O Equador vive desde 2018 uma crise política sem fim, com o fantasma da ingovernabilidade assombrando o país nas gestões dos presidentes Lenín Moreno (2017-2021), e na atual, de Guillermo Lasso (2021 até hoje).
Alido às disputas por poder entre políticos uma onda de criminalidade sem precedentes assolou o Equador, com o aumento da guerra entre facções criminosas ligadas a cartéis mexicanos e o investimento do crime organizado para transformar o país em um entreposto da produção de droga.
Juntos, os dois problemas levaram à uma radicalização dos crimes e ao aumentos dos crimes políticos, como o assassinato com três tiros na cabeça do candidato à presidência do país Fernando Villavicencio, que estava em quinto nas pesquisas.
O Equador reinstarou a democracia em 1979. Desde então, o país teve 15 presidentes, e cinco deles não ficaram no poder por mais de dois anos.
O país enfrentou o pior período de instabilidade democrática da sua história entre 1996 e 2007, quando chegou a ter sete presidentes, até a posse de Correa. Três governantes eleitos nas urnas foram depostos em meio a revoltas de indígenas e outros setores, com a intervenção do Parlamento.
O último momento de estabilidade no país foi durante o governo do esquerdista Rafael Correa (2007-2017). Correa manteve a unidade do país graças a reformas sociais e alianças políticas que levaram a elevados gastos públicos - e um autoritarismo crescente que perseguia opositores e críticos.
Ao deixar o poder, Correa foi investigado por corrupção e condenado, em 2020, a oito anos de prisão e a perda de direitos políticos por 25 anos. Ele vivia na Bélgica, terra natal de sua mulher, mas era a principal figura da oposição ao então presidente Lenín Moreno, ex-aliado de Correa.
Em 2021, Guillermo Lasso, representando a centro-direita, derrotou o candidato da esquerda, Andrés Arauz. Mas Lasso nunca conseguiu governar como queria. Após uma série de derrotas em eleições locais e no Parlamento, dominado pela esquerda, e ameaçado de impeachment, Lasso usou um mecanismo constitucional para dissolver o Congresso e convocar novas eleições. “Isso levou a situação atual, que marca um cenário de maior e profunda instabilidade política”, disse a cientista política Paulina Recalde.
O assassinato de Fernando Villavicencio
“Estamos em um ciclo prolongado de instabilidade política e crise orgânica, na medida em que as crises que vivemos são várias”, afirmou Recalde, citando outros problemas, como a insegurança ligada ao tráfico de drogas, a desconfiança nas instituições do Estado, além dos econômicos.
Lasso não participa das eleições antecipadas, mas frente ao desgaste da direita representada perlo seu governo, a esquerda recuperou terreno. A favorita nas pesquisas é Luisa Gonzáles, com 29,5% das intenções de voto. Ela é apoiada pelo ex-presidente Rafael Correa, e diz ter como pilares “segurança, trabalho e bem-estar”.
“Esta é a resposta a um governo falido que nos deixou em total abandono, destruiu estradas, nos negou remédios, a educação de nossos filhos; mas com a Revolução Cidadã as obras das estradas voltarão com rodovias de primeira, educação, emprego decente e medicina gratuita e de qualidade”, disse ela.
O segundo colocado nas pesquisas é Yaku Pérez, líder indígena e ex-prefeito, que também tem uma plataforma de esquerda e defende a criação de empregos e enfrentar o crime “com firmeza” e mais transparência nas contas públicas, além da defesa de causas ambientais.
Criminalidade e tráfico de drogas
Diante de uma eleição convocada fora de época, a criminalidade e o tráfico de drogas no Equador tem sido a questão central. Todos os candidatos presidenciais levantam a bandeira de “mão forte” contra a insegurança em meio a crimes, ameaças e estado de exceção.
Os crimes políticos dispararam este ano, com assassinatos de um prefeito e um aspirante a legislador, e intimidações contra candidatos presidenciais.
