ENVIADO ESPECIAL A QUITO, EQUADOR — Quando a sombra da violência cercou as vidas de Damián Brown e Maria Eugenia Sichique, deixar tudo para trás tornou-se sua única saída. Em Esmeraldas, uma cidade costeira no extremo leste do Equador que faz fronteira com o departamento de Nariño, na Colômbia — região onde é produzida a maior parte da cocaína proveniente deste país — Damián, de 41 anos, e Maria Eugenia, de 34, haviam presenciado em desassossego como a morte ficava mais próxima do seu lar.
Primeiro vieram os corpos de desconhecidos largados nas ruas da cidade; cadáveres de jovens mortos em conflitos de gangues. Depois vieram os recrutamentos forçados de adolescentes e crianças pelos narcotraficantes, as extorsões às famílias humildes e os roubos seguidos de mortes. Barulhos de tiros tornaram-se tão comuns como aterradores. E com a escalada do perigo, o engenheiro mecânico e a nutricionista passaram a encontrar maiores dificuldades para dar um futuro digno para seus dois filhos, Ekom de 11 anos, e Victoria, de 6.
“Nós estavamos nos sentido asfixiados”, disse Damián, um homem negro, alto, de voz calma mas constante e extrema cordialidade, em um final de tarde de quarta-feira na sua casa em El Pinar Alto, no norte de Quito. “Estava ficando impossível se afastar da violência. Por isso, um dia eu e Maria Eugenia sentamos para conversar e nos questionamos: ‘Qual é o futuro que a gente quer para os nossos filhos?’ Foi nesse momento que nós decidimos vir para Quito e fazer uma nova vida”, afirmou ele.
No ano anterior, Damián quase foi atingido em um ataque a tiros direcionado contra um dos seus vizinhos, enquanto se exercitava no exterior da sua casa. Em novembro de 2022, Carlos Cisneros, um primo de Maria Eugenia, foi assassinado cruelmente em Esmeraldas com um tiro na cabeça, após dois criminosos roubarem sua moto “e terem achado desrespeitoso” o fato de ele não ter fugido correndo.
Em outra ocasião, assassinos de aluguel mataram a tiros um jovem vizinho do casal por, segundo eles, se recusar a ser recrutado por um grupo criminoso. E até a própria irmã de Damián foi extorquida pelas novas máfias, que ameaçaram matá-la.
“Um dia, meu filho maior perguntou se nós iríamos morrer. Isso quebrou meu coração”.
No último ano, Damián e Maria Eugenia deixaram Esmeraldas e se mudaram para Quito. Agora, a família se sente mais segura na sua confortável casa em um bairro tranquilo da capital equatoriana. Contudo, atrás ficaram os pais de ambos, os amigos e o estilo de vida que acostumavam ter. Para o engenheiro, a vida tem melhorado, mas as dores do passado continuam. “Eu me sinto um deslocado interno”, disse ele. “De certa forma, nós não estávamos migrando, estávamos fugindo.”
Crise de violência no Equador
No passado foi um país calmo, mas agora o Equador é dominado pela violência
Poucos anos atrás, o Equador era considerado um dos países mais seguros da América do Sul. Em 2017, a taxa de homicídios da nação era de cerca de 5 por cada 100 mil habitantes. Nesse ano, a Venezuela e o Brasil lideravam a lista dos países mais violentos do continente, com 56,8 e 30,5 homicídios voluntários a cada 100 mil habitantes, correspondentemente.
No entanto, há três anos os equatorianos enfrentam uma profunda crise de violência que tem colocado em xeque todo o sistema político e deixado em evidência a incapacidade do estado para resolver a maior preocupação da população: a falta de segurança.
Para David Chávez, cientista político e docente da Universidade Central do Equador, o aumento exponencial dos assassinatos, roubos, sequestros, extorsões e outros atos criminosos em todo o país são consequência direta da transformação do Equador em um grande centro de distribuição de drogas. “Portos como o de Manta ou de Guayaquil têm um papel essencial na exportação de drogas ilícitas, pelo seu fácil acesso ao Oceano Pacífico e pelo amplo controle que o narcotráfico local e internacional exerce sobre a infraestrutura”, disse o cientista político.
“Com os governos de Lenín Moreno e Guillermo Lasso, a partir de 2017, foram negligenciados diversos setores do país, e a segurança foi um deles. No Equador, não temos uma institucionalidade tão clara, e a eventual fraqueza do estado gera um vácuo no poder, que posteriormente é ocupado pelos mais fortes, ou seja, aqueles que têm o monopólio da violência”, afirma Chávez. “Pela primeira vez na nossa história, o estado não consegue garantir aquilo que deve ter por natureza, que é o monopólio da violência.”
Em Quito, é possível sentir a tensão das pessoas. Apesar da presença das brigadas militares, que ajudaram a estabelecer vários pontos de segurança ao redor da cidade após o assassinato do jornalista, político e candidato à presidência do Equador, Fernando Villavicencio, o sentimento que domina as ruas é o do medo generalizado. A população caminha apressada, priorizando uma interação mínima com desconhecidos. Para muitos, transitar por bairros como San Martín ou Las Casas é demasiado arriscado, enquanto outros não têm escolha.
