Donetsk, na Ucrânia, e Kursk, na Rússia, foram as cidades-chave do conflito no leste europeu em 2024. Com as eleições nos Estados Unidos e uma possível vitória de Donald Trump — que se confirmou em 5 de novembro — os dois países pareceram focar, ao longo do ano, em ganhos territoriais que pudessem ajudá-los em caso de um possível cessar-fogo, tendo em vista as promessas do republicano pelo fim do conflito.
A Rússia concentrou seus esforços em consolidar seus ganhos no leste, especialmente na região de Donetsk, enquanto a Ucrânia surpreendeu com uma incursão terrestre em Kursk, em agosto, buscando garantir uma vantagem estratégica que pudesse servir como moeda de troca em eventuais negociações.
Veja abaixo infográficos para entender a situação da guerra na Ucrânia
O avanço do controle russo
No geral, as forças russas teriam capturado cerca de 800 km² de território ucraniano em 2024, segundo o Instituto para Estudos sobre a Guerra. O ministro da Defesa da Rússia, Andrei Belousov, declara um número muito mais expansivo: segundo ele, as tropas russas tomaram quase 4.500 km² de território ucraniano este ano e conquistam quase 30 km² por dia.
Dois anos após a invasão, a Ucrânia recapturou 54% do território ocupado, enquanto a Rússia ainda ocupa 18% do país, segundo o Global Conflict Tracker, do think thank americano Council on Foreign Relations.
Em comparação com anos anteriores, 2024 marcou uma fase de consolidação russa, contrastando com os avanços iniciais de 2022, quando a Rússia capturou rapidamente áreas no sul e no leste, incluindo Kherson, Zaporizhzhia e partes de Donetsk e Luhansk. Este ano, as tropas de Putin consolidaram seu domínio em regiões estratégicas da Ucrânia, principalmente em Donetsk.
Segundo o ministro da defesa russo, a Ucrânia controla menos de 1% da região leste de Lugansk e entre 25% e 30% do território nas regiões de Donetsk, Kherson e Zaporizhzhia.
Nos últimos meses, as tropas russas focaram sobretudo em Donetsk, avançando na região no ritmo mais rápido desde 2022, capturando centenas de quilômetros quadrados a cada mês, aproveitando sua enorme vantagem de mão de obra ao romper posições ucranianas enfraquecidas pela escassez de tropas.
Analistas dizem que a Rússia está correndo para garantir o máximo de ganhos territoriais possível tendo em vista a chegada de Donald Trump à Casa Branca e a possibilidade de um cessar-fogo que congele a situação territorial do conflito.
A região de Donetsk, rica em recursos industriais e de importância histórica, é central para as ambições russas de consolidar um corredor terrestre que conecte os territórios ocupados no Donbass à Crimeia. Esse avanço incluiu o controle de cidades como Vuhledar e ameaçou áreas cruciais como Toretsk e Pokrovsk, um importante centro ferroviário e rodoviário para o exército ucraniano.
“Se os russos tomam Pokrovsk, a geografia ajuda muito. Porque eles conseguiriam vencer a última cadeia de elevações no Donbass, aí o único obstáculo natural seria o Rio Dniepre”, explica Sandro Teixeira Moita, professor de Ciências Militares da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército (Eceme).
Segundo o jornal americano The New York Times, Emil Kastehelmi, um analista militar do think thank finlandês Black Bird Group, estimou que de setembro a novembro, a Rússia tomou mais de 1.554 km² de território ucraniano, quase o dobro do tamanho da cidade de Nova York, quase tudo na região de Donetsk.
Incursão ucraniana em Kursk
No início de agosto, uma incursão ucraniana pegou Putin de surpresa. Essas tropas avançaram rapidamente cerca de 30 km. Após duas semanas, as autoridades ucranianas alegaram controlar mais de 1.200 km² de território russo e 93 aldeias, no que o governo russo chamou de “provocação em grande escala”.
Quatro meses após a incursão, a Rússia já recuperou mais da metade do território que a Ucrânia alegou ocupar em agosto. Um dos aparentes objetivos de Kiev era atrair reservas russas para a área, potencialmente enfraquecendo as operações ofensivas de Moscou em várias partes da região oriental de Donetsk — algo que não deu certo.
