A investigação do Tribunal Penal Internacional (TPI) sobre supostos crimes contra a humanidade cometidos pela ditadura de Nicolás Maduro na Venezuela foi reaberta nesta terça-feira, 27, depois do pedido do procurador Karim Khan para que o caso fosse retomado.
A Câmara de Questões Preliminares do TPI analisou favoravelmente o pedido do promotor para voltar a investigar as denúncias de crimes contra humanidade que pesam contra o chavismo. As posições da ditadura venezuelana e da própria procuradoria já estão com os juízes.
O promotor diz ter uma base razoável para comprovar que, na Venezuela, “um ataque sistemático contra a população civil foi cometido de acordo com uma política de Estado”.
Agora, Nicolás Maduro e outros integrantes do alto escalão chavista estão mais perto de serem alvos de uma ordem de prisão, que deve ser pedida por Khan. O pedido para a retomada da investigação foi feito depois que o promotor não se convenceu da argumentação do governo venezuelano de que estava investigando internamente os crimes do qual é acusado.
Única juíza brasileira que já atuou na Corte (2003-2016), Sylvia Steiner explica que, no entendimento de Khan, os procedimentos em andamento na Venezuela não estão sendo imparciais. “Eles demonstram que a intenção é muito mais de proteger as pessoas acusadas, sem levar em conta o contexto em que os atos foram praticados, que é de crimes contra a humanidade”, afirma. Por isso, em novembro, o promotor pediu para reassumir a investigação.
Steiner explica, no entanto, que se a Câmara de Questões Preliminares do TPI negar o pedido do promotor, a Venezuela continuará encarregada de conduzir as investigações. “Na visão do promotor, o país está investigando somente os crimes menos graves, seus autores diretos, nenhuma autoridade. Por isso, eu acredito que a Câmara vá autorizar o procurador a reassumir a investigação”, afirma.
Como funciona o TPI?
O TPI é um tribunal de última instância e responsável por julgar indivíduos que cometeram crimes contra direitos humanos, geralmente em regimes autoritários, dentro de uma série de regras. A primeira delas é que o país no qual a violação foi registrada precisa ser signatário do Estatuto de Roma, que rege o funcionamento do TPI.
Para lembrar
Além disso, as violações precisam ter ocorrido no território do país no qual a autoridade foi denunciada e o gabinete do procurador deve primeiro concluir que os tribunais nacionais não estão genuinamente investigando ou processando os crimes pelos quais determinado governo é acusado.
Isso é conhecido como o “princípio da complementaridade” no Estatuto de Roma fundador do tribunal, que mantém a responsabilidade primária pela justiça com as autoridades nacionais.
O começo do processo contra Maduro
Com o nome de Venezuela 1, uma investigação preliminar contra autoridades chavistas foi iniciada em 2018 pela então procuradora do TPI Fatou Bensouda, a partir da denúncia coletiva apresentada por Canadá, Chile, Colômbia, Paraguai, Peru e Argentina (sob a presidência de Mauricio Macri).
Esses países acusaram o regime Maduro de ter cometido crimes contra a humanidade fazendo detenções arbitrárias, execuções extrajudiciais e tortura contra presos políticos nas prisões militares e dos serviços de inteligência venezuelano.
Em 2021, a Argentina de Alberto Fernández decidiu deixar a denúncia coletiva alegando que “o problema dos direitos humanos na Venezuela está desaparecendo”.
Em uma visita a Caracas, também 2021, o promotor anunciou que estava abrindo uma investigação formal. O governo venezuelano se comprometeu a identificar, processar e punir os que cometeram o crime.
O procurador-geral venezuelano, Tarek William Saab, segundo a agência France Presse, assegura que seu gabinete fez, desde 2017, cerca de 1,5 mil acusações de abusos contra os direitos humanos. O governo Maduro usou essas acusações como argumento perante o TPI para dizer seu sistema judicial está respondendo às denúncias de excessos das forças de segurança.
Manobras para atrasar o processo
Mas passado o prazo para isso, o promotor não se convenceu. Uma das razões, segundo o professor venezuelano Rafael Villa, especialista do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), é que ao tentar responsabilizar funcionários de baixo escalão, Caracas pareceu, aos olhos de Haia, apenas manobrar para adiar o processo.
“Isso se choca com o objetivo fundamental do TPI, que é responsabilizar altos funcionários, incluindo o próprio Maduro. Essa tentativa de ‘sair pela tangente’ incomodou o promotor”, explica Villa.
O chavismo diz que a tentativa de Khan de reabrir o processo tem viés ideológico, uma vez que o mesmo procurador arquivou as investigações preliminares de crimes contra direitos humanos na Colômbia, cometidas no âmbito do conflito interno entre as guerrilhas de esquerda e o governo.
“A Colômbia fez uma grande reforma, incluindo constitucional, criou a chamada jurisdição especial para a paz, está julgando membros das forças armadas, da guerrilha, dos paramilitares”, explica Steiner.
Próximos passos
“O promotor deve voltar à Câmara pedindo a expedição de um mandado de prisão”, explica. Nessa fase, tem início a ação penal propriamente dita e fica claro quem responderá pelo processo.
“Não necessariamente Maduro deve ser implicado. Mas se houver provas que demonstrem que as ordens partiram dele ou que ele sabia o que estava acontecendo e não fez nada para por um fim aquilo, ele é penalmente responsável. Mas isso só saberemos quando o procurador terminar sua investigação”, acrescenta Steiner.
Atrasos na investigação
O professor venezuelano lembra, porém, que o regime Maduro e oposição reiniciaram um processo de negociação em novembro. Há também conversas para a retomada das relações com Washington, em meio à crise energética derivada da invasão russa da Ucrânia. Para pressionar o regime Maduro, EUA impuseram uma série de sanções contra a Venezuela, incluindo embargo ao seu petróleo.
Com isso, após anos de turbulência, segundo Villa, o promotor pode querer esperar por uma troca de regime. A Venezuela terá eleições no segundo semestre de 2024, ainda que uma mudança do comando do país pareça algo distante. “Mesmo que altos funcionários sejam imputados, ou até mesmo Maduro, o próprio regime não entregaria nenhum de seus membros”, afirma Villa.
Além do próprio governo, o tribunal depende da cooperação dos Estados para cumprir um mandado de prisão. Todos os países da América Latina são signatários do Tratado de Roma (que estabeleceu o tribunal de Haia em 2002), a única exceção é Cuba.
“Aqueles que ratificam o Tratado de Roma tem obrigação de cooperar com o tribunal. Em tese, se um mandado de prisão contra Maduro for expedido, qualquer país latino-americano que recebê-lo tem a obrigação de prendê-lo e entregá-lo ao tribunal”, explica Steiner, reconhecendo que, do contrário, não há grandes consequências.
“Até há penalidades, mas elas não são sérias. É mais um puxão de orelha. No entanto, daqui a algum tempo, quando essa pessoa não estiver mais num cargo de poder, seus inimigos serão os primeiros a quererem entregá-lo ao tribunal. O mandado não expira e os crimes não prescrevem.”
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