Especialistas militares veem semelhanças entre nova etapa da guerra na Ucrânia e 1ª Guerra Mundial

Sem grandes deslocamentos e com forças de defesa entrincheiradas nos dois lados da linha de frente, dinâmica do conflito mudou nos últimos meses, transformando-o em uma guerra de atrito

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Foto do author Renato Vasconcelos
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SÃO PAULO ― A cidade de Bakhmut, um enclave sob domínio ucraniano na província separatista de Donetsk, tornou-se a linha de frente da guerra na Ucrânia no último mês, com confrontos quase diários entre tropas de Kiev e de Moscou. Apesar do imenso poder de fogo empregado nos embates e do número desconhecido de mortos, pouca coisa mudou na região após semanas de escaramuça ― o que pode ser uma tendência para o segundo ano de guerra.

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Esta reportagem faz parte da série especial do Estadão sobre o primeiro ano da guerra. Ao longo dos próximos dias, a cobertura do jornal abordará o papel do Brasil na guerra, as perspectivas do conflito para o futuro, os arsenais dos dois países envolvidos nos combates e o drama dos refugiados.

Em setembro, a Ucrânia iniciou a última grande campanha militar do conflito, que resultou na retomada de Kharkiv e Kherson, e empurrou as forças russas para as províncias do Donbas. O avanço perdeu força em Donetsk, onde o Exército russo e os separatistas pró-Rússia se reagruparam e reforçaram suas fileiras com recrutas e mercenários, aumentando significativamente o número de contingente disponível.

A dinâmica atual da guerra arrancou dos especialistas comparações com a 1ª. Guerra, conhecida como guerra de trincheiras, em razão da dominância das posições defensivas e da pouca mobilidade de tropas. O cenário também chama a atenção por um embate entre um número cada vez maior de tropas russas, que apostam no uso massivo de infantaria, contra os militares cada vez mais bem equipados da Ucrânia, com armas da Otan.

Médicos militares resgatam soldado ferido em campo de batalha próximo a Bakhmut. Foto: Libkos/ AP - 22/02/2023

Em janeiro, o presidente ucraniano, Volodmir Zelenski, voltou-se aos seus aliados da Otan para pedir o envio de tanques de guerra, alegando que eles seriam a única ferramenta capaz de quebrar o bloqueio russo. Em paralelo, a ordem de Moscou foi avançar contra os rivais do outro lado da linha, do jeito que fosse possível, assumindo o risco. O custo não está claro, porque não há fontes que mensurem com precisão o número de mortos em combate, mas os avanços para conquistar Soledar e outras pequenas localidades e cercar Bakhmut .

“Não é que [Vladimir] Putin esteja usando Stalingrado como inspiração. Ele está usando as mesmas táticas. É uma onda humana. Ele está sufocando o inimigo com corpos de soldados russos. É o que vemos em Bakhmut, uma típica estratégia stalinista, mas quase como a 1ª. Guerra também. Soldados são enviados sem artilharia, sem apoio blindado e sem suporte aéreo, e os ucranianos, que estão tentando salvar sua terra, em posse de melhores equipamentos e tecnologia, estão ceifando os soldados russos”, disse o historiador Leon Aron, diretor de Estudos Russos do American Enterprise Institute.

A dinâmica atual tem cobrado um preço alto nos dois lados do front. Além das baixas pelos combates frequentes, a Ucrânia está usando uma quantidade de munição que a Otan já disse ser maior que sua capacidade de produção. Uma linha de suprimentos bélicos da América Latina chegou a ser cogitada ― o chanceler ucraniano, Dmitro Kuleba, chegou a afirmar em uma conferência com jornalistas latino-americanos, que preparava uma estratégia de política externa específica para a região ―, mas os países são reticentes em se envolver no conflito.

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Ruídos também começam a ecoar das linhas russas, muito embora o Kremlin mantenha um controle firme das informações sobre suas ações militares. Soldados desertaram nos últimos meses para países da União Europeia, enquanto o líder do grupo mercenário Wagner, Ieugeni Prigozhin, um aliado do presidente Vladimir Putin, entrou em um embate aberto contra as autoridades militares em Moscou por discordâncias sobre a ofensiva em Bakhmut.

