Entenda em um guia simples como fica a Argentina no segundo ano de governo de Javier Milei

Após um primeiro ano de vitórias econômicas, o argentino terá que lidar com o avanço da pobreza, o controle cambial, sua governabilidade frágil e eleições legislativas em 2025

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Foto do author Carolina Marins

Em seu discurso de aniversário de um ano de governo, em 10 de dezembro, o presidente argentino, Javier Milei, prometeu que “virão tempos felizes na Argentina”. Em júbilo pelo seus resultados econômicos de 2024, o libertário terá uma série de desafios pela frente. Desde antigas promessas não cumpridas de campanha, à manutenção dos bons resultados macroeconômicos sem sacrificar ainda mais a vida dos argentinos, passando por uma eleição de meio de mandato que promete ser sua próxima prova de fogo.

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Os “tempos felizes” contrastam com os “tempos difíceis” que Milei profetizou em seu discurso de posse. Com a promessa de passar a motosserra em nome de alcançar o déficit zero, o presidente cortou repasses federais, congelou obras públicas, desvalorizou o peso a ponto de despencar o consumo, cortou subsídios e reduziu a máquina pública. Para 2025, ele fala em “motosserra profunda”, com o fim de quase todos os impostos, eliminação do controle cambiário e um livre comércio com os Estados Unidos.

“Para 2025, ele vai inicialmente reforçar a linha da política econômica em que o superávit é inegociável. E parece que vai agregar reformas. A promessa será em 2025 aprofundar reformas profundas relacionadas à tributação e reformas trabalhistas”, aposta o economista da UBA (Universidade de Buenos Aires) Fabio Rodriguez.

Vamos continuar nosso programa de ajuste para poder reduzir impostos e devolver o dinheiro ao setor privado, e vamos colocar em discussão uma agenda de reformas profundas, desenvolvidas sobre os pilares que lhes contei hoje, para que a sociedade escolha legalmente que país quer. Uma reforma tributária, uma reforma previdenciária, uma verdadeira reforma trabalhista, uma reforma nas leis de segurança nacional, uma profunda reforma penal, uma reforma política e tantas outras reformas que o país deve há décadas.”

Javier Milei em discurso de um ano de governo

O presidente da Argentina, Javier Milei  Foto: Matilde Campodonico/AP

A reforma tributária já foi anunciada no discurso do dia 10 e surpreendeu mesmo os mais acostumados com a motosserra. “Minha equipe está finalizando nestes dias uma reforma tributária estrutural que reduzirá em 90% a quantidade de impostos nacionais e devolverá às províncias a autonomia tributária que nunca deveriam ter perdido. Assim, no próximo ano veremos uma verdadeira competição fiscal entre as províncias argentinas para ver quem atrai mais investimentos.”

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No passado, o corte de impostos e repasses às províncias colocou Milei em rota de colisão com governadores, ameaçando a sua governabilidade. Até hoje, as bases do governo se equilibram em cordas bambas, tornando a aposta novamente arriscada.

Saída do ‘cepo’

O que também ficará para o ano entrante é a antiga promessa de campanha de eliminar o chamado “cepo”. O controle cambiário - que existe há anos na Argentina, mas ganhou os formatos atuais durante o governo de Cristina Kirchner - tem o objetivo de conter a fuga de moeda estrangeira em um contexto de reservas negativas no Banco Central. A trava, porém, impede a compra de dólares, dificulta importações e desestimula o investimento.

No começo de dezembro, o ministro da Economia Luis Caputo viajou a São Paulo para se reunir com empresários brasileiros, determinado a convencê-los a voltar a investir na Argentina. O ministro, porém, foi recebido com a cobrança de levantar o cepo. “Estaremos em Buenos Aires assim que for liberado o cepo”, afirmou o presidente da Fiesp, Josué Gomes.

Embora atrasada, economistas indicam que o adiamento da saída foi acertada. “Existe uma restrição que é o fato de que o Banco Central não possui reservas suficientes. O risco de retirar as regulações cambiais é que isso levaria a um aumento significativo da demanda de divisas no mercado cambial e, se essa demanda não for igualada com uma oferta similar, então a diferença tem que ser coberta pelo Banco Central com suas reservas”, explica o economista Juan Manuel Telechea.

