Dois países vizinhos com armas nucleares e um longo histórico de conflito armado, dois líderes enfrentando pressão pública por ação militar, e uma região montanhosa cobiçada pelos dois lados - e ocupada pelas respectivas tropas - por mais de 70 anos. Um novo desentendimento entre Índia e Paquistão era quase inevitável diante de todos esses fatores.
Na quarta-feira 27, os dois países entraram em conflito em razão do território controlado pela Índia no disputado Estado fronteiriço de Jammu e Caxemira. Ao menos um jato indiano foi abatido pelos paquistaneses, que ainda capturaram o piloto Abhinandan Varthaman. Contudo, o primeiro-ministro do Paquistão, Imran Khan, afirmou nesta quinta-feira, 28, que seu país libertará Varthaman como um "gesto de paz". Segundo ele, que diz que tentou sem sucesso falar por telefone com o líder indiano, Narendra Modi, considerou que uma escalada de tensão não é do interesse de nenhuma das duas nações vizinhas.
A incursão ocorreu apenas um dia após uma aeronave indiana voar ao Paquistão e atacar uma área próxima à cidade de Balakot. O governo indiano alegou que atingiu um campo de treinamento do Jaish-e-Mohammed, grupo terrorista responsável pelo bombardeio suicida do dia 14 de fevereiro no sul da Caxemira que matou ao menos 40 membros das forças paramilitares. O Paquistão insiste que não teve envolvimento na ação.
Agora, o temor é de que as hostilidades possam aumentar entre os dois países, que surgiram após a partilha sangrenta da Índia britânica há mais de 70 anos e têm coexistido de maneira complicada desde então.
Como começou o conflito entre Índia e Paquistão?
Quando o Reino Unido finalmente desistiu de sua colônia Índia em agosto de 1947, houve concordância em dividir o território em dois países: Paquistão, majoritariamente muçulmano, e Índia, de maioria hindu.
A separação repentina obrigou milhares de pessoas a migrarem entre os dois países e levou a uma violência religiosa que deixou milhões de vítimas. Inicialmente, Bangladesh fazia parte do Paquistão, mas conseguiu sua independência em 1971 após um curto confronto entre indianos e paquistaneses.
Na época, não foi decidido o status de Jammu e Caxemira, um Estado majoritariamente muçulmano localizado nos Himalaias que vinha sendo governado por um príncipe local. Rapidamente foi desencadeado um conflito e os dois países enviaram tropas ao local, com os paquistaneses ocupando um terço do Estado e os indianos, dois terços.
Apesar de o príncipe ter assinado um acordo para o território passar a fazer parte da Índia, as Nações Unidas recomendaram posteriormente que fosse realizada uma eleição para deixar as pessoas decidirem. Esse pleito nunca aconteceu e os dois países continuam a administrar suas porções do antigo território enquanto esperam obter seu controle total. As tropas dos dois lados da "linha de controle" disparam regularmente umas contra as outras.
No final de 1989, os rebeldes muçulmanos lançaram uma insurgência separatista na Caxemira indiana, mais tarde recuperada por grupos islâmicos armados. Os dois Exércitos se enfrentaram no ano seguinte na região montanhosa de Kargil (Caxemira indiana). À beira de um quarto conflito em 2002, os dois rivais renovaram as relações diplomáticas em abril de 2003. Um cessar-fogo foi concluído, sem acabar com a guerra de guerrilha. No início de 2004, a Índia e o Paquistão iniciaram um processo de paz.
Militantes muçulmanos recorrem com frequência à violência para expulsar tropas indianas do território. O Paquistão apoia muitos desses soldados, assim como terroristas que têm conduzido ataques na Índia. Em novembro de 2008, ações coordenadas em Mumbai mataram 166 pessoas. A Índia, que viu nisso a mão dos serviços de inteligência paquistaneses, interrompeu o processo de paz.
O diálogo foi retomado três anos depois, mas acabou enfraquecido por confrontos mortais nas fronteiras. Um novo episódio de tensão ocorreu após o sangrento ano de 2016 e um ataque em setembro liderado pelo Jaish-e-Mohammed contra uma base militar indiana na Caxemira. Nova Délhi respondeu com ataques a posições separatistas ao longo da linha de cessar-fogo.
Por que um conflito entre os dois é perigoso?
Ambos possuem armas nucleares. Após um primeiro teste em 1974, a Índia realizou cinco novos testes em 1998. O Paquistão respondeu com seis. Tendo se tornado de fato a sexta e a sétima potências nucleares, os dois rivais atraem condenações e sanções internacionais.
Por que a situação piorou agora?
A causa foi um bombardeio suicida praticado no dia 14 de fevereiro por um militante islâmico, que explodiu um comboio de caminhões que transportavam forças paramilitares em Pulwama, no sul da Caxemira. Foi o ataque mais mortífero na região nos últimos 30 anos. Contudo, neste momento, há também forças políticas mais amplas em movimento.
O premiê Narendra Modi está pronto para sua reeleição em maio. O Paquistão, por outro lado, tem um novo primeiro-ministro, Imran Khan, que foi eleito em 2018 com o apoio do Exército. Khan quer mostrar que pode enfrentar a Índia, mesmo com a economia fraca, a ponto de ter recorrido ao resgate financeiro com a Arábia Saudita e a China.
Alguém está tentando a acalmar a situação?
Na terça-feira 26, o secretário de Estado americano, Mike Pompeo, apelou aos líderes dos dois países para evitar uma escalada da situação. Ele disse também que o Paquistão precisa tomar "uma atitude significativa contra grupos terroristas que agem em seu território".
Sob o comando do presidente Donald Trump, a política externa americana se afastou do Paquistão, território que recebeu durante muito tempo ajuda dos Estados Unidos, e se dirigiu à Índia, vista pelo governo como um bastião contra a crescente influência da China na Ásia. Enquanto isso, Pequim se tornou um aliado próximo e patrono financeiro do Paquistão. A China pediu aos dois países para tentarem se conter após a incursão indiana no espaço aéreo paquistanês.
O que pode acontecer agora?
Em um episódio similar em 2016, após soldados atacarem uma base do Exército indiano em Uri, na Caxemira, forças indianas cruzaram as linhas de controle e conduziram o que o governo chamou de "ataque cirúrgico" a campos terroristas localizados na região. O governo paquistanês nega os atentados. Para Sreeram Chaulia, reitor do colégio de assuntos internacionais da O.P. Jindal Global University, no Estado indiano de Haryana, o conflito militar entre Índia e Paquistão irá retroceder em breve.
O premiê Khan pressionou a Índia a resolver alguns assuntos por meio do diálogo. "Todas as grandes guerras ocorreram por erros de cálculo”, disse ele em um discurso televisionado. "Minha dúvida com relação à Índia é que, dadas as armas que temos, podemos permitir um erro de cálculo?" / NYT e AFP
Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.