“O chefe do Estado-Maior e o ministro da Defesa estão dando ordens em todos os lugares não apenas para não entregar munição ao grupo paramilitar Wagner, mas também para não ajudar em termos de transporte aéreo. Há uma oposição frontal, que nada mais é do que uma tentativa de destruir [o grupo] Wagner. Pode ser comparada com uma traição à pátria, num momento em que o Wagner luta para [conquistar] Bakhmut e sofre centenas de baixas todos os dias”, disse Prigozhin em um áudio veiculado pelo Telegram na terça-feira, 21.

O Ministério da Defesa da Rússia respondeu em um comunicado com uma lista detalhada de suprimentos de munição entregues aos “voluntários” russos, como é chamado o grupo Wagner e denunciando como “absolutamente falso” que os suprimentos estejam diminuindo. Na quarta-feira, 22, o líder do grupo mercenário convocou a população russa a exigir que os militares entreguem mais armamentos ― em um país onde qualquer oposição ao governo ou ao Exército costumam ser reprimida.

A dissonância entre Exército e mercenários, no entanto, não deve diminuir a capacidade da máquina de guerra russa. Na avaliação da professora Mariana Kalil, da Escola Superior de Guerra, Moscou parece ter encontrado um certo equilíbrio na composição das tropas presentes na Ucrânia com o aumento da presença dos paramilitares.

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“A presença de militares não implica na ausência de paramilitares ou mercenários, inclusive por causa da função tática de cada um. Um Exército tende a ser mais lento do que um grupo de mercenários, e cada um costuma servir a um tipo de missão. A presença em número dos dois tipos de tropa só indica que a Rússia pretende ficar na Ucrânia por mais tempo, porque eleva o perfil da presença russa no país”, explicou.

Objetivos incertos, conflito prolongado

Na conferência com jornalistas latino-americanos na semana passada, o chanceler Dmitro Kuleba comparou as chances de uma vitória militar da Ucrânia às guerras de independência travadas no continente americano no século XIX, após ser questionado pelo Estadão sobre a possibilidade de vitória no campo de batalha e possíveis caminhos para uma solução diplomática.

“Se tivéssemos a oportunidade de fazer a mesma pergunta aos líderes das guerras pela independência na América Latina. Eles diriam que sim, pode ser vencida, embora o inimigo seja muito mais forte e alguns acreditem que nossas chances são muito baixas. Vamos vencer, porque lutamos pela causa certa e sabemos vencer. E a minha resposta é a mesma”, disse o chanceler.

Soldados ucranianos participam de treinamento sobre técnicas de guerra em trincheiras na Inglaterra. Foto: Stuart McDill/ Reuters - 16/02/2023

“Essa vitória vai ser largamente alcançada no campo de batalha. Mas claro que a diplomacia vai ter o seu papel também”, concluiu Kuleba.

O foco militar na fala do responsável pelo serviço diplomático ucraniano reforça a probabilidade indicada por analistas que o conflito ainda está longe de se resolver, principalmente considerando a falta de clareza nos objetivos de Rússia e Ucrânia no momento atual da guerra.

“Putin nunca definiu [o que é] vitória, mas eu acredito que, nesta altura, o objetivo dele é não perder. Não vejo um objetivo de longo prazo. O que existe são objetivos táticos diários para manter a campanha militar, até o Ocidente cansar de apoiar a Ucrânia e pressioná-la a aceitar os termos da Rússia”, disse Leon Aron.

Vladimir Putin caminha em frente a tropas durante cerimônia no túmulo do soldado desconhecido. Foto: Pavel Bednyakov/ Sputnik/ Kremlin Pool via AP

“Acredito que o objetivo do ocidente seja uma imagem espelhada do objetivo russo: exaurir a Rússia para estabelecer as condições favoráveis à Ucrânia”, acrescentou.

De acordo com a professora Mariana Kalil, toda negociação de paz passa pela noção de “maturidade do conflito”, que é quando os dois lados envolvidos já estão cansados do combate e estão mais dispostos a aceitar certas condições desfavoráveis para alcançar a paz.

“Temos elementos que mostram que a guerra da Ucrânia ainda vai durar muito, que a fadiga, o cansaço, a maturidade do conflito para que haja vontade política das duas partes para uma negociação e se retirarem pode demorar muito”, disse.

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