Mesmo assim, a incursão deverá continuar sendo um ponto importante a ser observado na guerra em 2025. Primeiramente, se as tropas ucranianas conseguirem manter o território pelos próximos meses, a região pode ser uma moeda de troca a favor de Zelenski para qualquer negociação de paz. Devido à relação amistosa de Trump com Putin, a Ucrânia teme ser forçada a assinar um acordo no qual sairá perdendo. Por isso, ganhos no território inimigo podem dar algo em troca em uma possível negociação.
“Desde fevereiro, os russos têm sistematicamente ganhado terreno e com o prenúncio de uma eleição (com a vitória) de Trump nos Estados Unidos, isso pareceu se tornar um fato que pressionou o governo ucraniano a gerar alguma coisa que lhe colocassem uma boa medida em uma negociação de paz”, diz Teixeira.
A segunda razão é a Coreia do Norte. Cerca de três meses após a incursão, a Coreia do Sul, juntamente à Ucrânia e ao Ocidente, revelou a presença de soldados norte-coreanos apoiando as forças russas na região. A estimativa era de que 10 a 12 mil soldados de Kim Jong-un foram enviados, como uma troca pelo fornecimento de tecnologias de Moscou a Pyongyang.
Mas o aparecimento das tropas na região pode ser apenas um primeiro sinal de um envolvimento ainda maior de um terceiro ator na guerra no próximo ano. Isso porque, no dia 4 dezembro, entrou em vigor um pacto de defesa mútua assinado por Putin e Kim, que prevê a “assistência militar mútua imediata” em caso de um ataque contra um dos dois países.
ATACMS x Oreshnik
Nos últimos meses de 2024, a guerra na Ucrânia registrou uma escalada bélica. Em uma aparente resposta aos envios das tropas norte-coreanas para Kursk, Washington autorizou que a Ucrânia usasse mísseis de longo alcance (ATACMS, na sigla em inglês) americanos contra o território russo. Zelenski já tinha esses mísseis em seu arsenal desde 2023, mas até então não estava autorizado a usar através da fronteira.
Antes de permitir que a Ucrânia lançasse esses mísseis contra a Rússia, Biden dizia que os EUA queriam “evitar uma Terceira Guerra”, temendo qual seria a resposta russa. E essa resposta não demorou a chegar: poucos dias após o anúncio americano, Putin ordenou a produção massiva de um míssil hipersônico até então desconhecido na guerra, o Oreshnik, e o utilizou pela primeira vez contra a Ucrânia.
Os mísseis ATACMS têm um alcance máximo de 300 quilômetros com uma ogiva contendo cerca de 170 kgs de explosivos. Já o Oreshnik foi projetado para carregar ogivas nucleares e pode atingir vários alvos ao mesmo tempo – além de alcançar uma velocidade de até 3 quilômetros por segundo.
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Agora, Putin tem usado o Oreshnik como uma carta de chantagem, ameaçando bombardear centros de tomada de decisão em Kiev e países aliados da Ucrânia que fornecem armas de longo alcance.
“É interessante perceber como os russos sinalizaram que isso (o míssil hipersônico) é uma bandeira. É como se eles dissessem, ‘isso é uma linha vermelha para mim’. E de certa maneira, essa questão da dissuasão russa funciona. A gente não está vendo grandes ataques ucranianos fora os que a gente viu logo antes da utilização do Oreshnik”, pontua Teixeira.
Mas até agora, não está claro se essas armas permanecerão em jogo em 2025. Trump afirmou em um artigo da revista Time que se opõe “veementemente” ao uso de mísseis ATACMS. E talvez os ucranianos, caso percebam que podem ocupar um lugar de detrimento, podem aproveitar o intervalo de tempo antes da posse do republicano para uma nova escalada.
“A depender de como as sinalizações do governo Trump apareçam, a gente poderá sim ver uma questão perigosa até a a posse”, diz Teixeira. “Se o governo ucraniano sentir que vai ser jogado fora com a água do banho (referência a um ditado inglês em que algo de valor é eliminado ao tentar se livrar de algo indesejado), pode ser que tome algumas atitudes mais radicais, até para tentar amarrar o Ocidente na guerra, não seria estranho essa rota de colisão”, avalia.
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