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“Como o Banco Central hoje não tem suporte suficiente para enfrentar isso, então o governo, na minha opinião de forma prudente, optou por postergar a saída do controle cambial até que tenha reservas suficientes”, conclui.

Aumentar as reservas seguirá como desafio para o governo em 2025. Quando Milei assumiu, o Banco Central argentino tinha mais de 11 bilhões de dólares líquidos negativos. Hoje este número está em em torno de 7 bilhões negativos. Uma melhora, mas ainda no vermelho e muito distante dos 10 bilhões positivos exigidos FMI (pelo Fundo Monetário Internacional).

O libertário Javier Milei toca o sino de abertura da Bolsa de Nova York em setenmbro de 2024 Foto: Seth Wenig/AP

Avanço da pobreza e queda no consumo

Um dos grandes desafios da segunda fase de Javier Milei na Argentina será a contenção da pobreza, que escalou em seu primeiro ano. O aumento deste indicador era previsto pelo libertário, visto o tamanho do ajuste que propunha. Não à toa, ele pediu resiliência de sua população, que o escutou. A dúvida é até quando esta resiliência dura.

Com a inflação disparada nos primeiros meses do ano e salários praticamente congelados, a taxa de pobreza chegou a 52,9% no primeiro semestre do ano. Desses, mais de 18% passaram fome sem conseguir acessar os artigos da cesta básica. Para somar, o fim dos subsídios do governo fez o preço dos serviços como energia, gás, água e plano de saúde dispararem. O transporte, muito utilizado pelos setores pobres da economia, teve uma explosão de preços.

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A queda da inflação, de 25% em janeiro para 2,4% em novembro foi uma vitória para o libertário, mas o índice não traduz tão fielmente o aperto que os argentinos têm enfrentado com suas contas diárias.

“O preço dos bens caíram bastante [em 2024], como por exemplo dos alimentos, mas os serviços aumentaram muito. Luz, gás, água, serviço médico, educação, transporte e combustível. Todos esses itens não estão totalmente refletidos em como a inflação é captada”, afirma Rodriguez. “O que acontece com muitas famílias é que elas pagam todos esses custos fixos e depois resta uma porção menor para consumir de sua renda. Isso influencia nesse comportamento do orçamento da família.”

A consequência foi uma queda substancial do consumo, que colocou a Argentina em recessão técnica por um período de tempo. Com os argentinos consumindo menos, setores essenciais da economia começaram a sofrer a até agora veem uma recuperação lenta. Para 2025, Milei terá de reverter as perdas de setores como comércio, serviços e indústria se não quiser criar outra crise pela frente, já que grande parte do PIB do país é impulsionado pelo consumo.

“Hoje o tipo de câmbio real da Argentina está em um nível extremamente baixo em termos históricos, e isso é um problema para a competitividade argentina. Não tanto para o setor agropecuário, mas sim para a indústria, que se vê ameaçada tanto pelo lado das importações como pelo lado do emprego. Aí existe um problema para a indústria e, sobretudo, para os produtos argentinos que têm dificuldade em competir com produtos estrangeiros que agora estão muito mais baratos”, exemplifica Telechea.

Pela primeira vez em muito tempo, a inflação deixou de ser a maior preocupação dos argentinos, segundo pesquisas de opinião. O que agora ocupa o topo da lista é a pobreza, seguida do desemprego. Duas pendências econômicas e sociais urgentes.

Milei faz discurso à nação em aniversário de um ano de seu governo Foto: Presidência argentina via AFP

Governabilidade

As conquistas econômicas de Milei só começaram a dar suas caras da metade do ano para frente, quando o libertário resolveu um problema que tirava o sono de analistas, economistas e investidores: a governabilidade.

Vindo de um partido recém-criado, sem quase nenhuma base de sustentação no Parlamento e nas províncias, a capacidade de governar do libertário era a grande incógnita um ano atrás. Por mais de uma vez sua frágil base de apoio quase esfarelou. E para o próximo ano continua ainda muito instável.

