número crescente de Estados conservadores que proíbem o ensino da verdade a respeito da opressão racial, ameaçando com demissões e possivelmente até cadeia professores que ousam desafiá-las.

As ações afirmativas eram, na melhor acepção, uma forma modesta de compensar séculos de exploração e exclusão — muito inferiores às reparações reivindicadas por mais de três quartos dos negros americanos. Mas elas produziram ganhos importantes: maior presença de pretos nas faculdades e escolas profissionalizantes, um número crescente de afro-americanos na classe média e mais minorias em posições de liderança em instituições importantes.

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A eliminação das ações afirmativas é um retrocesso monumental para a justiça racial, ocasionará provavelmente um declínio substancial na diversidade racial e étnica nas nossas principais faculdades e universidades e com o tempo estreitará o canal que gerou uma classe mais diversa — e representativa — de líderes.

Quase imediatamente, foi o elemento de reparação das ações afirmativas que provocou a oposição mais passional. Já em 1970, a relevante revista Public Interest, de ensaios sobre política, publicou um artigo denunciando o que críticos classificavam como cotas na Escola de Direito de Yale. No ano seguinte, o New York Times publicou um artigo de opinião do proeminente filósofo Sidney Hook alegando que o governo federal estava pressionando instituições de educação superior para discriminar candidatos qualificados. Em 1972, a acusação de discriminação reversa foi publicada no Wall Street Journal e outros meios de imprensa e depois plenamente elaborada no influente livro de Nathan Glazer, “Discriminação afirmativa”.

Juntamente com o assalto ideológico em escalada emergiu um sério desafio jurídico. Em 1971, Marco DeFunis Jr, um aluno branco que veio a cursar graduação na Universidade de Washington e integrar a fraternidade Phi Beta Kappa, abriu um processo argumentando que fora preterido pela faculdade de direito da instituição em favor de candidatos menos qualificados.

Em setembro de 1971, um tribunal concordou com sua argumentação, determinando que ele fosse admitido a tempo do início daquele ano letivo, no terceiro trimestre. A universidade atendeu à ordem, mas apelou da decisão, requerendo que o caso subisse diretamente para a Suprema Corte do Estado de Washington.

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Em março de 1973, o tribunal decidiu favoravelmente à Universidade de Washington em um placar de 6 a 2, declarando que a instituição tinha interesse público genuíno em produzir um corpo estudantil equilibrado racialmente. Mas dois ministros levantaram divergências ruidosas, com um deles declarando que “sectarismo racial, preconceito e intolerância nunca terão fim por meio da exaltação de direitos políticos de um grupo ou classe em detrimento de outrem”.

DeFunis, quase na metade do segundo ano de direito, não teve muita vontade de apelar, mas seu advogado lhe explicou que a faculdade agora estava legalmente autorizada a dispensá-lo se assim lhe aprouvesse. A Suprema Corte dos Estados Unidos julgou o caso em fevereiro de 1974, DeFunis já cursava o último semestre. A corte, bastante ciente de que as ações afirmativas eram um tema espinhoso, classificou o caso como controvertido em decisão de abril de 1974, por 5 votos a 4.

Luta pelas cotas na justiça

Allan Bakke — um californiano branco que tinha sido rejeitado duas vezes pela Escola de Medicina Davis, da Universidade da Califórnia — acompanhou o caso de DeFunis com imenso interesse. Dois meses depois, ele abriu um processo contra a instituição, argumentando que tinha sido rejeitado em favor de candidatos menos qualificados oriundos de minorias. Em setembro de 1976, a Suprema Corte da Califórnia ficou do lado de Bakke por 6 votos a 1, declarando que “o princípio de que a Constituição sanciona discriminação racial contra uma raça — qualquer raça — é um conceito repleto de potencial para usurpação”.

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A Universidade da Califórnia apelou da decisão, e quando o caso chegou à Suprema Corte dos EUA para a argumentação oral, em outubro de 1977, ficou claro que a opinião pública era decisivamente contrária ao tratamento preferencial com base em raça nas admissões universitárias.

Consultados por uma pesquisa Gallup de 1977 se, “para compensar discriminações passadas (…) membros de grupos minoritários deveriam receber tratamento preferencial na obtenção de empregos e vagas em faculdades” ou se “a aptidão, conforme determinada por resultados de provas, deve ser o principal fator em consideração”, 84% dos entrevistados brancos e 55% dos negros mostraram-se favoráveis à seleção segundo aptidão.

Naquele momento, a escola de medicina reservava 16 vagas para estudantes de minorias. Quatro ministros da corte votaram favoravelmente àquela cota, argumentando que “nós não podemos (…) permitir que um daltonismo se torne uma miopia que mascare a realidade de que muitas pessoas ‘nascidas iguais’ têm sido tratadas contemporaneamente como inferiores tanto pela lei quanto por seus concidadãos”.