A onda de criminalidade assola o país andino, antes considerado um oásis de paz entre Colômbia e Peru, os dois maiores produtores de cocaína do mundo.
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Em 2022, os assassinatos quase duplicaram com relação ao ano anterior, 25 a cada 100 mil habitantes, e em 2023 deve chegar a uma taxa de até 40, segundo projeções de especialistas.
Um total de 210 toneladas de drogas apreendidas em um ano —um recorde no Equador. Pelo menos 4.500 homicídios no ano passado. Crianças recrutadas por quadrilhas. Presídios que atuam como centros de criminalidade. Bairros consumidos por duelos entre organizações criminosas.
O Equador tornou-se em poucos anos o país da “corrida ao ouro” do narcotráfico. Grandes cartéis de lugares tão distantes quanto México e Albânia estão unindo forças com quadrilhas dos presídios e das ruas, desencadeando uma onda de violência diferente de qualquer coisa vista na história recente do país.
Segundo especialistas, o que alimenta essa turbulência é a crescente demanda global por cocaína. Enquanto muitos políticos e legisladores têm enfocado especialmente a epidemia de opioides, que mata dezenas de milhares de americanos a cada ano, a produção da droga tem subido para níveis recordes, fenômeno que agora está devastando a sociedade equatoriana e convertendo uma nação antes pacífica em um campo de batalha.
“As pessoas consomem a droga em outros países, mas não entendem as consequências que acontecem aqui”, afirmou o major Edison Núñez, oficial de inteligência da polícia nacional equatoriana, em uma reportagem de julho do jornal americano The New York Times.
Por estar situado entre os maiores produtores de cocaína do mundo, Colômbia e Peru, há anos o país exerce o papel de ponto de exportação de produtos ilícitos para a América do Norte e a Europa.
Mas um boom na Colômbia no cultivo da folha de coca, o ingrediente de base da cocaína, aumentou a produção da droga, enquanto anos de policiamento fraco do narcotráfico no Equador converteram o país em uma base cada vez mais atraente para a manufatura e a distribuição de drogas.
A violência ligada às drogas começou a crescer por volta de 2018, quando grupos criminosos locais disputavam posições melhores no tráfico. Em um primeiro momento, a violência se limitou sobretudo aos presídios, cuja população havia crescido após um endurecimento das penas ligadas às drogas e ao uso crescente da prisão preventiva.
O governo, então, acabou perdendo o controle do sistema carcerário. Detentos coagem outros presos, obrigando-os a pagar por camas, serviços e segurança e chegando a tomar as chaves de seus blocos nos presídios. Em pouco tempo, segundo especialistas no Equador, as penitenciárias viraram bases operacionais do narcotráfico.
O crime organizado internacional enxergou nisso uma oportunidade lucrativa para ampliar suas operações. Hoje, os mais poderosos cartéis mexicanos, Sinaloa e Jalisco Nueva Generación, atuam como financiadores do tráfico no Equador, ao lado de um grupo dos Bálcãs que a polícia chama de máfia albanesa.
Quadrilhas de penitenciárias e das ruas, com nomes como Los Choneros e Los Tiguerones, trabalham com os grupos internacionais, coordenando a armazenagem, o transporte e outras atividades, segundo a polícia.
A cocaína ou sua precursora, a pasta-base, chegam ao Equador vindas da Colômbia ou do Peru e geralmente deixam o país por via marítima. Segundo Núñez, as autoridades só conseguem revistar 20% dos cerca de 300 mil contêineres que partem a cada mês de uma das cidades mais populosas do país, Guayaquil –um dos portos mais movimentados da América do Sul. As drogas saem dos portos equatorianos escondidas sob pisos reconstruídos, em caixotes de bananas, paletes de madeira e de cacau, para mais tarde chegar a festas nas cidades universitárias dos EUA e boates de cidades europeias.