“Há muita insegurança, estão matando a gente por um dólar”, disse ao Estadão Fernando, de 40 anos, um auxiliar de obras em uma construção da rua Portugal, Quito. Fernando mora na zona Sul de Quito, que é considerada uma das mais perigosas, mas ele precisa se locomover todos os dias para o trabalho, independente da situação. “Já não dá para madrugar. Se você madrugar, você se arrisca a receber um tiro”, comentou ele.
Violência política abala a democracia nacional
Na última segunda-feira, 14 de agosto, a extrema violência do Equador cobrou a vida de outro líder político, poucos dias depois do assassinato de Villavicencio. Pedro Briones, um líder local do partido Revolución Ciudadana, do ex-presidente Rafael Correa, foi morto a tiros quando ele se encontrava na porta de sua casa na cidade de San Mateo, na província de Esmeraldas, elevando para três o número de assassinatos políticos nas últimas semanas.
“O Equador está vivendo seu período mais sangrento”, escreveu a candidata Luisa González, que lidera Revolución Ciudadana e as pesquisas de intenção de voto, na rede social X. “Meu abraço de solidariedade à família do camarada Pedro Briones, morto pelas mãos da violência.”
Para César Ricaurte, Diretor de Fundamedios, uma organização independente fundada em 2007 que tem o objetivo de promover da liberdade de expressão, o monitoramento de agressões e riscos enfrentados por jornalistas e a defesa dos direitos humanos no Equador e na América Latina, “a crise da violência está assassinando a institucionalidade do país”. Ele afirma que “o narcotráfico está tão penetrado nas instituições nacionais, que já ninguém pode confiar nem na polícia”.
“Neste país, a impunidade é lei e as vítimas somos todos nós”, afirmou Ricaurte. “Este é um dos piores momentos da história do Equador, certamente. Neste domingo, as pessoas vão sair votar com medo, e quando se vota com medo, não há liberdade real de escolha”, concluiu ele.
No ano anterior, Fundamedios registrou ao menos 356 agressões contra jornalistas locais. Três jornalistas equatorianos foram assassinados por fazer seu trabalho investigativo: Mike Cabrera, Gerardo Delgado Olmedo e César Henry Vivanco.
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A Polícia Nacional do Equador registrou ao menos 3.568 mortes violentas nos primeiros seis meses do ano, numero que supera as 2.042 registradas no mesmo período de 2022.
Esse ano, o Equador teve um saldo sangrento de 4.600 mortes violentas, o maior número de todos os tempos no país e o dobro do total de 2021. Os dados indicam que até o final de 2023 o número de mortes violentas ainda pode atingir seu pico.
Outros dos problemas de segurança que mais têm afetado os equatorianos são as chamadas “vacinas” — um tipo de cobrança monetária por extorsão que tem sido exigida por vários grupos criminosos. Em março deste ano, por exemplo, em Guayaquil, um segurança de joalheria foi enrolado com explosivos no peito e nas pernas, com o intuito de enviar uma “mensagem” ao proprietário da loja, assim como a outros negócios locais, que passaram a pagar um “imposto de segurança”.
No Equador, há pelo menos dois tipos de perfis de criminosos que cobram estas ferramentas de extorsão chamadas “vacinas”. O primeiro está relacionado a quadrilhas do crime organizado, como Los Lobos, Los Tiguerones e Los Choneros. Contudo, o segundo tipo trata-se de jovens não associados aos grupos criminosos, que acharam na extorsão uma grande fonte de renda.
Entenda melhor
Segundo Kleber Carrión, ex-oficial da Polícia Nacional Equatoriana e especialista em segurança e inteligência, este tipo de crime tem ficado impune no país devido à falta de estabilidade política no estado equatoriano. “Existem pelo menos doze grupos de criminosos procurando ganhar mais espaço onde o estado não regula. Quando as autoridades não conseguem estar presentes onde o tráfico de droga existe, os cidadãos se voltam para outros meios para ter atendidas suas necessidades básicas”, disse o especialista.
“Com os últimos acontecimentos de violência política relatados no Equador, o processo eleitoral tem mudado radicalmente, e a população não vai aceitar mais um período de estado falido”, afirmou ele.
Billy Navarrete, Diretor Executivo do Comitê Permanente para a Defesa dos Direitos Humanos (CDH) — uma ONG com sede em Guayaquil —, disse ao Estadão que a penetração do crime na sociedade equatoriana não surgiu da noite para o dia, e “justamente esse é o principal motivo pelo qual este país precisa um plano estruturado e funcional que possa acabar gradualmente com este problema”.
“Enquanto os candidatos competem pela atenção dos eleitores, lá fora há um povo que vive sob medo contínuo. A única coisa que muita gente quer é uma solução pacífica”, afirmou Navarrete.
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