Taiwan, uma ilha de 23 milhões de pessoas a 130 km da costa da China, há muito é um ponto de tensão entre Washington e Pequim. Agora, essas tensões estão em um novo patamar, com a China autorizando exercícios militares com munição real no Estreito de Taiwan e autorizando sanções econômicas contra o país, aumentando a preocupação de um conflito.
O atual cenário de tensões foi iniciado pela viagem da presidente da Câmara dos Deputados dos EUA, Nancy Pelosi, ao país – a primeira de uma autoridade americana de primeiro escalão desde 1997, quando Newt Gingrich, também presidente da Câmara à época, desembarcou na em Taiwan. Apesar das sinalizações da Casa Branca de que a viagem partiu de uma iniciativa do Congresso e que não alterava a política externa americana, Pequim entendeu o gesto como uma provocação, reagindo em diferentes frentes – e aprofundando ainda mais a crise.
Nesta quinta-feira, 4, as forças armadas chinesas dispararam mísseis e munição real durante os exercícios militares mais agressivos conduzidos por Pequim em décadas, com projéteis caindo a poucos quilômetros da costa sul e leste de Taiwan, segundo o ministério da Defesa da ilha. Um dia antes, vinte e sete caças cruzaram a zona de defesa aérea de Taiwan, um espaço aéreo contestado entre os dois países, uma atitude hostil do governo chinês.
A China reivindica Taiwan, uma democracia insular autônoma, como seu território e prometeu recuperá-lo – pela força, se necessário. Em uma ligação com o presidente americano, Joe Biden, no final de julho, o líder chinês, Xi Jinping, alertou fortemente os EUA contra a intervenção na disputa, aconselhando o democrata a “não brincar com fogo”.
Os alertas de Pequim repercutiram no Pentágono e no Comando Indo-Pacífico no Havaí, onde oficiais militares americanos foram encarregados de proteger Pelosi e avaliar o que a China poderia fazer militarmente em resposta à sua visita. Durante a viagem da parlamentar à Ásia, os EUA deslocaram navios de guerra para perto de Taiwan, aumentando a presença militar para uma eventual resposta.
Entenda algumas das questões em torno da visita proposta por Pelosi:
A China vai atacar Taiwan? Qual o risco de um conflito em Taiwan?
É cedo para dizer. O fato é que a China deu início aos exercícios militares mais agressivos no entorno da ilha logo após a passagem de Pelosi pela região - no que é entendido por alguns especialistas como um teste das capacidades chinesas de realizar manobras de guerra complexas e impor um bloqueio naval e aéreo a Taipé, o que pode servir de termômetro para uma invasão no futuro.
“Eles definitivamente vão usar isso (os exercícios) como uma desculpa para fazer algo que os ajude a se preparar para uma possível invasão”, disse Oriana Skylar Mastro, pesquisadora do Instituto Freeman Spogli de Estudos Internacionais da Universidade de Stanford, que estuda as forças armadas chinesas e seu potencial para atacar Taiwan, em entrevista ao The New York Times.
“Não é apenas sobre as mensagens”, completou. “Sob o disfarce de sinalização, eles estão tentando basicamente testar sua capacidade de realizar manobras complexas que são necessárias para um ataque anfíbio a Taiwan”.
O Exército de Libertação Popular demarcou seis zonas para realização dos exercícios nos mares de Taiwan – uma a menos de 16 km da costa sul – que podem dar às forças chinesas uma experiência valiosa, caso um dia recebam ordens para cercar e atacar a ilha.
As seis zonas foram escolhidas por sua importância em um eventual bloqueio de Taiwan por Pequim, a fim de impedir uma intervenção estrangeira, disse o major-general Meng Xiangqing, professor de estratégia da Universidade de Defesa Nacional em Pequim, em entrevista à televisão estatal chinesa. Uma zona cobre a parte mais estreita do Estreito de Taiwan. Outros podem ser usados para bloquear um grande porto ou atacar três das principais bases militares de Taiwan, disse ele.
“Esta é a primeira vez que os militares realizarão uma operação militar conjunta em toda a ilha de Taiwan”, disse ele em entrevista à Xinhua News, principal agência de notícias da China. “Deve-se dizer que, embora este seja um exercício semelhante ao combate real, a qualquer momento pode se transformar em combate real”.
O que pensa o líder chinês sobre Taiwan?
Xi Jinping deixou mais claro do que qualquer um de seus antecessores que vê a unificação de Taiwan com a China como o objetivo principal de seu governo. Espera-se que ele seja confirmado para um terceiro mandato como líder em um congresso do Partido Comunista previsto para ocorrer em outubro - algo inédito na China. Antes dessa importante reunião política, Xi fará questão de projetar uma imagem de força em casa e no exterior, particularmente na questão de Taiwan.
No mês passado, Xi despachou seu ministro da Defesa, general Wei Fenghe, para uma conferência internacional em Cingapura, onde Wei alertou que a China não hesitaria em lutar por Taiwan. “Se alguém se atrever a separar Taiwan, não hesitaremos em lutar, não hesitaremos no custo e lutaremos até o fim”, declarou Wei, na ocasião.
Pequim pode conduzir alguma operação na ilha?
O momento em que Xi tentará alguma ação em Taiwan continua sendo uma questão de grande debate entre especialistas militares e civis sobre a China, mas não se espera que seja iminente. “A China quer muito Taiwan ‘de volta’, mas isso não significa que ela queira uma guerra sangrenta precoce que destruiria seu milagre econômico”, escreveu William Overholt, pesquisador sênior da Kennedy School de Harvard, na edição atual da Global Asia.