A decisão concluiu que o governo, neste caso encarnado por uma universidade pública, “pode levar raça em consideração quando não agir para aviltar ou insultar qualquer grupo racial, mas em vez disso remediar desvantagens impingidas sobre minorias por preconceitos raciais sofridos”.

Os quatro ministros mais conservadores discordaram vigorosamente, citando o Artigo 6.º da Lei dos Direitos Civis para argumentar que “raça não pode servir como base para excluir nenhum indivíduo de participação em um programa financiado federalmente” e que o campus de Davis violou a lei porque “impediu Bakke de participar de seu programa de educação médica em razão de sua raça”.

O voto decisivo coube, então, ao ministro Lewis Powell, um distinto milionário da Virgínia nomeado por Richard Nixon. Suas visões profundamente conservadoras se revelaram em um memorando confidencial que ele redigiu para a Câmara de Comércio dos EUA apenas dois meses antes de sua indicação para a Suprema Corte. Mas em relação às ações afirmativas, ele, assim como muitos outros membros da elite, era moderado, e portanto ele buscou um meio-termo.

Alinhando-se com seus colegas conservadores sobre o tema das cotas, Powell declarou seu uso pelo programa Davis inadmissível; além disso, ele rejeitou categoricamente a contestação de seus colegas mais progressistas dando afirmando que preferências são justificáveis em razão do longo histórico americano de escravidão e segregação, descartando o argumento da discriminação social classificando-o como “um conceito amorfo de injúria que deve ser intemporal em seu alcance sobre o passado”.

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(O ministro Thurgood Marshall, que tinha representado o lado querelante em Brown versus Diretoria de Ensino de Topeka e era o único membro afro-americano da corte, notou incisivamente, “É mais que uma ironia ingênua que, após várias centenas de anos de discriminação com base em classe contra negros, a corte esteja relutante em sustentar que um remédio com base em classe para aquela discriminação seja permissível”.)

Mas Powell não descartou as considerações raciais totalmente. Ele identificou o que viria a se tornar uma argumentação mais palatável para levar raça em conta na admissão universitária: obter “os benefícios educacionais que fluem de um corpo estudantil etnicamente diverso”.

Detentor de mestrado da Escola de Direito de Harvard, Powell apontou para o “programa Harvard College” como um “exemplo iluminado” que evitou cotas ao mesmo tempo que considerou raça um fator adicional, entre muitos, na determinação de que candidato admitir. “Representação de minorias no corpo da graduação”, escreveu ele (citando o termo com o qual Harvard descreve seus processos de admissão), representou um “premente interesse público”, pois “a diversidade adiciona um ingrediente essencial para o processo educacional”.

Com as ações afirmativas sob constante ataque intelectual havia quase uma década e rejeitadas pela maioria dos americanos, a Suprema Corte declarou que a razão fundamental para considerar raça em admissões universitárias — enquanto remédio para séculos de opressão racial na história — não tinha sustentação legal. As ações afirmativas estavam por um fio, dependendo da maioria mais tênue da Suprema Corte. Outras interpelações jurídicas não tardariam em aparecer.

Disputa legislativa

Mas o seguinte golpe significativo contra as ações afirmativas viria não das cortes, mas dos eleitores. Na esteira de disputas raciais cada vez mais intensas, exemplificadas pela aprovação, em 1994, da ferozmente anti-imigração Proposição 187, na Califórnia, o então governador do Estado, Pete Wilson, que albergava ambições presidenciais, deu apoio à Proposição 209, numa consulta eleitoral sobre ações afirmativas astutamente batizada de Iniciativa por Direitos Civis na Califórnia.

Sob uma bandeira de ausência de preconceito em relação à cor da pele, a proposta pedia que instituições do governo fossem proibidas de levar em consideração raças na educação pública, no funcionalismo  público e em contratações privadas. Depois de uma campanha duramente contestada, a legislação foi aprovada por 55% dos votos, contra 45%, com rejeição de uma maioria de eleitores negros, hispânicos, asiáticos e judeus.

O sucesso da proposta foi seguido de derrotas para as ações afirmativas em Washington, Michigan, Nebraska, Arizona e Oklahoma; banimentos legislativos em New Hampshire e Idaho; e um banimento por ordem executiva na Flórida. Em 2020, a Proposição 16, que pretendia restaurar as ações afirmativas na Califórnia, foi derrotada por 57% contra 43% — uma margem maior do que a aferida na votação da proposta contrária às ações afirmativas 24 anos antes.