Rivalidades e crimes hediondos
Em Guayaquil, cidade de clima úmido cercada de colinas verdes, com 3,5 milhões de habitantes em sua região metropolitana, as rivalidades entre grupos criminosos já transbordaram para as ruas. Produzem um estilo de violência aterradora e pública que tem a intenção evidente de induzir o medo e exercer controle.
As emissoras de TV divulgam notícias frequentes sobre decapitações, carros-bomba, assassinatos de policiais, rapazes pendurados em pontes e crianças mortas a tiros diante de suas casas ou escolas.
Eles não matam. Preferem cortar suas vítimas vivas em uma videochamada para que seus gritos convençam seus familiares a pagarem um resgate mais alto. Uma onda de sequestros e de extorsões aterroriza o Equador.
Por décadas, o país foi considerado um oásis de paz entre Colômbia e Peru, mas agora se parece cada vez mais com seus vizinhos assolados pela violência do tráfico de drogas.
Em março, a esposa de um comerciante em Guayaquil recebeu imagens de sequestradores cortando os dedos da mão esquerda de seu marido, ameaçando cortar os demais se não pagasse 100 mil dólares (cerca de 507 mil reais na cotação da época).
Entre janeiro e maio, as denúncias por sequestros no país triplicaram, com 189 casos frente a 60 no mesmo período de 2022, embora especialistas indiquem uma subnotificação.
Com quase três mil habitantes, Guayaquil se tornou um reduto desta violência que aumenta com carros-bomba, massacres em penitenciárias, cadáveres desmembrados e pendurados em pontes, e agora, sequestros.
Mais que drogas
Segundo a especialista em segurança Carla Álvarez, a possibilidade de que uma pessoa seja sequestrada, extorquida ou assassinada está cinco vezes maior no país.
Em Guayaquil, epicentro da cocaína que sai para os Estados Unidos e a Europa, já foram registrados mais de 1.000 homicídios em 2023. Especialistas concordam, no entanto, em que nem todos os sequestradores são de grandes gangues de drogas, como Los Lobos e Tiguerones, vinculadas a cartéis mexicanos.
“Temos a impressão de que a violência e os sequestros estão relacionados ao narcotráfico, (mas) o fenômeno é mais complexo”, afirma Luis Córdova, professor da Universidade Central.
A maioria dos sequestros e extorsões corresponde à criminalidade comum, de membros de gangues, assaltantes de ônibus e ladrões comuns.
“Por que uma gangue poderosa, aliada a um cartel da droga, se arriscaria a falar com os familiares de um sequestrado se pode traficar duas toneladas de droga”, que é muito mais lucrativo, sustenta Córdova.
No Equador, com 18,3 milhões de habitantes, há mais de 13 organizações criminosas.
Em abril, o governo declarou o terrorismo como ameaça contra o Estado e militarizou as ruas para enfrentar o crime organizado.
Apesar de torturados, a maioria dos sequestrados sobrevive. Quando os matam, em geral, “trata-se de um ajuste de contas entre gangues criminosas”, explicou o delegado regional da Unidade Antisequestros da Polícia (Unase), Óscar Salguero.
Os reféns permanecem por dias presos em banheiros, ou em casas em ruínas, até que algum familiar pague por sua liberdade, ou são resgatados pela força pública.
Segundo Salguero, neste ano, a Unase resgatou mais de 70 reféns, quase 60 a mais do que em 2022. Também aumentaram as extorsões a empresários e donos de estabelecimentos: cerca de 2.700 denúncias deste tipo foram registradas este ano.
Para Córdova, os mais afetados pelos sequestros e extorsões são as classes média e alta, que em sua maioria votaram por uma “mão de ferro” contra o crime organizado nas eleições gerais de agosto.
O clima de insegurança refletiu na impopularidade do governo direita de Guillermo Lasso, e sua decisão de dissolver o Congresso para avançar com eleições antecipadas, em meio a uma crise institucional./AFP, AP, NYT e W.POST
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