Em 1999, eu estava visitando Istambul quando a cidade foi atingida por um terremoto. Jamais esquecerei como foi o tremor — o estrondo profundo debaixo do chão com giros furiosos que levaram à devastação acima.
Mais de 17 mil pessoas morreram, outras 40 mil ficaram feridas. Foi uma tragédia natural terrível. Mas logo ficou evidente que o erro humano também colaborou bastante para o número de mortes. Apesar da Turquia se espalhar sobre uma zona sísmica bem conhecida, poucos edifícios no país foram projetados levando em conta terremotos.
O tremor de magnitude 7,8 que sacudiu grande parte do sul da Turquia na madrugada da segunda-feira e matou mais de 11 mil pessoas pode vir a ser o pior que o país já testemunhou. Foi em evento, segundo todos os relatos, apocalíptico.
Edifícios ruíram, gasodutos explodiram e entraram em chamas, aeroportos foram destruídos, o asfalto das estradas se rompeu. A natureza é a maior niveladora. Em temperaturas congelantes, sob escombros, jazem milhares de turcos e curdos, cidadãos e refugiados sírios, ricos e pobres, alauitas e sunitas. Uns morreram onde estavam, outros aguardam resgate pacientemente.
Hoje é um dia de resgate e lamento — não de apontar culpados. A Turquia está arrasada. Apesar da característica suspeita do Estado turco em relação a agências internacionais de ajuda e do desejo do governo de aparentar estar no controle, Ancara pediu apoio internacional imediatamente. Foi a decisão certa.
O primeiro tremor, que se seguiu de um segundo de magnitude quase igual, foi imenso de acordo com qualquer critério. O desmoronamento de prédios situados diretamente sobre a falha sísmica era provavelmente inevitável. Mas por toda a região houve muitas estruturas que resistiram firme, salvando as vidas de seus ocupantes enquanto prédios ao lado ruíam — o que aponta para práticas de construção negligentes como principal causa das mortes. Ainda precisamos de tempo para compreender completamente a amplitude com que falhas humanas podem ter contribuído para a perda de vidas. Mas indicadores preliminares certamente levantam suspeitas.
Mais sobre o terremoto na Turquia e na Síria
Em 1999, nós aprendemos rapidamente que não é o terremoto em si que mata as pessoas, são os blocos de concreto fabricados pelo homem que matam. A culpa recaiu sobre construtoras que usaram materiais baratos, autoridades que fracassaram em fazer valer as regulações relativamente brandas da construção civil e, evidentemente, sobre o governo, que não havia desenvolvido uma estratégia nacional de resposta a terremotos.
Por ironia, foi justamente por razões como essas que o terremoto de 1999 inspirou um enorme desejo por mudança na sociedade que em última instância beneficiou o Partido Justiça e Desenvolvimento (AKP) — do presidente Recep Tayyip Erdogan. Quando chegou ao poder, em 2002, o AKP só falava de reformas e em estreitar os laços com a União Europeia. Fundos da UE fluíram para a construção de escolas e outros prédios públicos mais seguros, seguindo códigos de construção europeus.
Mas conforme Erdogan ampliou seu próprio poder (e o sonho europeu da Turquia desvaneceu), o interesse do governo em atender normas de segurança europeias erodiu. Em 2018, quase duas décadas após o massivo tremor de 1999, a Turquia finalmente aprovou uma muito aguardada legislação para prevenção a terremotos. Mas essas regras foram mais honradas pelo incumprimento do que observadas. Erdogan descreveu frequentemente o setor da construção como a joia da coroa da economia — encorajando uma falta de supervisão tácita. Os grandes contratos públicos da Turquia tendem a cair nas mãos sempre dos mesmos cupinchas do governo. Pense o que quiser disso.
Um dos críticos turcos mais proeminente dessa mentalidade de desenvolvimento desenfreado da Turquia é o urbanista Tayfun Kahraman, que foi preso pelo governo por sua participação nos protestos de rua em 2013 contra a tentativa do governo de transformar um parque de Istambul em um shopping center. Kahraman foi sentenciado a 18 de prisão no mesmo caso que colocou atrás das grades o filantropo Osman Kavala. Pouco após a notícia do terremoto, ele tuitou de sua cela: “A prioridade é salvar vidas, atender as necessidades imediatas das pessoas e organizar nossa solidariedade. O pedido de responsabilização pelos edifícios públicos, hospitais, estradas e aeroportos arruinados virá depois”
Com os turcos mais ilustres e inteligentes presos ou jogados para escanteio, um espírito de mediocridade permeia a governança do país.
O desastre natural é um aspecto da história. A dependência da Turquia em relação ao crescimento econômico impulsionado pela construção, o clientelismo e sua disposição em ignorar seus próprios padrões de construção são o outro. O primeiro foi inevitável. Foi o segundo que levou às mortes em massa? No mínimo, o povo turco terá todo direito de exigir uma investigação detalhada precisamente dessa questão.
Hoje é o dia de chorar e oferecer apoio. Fiquei emocionada com a união e a solidariedade em todo o país: pessoas fazendo fila para doar sangue e tentando desesperadamente ajudar seus semelhantes. Mas também chegará o dia de fazer perguntas — fazer perguntas e exigir responsabilizações. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
*Asli Aydintasbas é ex-jornalista turca e pesquisadora visitante na Brookings Institution, em Washington DC
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