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Esses desdobramentos deram força ao movimento contra as ações afirmativas, e pesquisas nacionais deixaram pouca dúvida de que ele refletia a visão da maioria dos americanos. Em quatro pesquisas Gallup realizadas entre 2003 e 2016, de 67% a 70% dos americanos disseram-se favoráveis à aprovação de candidatos na faculdade “somente com base no mérito”, enquanto de 23% a 28% responderam considerar que “a origem racial e étnica do candidato ajuda a promover diversidade em instituições universitárias”.

Estudos mais recentes, do Pew Research Center, apontam para a mesma direção: em 2022, enquanto 93% dos americanos consideravam as notas do ensino médio avaliações legítimas para admissões em universidades, 85% preferiam vestibulares padronizados e apenas 26% apoiavam levar-se em conta raça e etnia.

Mas a Suprema Corte, pelo menos por princípio, deve seguir a lei e a Constituição, não a opinião pública. Em decisões importantes a respeito de ações afirmativas, em 2003 (Grutter versus Bollinger) e 2016 (Fisher versus Universidade do Texas), a corte sustentou novamente — em ambos os caso em uma única votação — o direito das universidades considerarem raça um fator na admissão dos alunos.

A ministra Sandra Day O’Connor deu o voto de Minerva em 2003 e além de citar o argumento pela diversidade sustentado por Powell ofereceu uma nova justificativa para as ações afirmativas: “Para se cultivar uma geração de líderes com legitimidade aos olhos da cidadania, é necessário que o caminho para a liderança esteja visivelmente aberto para indivíduos talentosos e qualificados de todas as raças e etnias”.

Ativistas em manifestação pelo julgamento na Suprema Corte de dois casos com poder de decidir o futuro das ações afirmativas nas admissões em faculdades, em Washington, 31 de outubro de 2022. A Suprema Corte decidiu na quinta-feira, 29 de junho de 2023, que as faculdades e universidades devem parar de considerar a raça nas admissões, forçando as instituições de ensino superior a procurar novas maneiras de obter corpos estudantis diversificados. Foto: J. Scott Applewhite / AP

Claramente influenciada por considerações solicitadas pela corte a líderes empresariais e comandantes militares, sua argumentação, que sublinhou uma preocupação com a manutenção da legitimidade da ordem social, relevou o lapso entre perspectivas elitistas e populares sobre a questão. Apesar de salvar as ações afirmativas, O’Connor permaneceu ambivalente, expressando sua convicção de que “daqui a 25 anos, o uso das preferências raciais não será mais necessário”.

A Suprema Corte não esperou tanto tempo. Em sua nova decisão, o tribunal afirmou que as preferências raciais violam a cláusula de proteção de igualdade da 14.ª Emenda. A decisão do presidente da corte, John Roberts, esclareceu que “nada nesta opinião deveria ser interpretado como uma proibição para as universidades levarem em conta as narrativas dos candidatos em relação ao modo que a raça afetou sua vidas, seja por discriminação, inspiração ou além”.

Impacto da decisão da Suprema Corte americana

Com as ações afirmativas de consciência racial deixando de ser permitidas, vale notar que a decisão da Suprema Corte deixa intacta muitas outras formas de ações afirmativas — preferências por filhos de ex-alunos, filhos de doadores ou estudantes atletas, incluindo esportes elitistas como vela, esgrima e squash.

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As consequências desta mudança não são inteiramente previsíveis, mas com base no que aconteceu nas Universidades do Michigan e da Califórnia, em Berkeley, depois que as instituições foram impedidas de aplicar políticas de consciência racial, um acentuado declínio em matrículas de alunos negros e talvez hispânicos em faculdades e escolas profissionalizantes altamente seletivas parece quase certo.

Para compensar a perda, muitas faculdades deverão se voltar para ações afirmativas com base em classe econômica. Essa política atenuaria, mas de nenhuma maneira eliminaria, o impacto racial da decisão da Suprema Corte.

Ações afirmativas com base em classe econômica deverão desfrutar de maior apoio do público do que as ações afirmativas com base em raça. De acordo com uma pesquisa recente do Washington Post, 62 % dos americanos acreditam que estudantes de famílias de baixa renda têm uma desvantagem injusta ao tentar entrar em uma boa faculdade.

Mas ações afirmativas, em si, sejam com base em raça ou classe econômica, são uma ferramenta limitada demais para realizar o sonho do grande movimento de direitos civis dos anos 60 por igualdade racial plena. Conforme enfrentarmos um mundo sem ações afirmativas de consciência racial, nós faríamos bem em recordar o conselho do reverendo dr. Martin Luther King Jr, de que para produzir igualdade real, “o movimento deve se dedicar à reestruturação da sociedade americana como um todo”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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