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Em um discurso inflamado no 100º aniversário da fundação do Partido Comunista Chinês no ano passado, Xi enfatizou a necessidade da unificação do continente com Taiwan, que ele chamou de “uma missão histórica e um compromisso inabalável do Partido Comunista da China”. Qualquer país que ousasse ficar no caminho enfrentaria uma “grande muralha de aço” forjada pelos 1,4 bilhão de habitantes da China, disse ele.
Taiwan é o maior ponto de tensão nas relações EUA-China
As incursões da China no espaço aéreo e nas águas perto de Taiwan se tornaram mais agressivas nos últimos anos, aumentando o risco de conflito. Em junho, Pequim aumentou as apostas quando o Ministério das Relações Exteriores declarou que a China tinha jurisdição sobre o Estreito de Taiwan e que não poderia ser considerada uma via navegável internacional.
No ano passado, aviões militares chineses sondaram cada vez mais o espaço aéreo perto de Taiwan, levando os caças taiwaneses a se deslocarem. Alguns analistas americanos deixaram claro que as capacidades militares da China cresceram a ponto de deixar de ser garantida uma vitória dos EUA em defesa de Taiwan.
Oriana Skylar Mastro, pesquisadora do Instituto Freeman Spogli de Estudos Internacionais da Universidade de Stanford, descreveu recentemente a variedade de armas que a China acumulou para uma luta por Taiwan em um artigo publicado no New York Times.
A China agora tem a maior marinha do mundo e os EUA podem lançar muito menos navios em um conflito de Taiwan, disse ela. “A força de mísseis da China também é capaz de atingir navios no mar para neutralizar a principal ferramenta de projeção de poder dos EUA, os porta-aviões.”
No início desta semana, a 7ª Frota ordenou que o porta-aviões USS Ronald Reagan e seu grupo de ataque navegassem de Cingapura para o norte em direção ao Mar da China Meridional e na direção de Taiwan. Um porta-voz da Marinha se recusou a dizer se o porta-aviões estaria navegando nas proximidades de Taiwan ou navegando pelo Estreito de Taiwan.
Ilha é um campo minado político para Washington
Pelosi colocou o presidente Joe Biden em uma posição embaraçosa. Ela e sua equipe insistem que a presidente da Câmara, como líder de um poder separado, mas coigual do governo dos EUA, tem o direito de ir a qualquer lugar que desejar.
De sua parte, Biden não quer ser visto ditando para onde ela pode viajar. Ele sinalizou que questiona a sabedoria da viagem em potencial. “Os militares acham que não é uma boa ideia agora”, disse Biden.
Em um arranjo diplomático intencionalmente ambíguo adotado quando Washington reconheceu a China governada pelos comunistas em 1979, os EUA mantêm uma política de “uma China” que reconhece, mas não endossa, a posição chinesa de que Taiwan é parte da China.
Biden disse três vezes, mais recentemente em maio, que os EUA mobilizariam força para ajudar Taiwan contra uma invasão chinesa. Em cada ocasião, a Casa Branca recuou de suas declarações, dizendo que a política de “ambiguidade estratégica” permanece, sob a qual Washington continua vago quanto à força com que os EUA recorreriam em auxílio a Taiwan.
Os EUA mantêm relações diplomáticas robustas com a China, com uma grande embaixada em Pequim e quatro consulados em todo o país. Mas as relações estão em baixa devido à competição militar, econômica e ideológica entre os dois países.
O atual embaixador em Pequim, Nicholas Burns, é um dos diplomatas mais experientes dos EUA. Em Taiwan, os americanos mantêm um escritório de representação, o Instituto Americano em Taiwan, chefiado por um funcionário discreto do Departamento de Estado. Ao mesmo tempo, Washington fornece a Taiwan bilhões de dólares em ajuda militar e armas.
Pelosi tem histórico de provocações à China
A presidente da Câmara é uma crítica de longa data da China. Em Pequim, ela é vista como hostil. Como congressista de dois mandatos da Califórnia, Pelosi visitou Pequim em 1991, dois anos depois que as tropas chinesas abriram fogo contra manifestantes estudantis ao redor da Praça Tiananmen, matando centenas, senão milhares.
Acompanhada até a praça por vários colegas congressistas e um pequeno grupo de repórteres, Pelosi abriu uma faixa em homenagem aos estudantes mortos. A faixa dizia: “Para aqueles que morreram pela democracia na China”.
Mike Chinoy, então correspondente da TV americana CNN, lembrou em um artigo publicado recentemente como Pelosi deixou a praça em um táxi. A polícia prendeu os repórteres e os deteve por algumas horas, escreveu ele.
Pelosi é uma forte defensora do dalai lama e dos direitos dos tibetanos. Em 2015, com permissão oficial do governo chinês, Pelosi visitou Lhasa, a capital do Tibete, em uma viagem rigidamente controlada que geralmente é proibida a autoridades e jornalistas estrangeiros.
Os planos da presidente para uma viagem a Taiwan atraíram alguns apoiadores improváveis. Altos funcionários do governo Trump, incluindo o ex-secretário de Estado Mike Pompeo e o ex-secretário de Defesa Mark Esper disseram que gostariam de se juntar a ela. Pompeo tuitou que foi banido na China, mas ficaria feliz em acompanhar Pelosi a Taiwan. /NYT
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