“Milei não se preocupou muito em construir uma maioria legislativa no Congresso, nem a nível federal com os governadores. Apelou para a opinião pública e para os apoios que conseguiu e que se manteve em torno de 50% todo o ano”, observa o analista político do observatório Pulsar da UBA Facundo Cruz.

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Com respaldo da opinião pública, o presidente contou com seus poderes por decreto e vetos a leis da oposição para governar. O resultado foi o menor número de leis aprovadas em um ano em comparação com outros presidentes. O primeiro ano de Milei teve 44 leis aprovadas, contra 119 de Cristina Kirchner no primeiro ano de seu segundo mandato, 97 de Mauricio Macri e 64 de Alberto Fernández, segundo levantamento de Facundo Cruz.

Milei simplesmente teve que construir aliança com um terço de cada uma das câmaras para bloquear eventuais pedidos de impeachment. E, acima de tudo, sustentar os vetos às iniciativas legislativas promovidas pela oposição. Isso faz de Javier Melei um presidente que trabalhou com a governabilidade do sistema político a partir de uma perspectiva muito defensiva.

Facundo Cruz, analista político do observatório Pulsar da UBA

Essa governabilidade frágil é o que gera preocupação em possíveis investidores, que temem o retorno de um cenário político instável demais para alavancar a economia. E isso se torna ainda mais sério considerando que 2025 é um ano de eleições legislativas na Argentina. Serão renovados 24 de 72 assentos do Senado e 127 de 257 do Congresso. A esperança de Milei é surfar em sua onda de alta aprovação para eleger mais senadores e deputados de seu partido, o A Liberdade Avança.

Amizade com Trump

Apesar dos enormes desafios que ainda tem pendente, Milei está animado para o ano que entra por um motivo quase pessoal: o retorno de Donald Trump ao comando da Casa Branca. Alinhados ideologicamente, Milei é um dos líderes mundiais preferidos do republicano, tanto que foi o primeiro a ser recebido na mansão do magnata após a sua vitória nos EUA.

A eleição do republicano energizou o libertário a escalar seu lado ideológico, com direito a expurgo da chancelaria argentina, troca de farpas com a política de Lula no G-20 e retirada da delegação argentina da COP-29. Os analistas, porém, são céticos do quanto isto vai se traduzir em aproximações reais entre EUA e Argentina.

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“Argentina talvez se beneficie da vitória de Trump porque pode aliviá-la em algo, não digo muito, na parte financeira. Por exemplo: conseguir um acordo aceitável com o FMI ou algum tipo de ajuda. Mas isso é tático, no curto prazo”, afirma Fabio Rodriguez.

“Depois há um canal comercial que, se acontecer o que muitos analistas preveem baseados nos anúncios de Trump, como aumentar as tarifas, impostos, menos cortes nas taxas de juros, dólares mais fortes, etc., isso pode provocar instabilidade nos interesses de economias emergentes. Nesse caso não nos escaparíamos dessa regra. É provável que isso no médio prazo seja um fardo para a Argentina como vai ser para o Brasil, para a Colômbia, para o México, para o Canadá, etc.”

Donald Trump em frente a uma imagem da capa da revista Time que o nomeou pessoa do ano de 2024 Foto: Alex Brandon/AP

Um Trump que ajude Milei a destravar as conversas com o FMI sobre a dívida bilionária do país, bem como a possibilidade de entrada de dólares no país pode até fazer o libertário chegar mais forte para as eleições de meio de mandato. A dúvida é com a promessa de livre comércio com o país do norte - indo contra as regras do Mercosul - em um cenário de um Trump ainda mais protecionista.

“A princípio, pelos menos pelos primeiros gestos, parece que vai haver boas relações pessoais entre ambos e, consequentemente, boas relações entre os países. Mas é uma grande incógnita porque estamos diante de dois políticos que circunscrevem suas relações estratégicas e políticas internacionais aos vínculos pessoais. E se o vínculo pessoal se danificar, então também se danifica o vínculo entre os países”, alerta Facundo Cruz.

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