O anúncio do Fundo Monetário Internacional (FMI) de que chegou a um acordo com o governo da Argentina para o desbloqueio de US$ 4,7 bilhões na quarta-feira, 10, reflete o período de lua de mel entre a entidade e o presidente da Argentina, Javier Milei, segundo analistas entrevistados pelo Estadão. O acordo entre FMI e Buenos Aires permite que os argentinos paguem as dívidas do país com a entidade para janeiro, retirando a possibilidade de um calote argentino, e abre caminho para a entrada de recursos em moeda forte no país, essenciais para a estabilização da economia.
Segundo o comunicado oficial divulgado pelo FMI, foram alcançados entendimentos para restaurar a estabilidade macroeconômica da Argentina. O Fundo também destaca que o presidente do país, Javier Milei, e sua equipe econômica agiram “rápida e decisivamente” para implementar um “forte pacote de políticas para restaurar a estabilidade macroeconômica e estão totalmente determinados a colocar o atual programa de volta no caminho certo”.
Para que ocorra a transferência do montante, ainda é necessário que o Conselho Executivo do Fundo aprove o desbloqueio para Buenos Aires.
“O anúncio do FMI foi um alívio”, descreveu o economista da Universidade de Buenos Aires (UBA), Fabio Rodriguez. “A Argentina tinha um prazo que estava chegando e não tinha os dólares para pagar, então esta medida é positiva”. Durante o governo de Mauricio Macri, a Argentina entrou em um acordo para conseguir diversos empréstimos com o FMI. A administração de Alberto Fernández reajustou os termos para negociar a dívida em 2022, mas não conseguiu cumprir as metas acordadas. Além dos US$ 4,7 bilhões que serão enviados a Buenos Aires, o país já tem uma dívida de US$ 44 bilhões com o FMI.
O comunicado do FMI descreveu os diversos compromissos assumidos pelo governo Milei para o repasse do montante como a meta de um superávit primário de 2% do PIB para este ano, o aumento das reservas internacionais, corte de gastos públicos, além de uma busca pela estabilização do câmbio argentino com a eliminação de restrições cambiais e práticas monetárias. O acordo foi feito por emissários do FMI com o ministro da Economia da Argentina, Luis Caputo, em reuniões que ocorreram em Buenos Aires nesta semana.
A entidade também aponta que o “plano de estabilização” de Milei deve aumentar as reservas cambiais líquidas para US$ 10 bilhões até o final do ano.
De acordo com declarações de Caputo, o FMI estaria disposto a uma renegociação de toda a dívida argentina, mas é cedo demais para que uma negociação seja concretizada.
Chancela
Rodriguez destaca que o FMI tem um alinhamento claro com a orientação política do governo do libertário, mas que as garantias dadas por Milei precisam de uma chancela política que ainda não tem. “Existem muitos questionamentos, muitas coisas que o governo Milei terá que passar pelo Congresso argentino e ainda não passou. Acredito que o FMI vai ficar de olho se as medidas de Milei pelo DNU e a chamada Lei Ônibus vão vigorar. Ainda existe bastante incerteza”.
Nas primeiras duas semanas de mandato, Milei anunciou um DNU (Decreto de Necessidade de Urgência), que ficou conhecido na Argentina como “decretaço” que altera 350 normas em diferentes áreas para mudar diversos setores da economia argentina. O texto, que teve a sua legalidade questionada por juristas, foi enviado ao Congresso argentino na primeira semana de governo.
No dia 3 de janeiro, a reforma trabalhista, uma das partes do pacote de Milei, foi revogada pela Justiça da Argentina. A suspensão temporária foi decidida na Câmara Nacional de Apelações do Trabalho, representando o primeiro revés no controverso plano de reforma econômica proposto pelo libertário.
Saiba mais
Segundo a mídia argentina, Milei pode estar usando os trâmites do Congresso para fazer com que o texto não seja votado por deputados e senadores. O atual presidente não tem maioria nas casas legislativas. Quando isto ocorre, o DNU pode vigorar mesmo sem a aprovação do Legislativo.
O governo argentino também tenta passar a Lei de Bases e Pontos de Partida para a Liberdade dos Argentinos, que ficou conhecida no país como “Lei Ônibus”, um pacote amplo de reformas que o libertário quer aprovar que estão relacionadas a privatizações, mudanças econômicas e até contratuais. Lei Ônibus é um amplo conceito usado para descrever um projeto de lei que contém muitas reformas. Este formato legislativo é normalmente utilizado pelos novos governos no início do seu mandato.
Em uma movimentação política criticada por diversos setores de oposição, a nova lei de Milei dá ao poder Executivo diversas faculdades legislativas e propõe a imposição de um estado de “emergência pública em questões econômicas, financeiras, fiscais, de seguridade social, segurança, defesa, tarifas, energia, saúde, administrativas e sociais até 31 de dezembro de 2025″, que pode ser prorrogado “pelo poder executivo nacional por um período máximo de dois anos”.
O FMI já enviou o recado que espera que o governo Milei consiga o respaldo necessário para aprovar a medida. “Existem aspectos deste projeto de lei que tem implicações fiscais importantes e esperamos que as autoridades continuem construindo apoio político para avançar em aspectos chave deste projeto de lei”, apontou a diretora de comunicações do FMI, Julie Kozak na quinta-feira, 11.
Alinhamento
O desbloqueio do dinheiro é um voto de confiança do FMI em Milei e pode ser usado como um ativo político, avalia Maria Lourdes Puente, cientista política e diretora da Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina (UCA). “Milei apontou que gostaria de um alinhamento com os Estados Unidos e com o Ocidente e a consequência deste alinhamento é este voto de confiança”.
Apesar disso, a cientista política destaca que este alinhamento de Milei não destrava o seu caminho para passar a Lei Ônibus porque muitos congressistas argentinos são contra esta posição do presidente libertário. Milei terá de se esforçar para ter governabilidade no Congresso já que a sua coalizão, Liberdade Avança, tem 38 deputados e oito senadores, exigindo uma negociação com alas do peronismo para a aprovação de qualquer tipo de projeto. Para ter maioria na Câmara dos Deputados, o presidente precisaria de 129 congressistas. “O voto de confiança do FMI é um respiro para o governo, mas não é suficiente”, opina Lourdes Puente.
Segundo o jornal argentino Clarin, os congressistas da oposição que não fazem parte do kirchnerismo estão se organizando para analisar todos os pontos da Lei Ônibus e que algumas partes do pacote de Milei não devem ser aprovadas. Os congressistas reclamam que desde que Milei chegou ao poder, não houve uma conversa entre todos os blocos do Congresso argentino. O presidente da Câmara dos Deputados da Argentina, Martim Menem, está concentrando as negociações e consulta a ala governista em cada pedido de mudança da oposição.
Congressistas do Liberdade Avança, a coalizão de Milei, relataram ao jornal argentino que existe uma dificuldade de negociação porque Milei não destacou quais pontos do projeto são inegociáveis e o que é mais maleável.
“A oposição está dividida entre quem aposta no fracasso iminente de Milei e os que decidem respeitar o voto e estão tentando ajudar o presidente para que ele tenha alguma governabilidade”, diz a diretora da Escola de Política e Governo da Universidade Católica Argentina (UCA). Congressistas do PRO, União Cívica Radical (UCR) e Coalizão Cívica ARI fazem parte deste bloco.
A especialista avalia que os congressistas argentinos estão sentindo falta de um negociador no governo Milei que consiga fazer o projeto avançar. “Milei disse que não quer governar com ninguém e tem o poder do voto, mas agora deve vir o choque de realidade”.
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