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Esquecemos que potências nucleares também perdem guerras; leia o artigo de Timothy Snyder

Retórica nuclear da Rússia é uma arma que se fundamenta em mentiras; armas nucleares não deram vitória aos franceses na Argélia nem preservaram Império Britânico

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Por Timothy Snyder

Na era Brejnev da juventude de Vladimir Putin, o 9 de Maio era uma ocasião para o militarismo soviético, uma celebração de armas e força. Poderíamos nos esquecer, pelo menos por um instante, que a guerra de escolha de Leonid Brejnev seria travada e perdida no Afeganistão menos de duas décadas após ele instituir as celebrações do 9 de Maio, da mesma forma que a provável última guerra de Putin está sendo atualmente travada e perdida na Ucrânia.

Durante ambos os conflitos, as pessoas no Ocidente se preocupavam, compreensivelmente, a respeito da guerra nuclear.

A Rússia de hoje profere uma torrente infinita de ameaças nucleares. No Ocidente de hoje, ao contrário do que ocorreu na Guerra Fria, elas são debatidas em termos psicológicos em vez de estratégicos. Como Putin se sente? Como nós nos sentimos?

Imagem mostra desfile de mísseis balísticos em torno da Praça Vermelha nesta terça-feira, 9, durante as celebrações da vitória soviética sobre o nazismo na 2.ª Guerra Foto: Alexander Zemlianichenko/AP

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O medo da “escalada” dos Estados Unidos atrasou o fornecimento de armas que poderiam ter permitido à Ucrânia vencer no ano passado. Um após o outro, os sistemas de armas classificados como “escalatórios” estão sendo enviados agora, sem nenhuma consequência negativa. Mas o custo do atraso pode ser observado nos territórios ucranianos que a Rússia ainda controla: os bolsões de morte, as câmaras de tortura e os lares esvaziados pelo sequestro de seus filhos. Dezenas de milhares de soldados de ambos os lados morreram desnecessariamente.

Em quase 15 meses de guerra, apesar da propaganda nuclear da Rússia e da ansiedade no Ocidente, não houve nenhum uso de armas atômicas. Aqueles que previram a “escalada” se os ucranianos resistissem, se o Ocidente fornecesse armamentos ou se a Rússia sofresse derrotas, até aqui, estão errados. Estrategistas apontam para dissuasão e notam que o uso de armas nucleares de fato não ocasionaria a vitória russa — desencadearia, em vez disso, uma resposta dramática do Ocidente e tornaria párias os líderes russos. Mas há uma explicação mais profunda: a retórica nuclear da Rússia é em si uma arma.

Ela se fundamenta em premissas falsas. A propaganda nuclear russa supõe que o agressor sempre vence. Mas o agressor nem sempre sai vencedor. Os propagandistas russos querem que nós acreditemos que potências nucleares são incapazes de perder guerras, segundo a lógica de que elas sempre podem acionar armas nucleares para vencer. Trata-se de uma fantasia a-histórica. Armas nucleares não deram a vitória aos franceses na Argélia nem preservaram o Império Britânico. A União Soviética perdeu sua guerra no Afeganistão. Israel não conseguiu vencer no Líbano. Potências nucleares perdem guerras com certa regularidade.

Alguns americanos propuseram um cenário nuclear no qual os russos teriam de usar armas atômicas para evitar a derrota. Mas a Rússia tem sido derrotada na Ucrânia, segundo seus próprios termos, repetidamente. O que os russos comprovaram foi sua capacidade de alterar esses termos depois de cada derrota. A Rússia fracassou em alcançar o objetivo explícito da “operação militar especial”, de derrubar o governo democraticamente eleito da Ucrânia. Não haverá humilhação maior que essa. À derrota em Kiev seguiram-se outras, em Kharkiv e Kherson. Cada derrota ocasionou reportagens de capa dos propagandistas russos e seus seguidores falando de “gestos de boa vontade”, “retiradas estratégicas” e por aí vai. A escalada ocorreu na carga de trabalho dos propagandistas.

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Soldados russos marcham na Praça Vermelha durante as celebrações do Dia da Vitória, nesta terça-feira, 9 Foto: Alexander Zemlianichenko/AP

A Rússia pode perder sem ser encurralada. O país possui espaço que abrange 11 fusos horários para abrigar soldados recuados e prática de sobra em reformulações propagandísticas. Na realidade, os líderes russos já indicaram o que farão se acreditarem que estão perdendo: eles alterarão os termos de referência e os focos de cobertura dos meios de comunicação de seu país. O Estado cleptocrata de Putin, como um todo, e suas dependências — como em relação ao exército mercenário Wagner — são projetos de relações públicas com um braço militar. A premissa na política russa é que a retórica supera a realidade. E preparativos retóricos para a derrota foram feitos.

Sob a vaga belicosidade de Putin há a ideia de que a Rússia vencerá se evitar (em suas próprias palavras), uma “derrota estratégica” imposta pela Otan. Quase independentemente do que possa acontecer, será fácil para ele definir a guerra na Ucrânia como uma vitória estratégica. Já que o Kremlin afirma estar combatendo a Otan, tudo o que Putin precisa dizer é que a Rússia impediu a Otan de entrar na Rússia. Nesse espírito, o comandante do Wagner Group escreveu recentemente que a Rússia pode terminar a “operação militar especial” a qualquer momento e acaba de afirmar que seus objetivos terão sido alcançados contanto que a Rússia não se retire de mais território ucraniano ocupado.

Ao levar a chantagem nuclear a sério, nós elevamos, na realidade, a imprevisibilidade geral da guerra atômica. Se a chantagem nuclear possibilitar uma vitória da Rússia, as consequências serão incalculavelmente nefastas. Se qualquer país com armas nucleares puder fazer o que bem entender, o direito não significará nada, nenhuma ordem internacional será possível e a catástrofe estará à espreita a cada esquina. Países sem armas nucleares terão de construí-las, segundo a lógica de que precisarão de dissuasão atômica no futuro. A proliferação nuclear tornaria a guerra nuclear muito mais provável no futuro.

Quando nós entendemos que a retórica nuclear é em si uma arma, podemos tornar a situação menos arriscada. A maneira de avançar no pensamento estratégico é nos livrarmos de nossas próprias ansiedades e considerarmos as da Rússia. Os russos falam de armas nucleares não porque pretendam usá-las, mas porque acreditam que um grande arsenal os torna uma superpotência. A retórica nuclear faz eles se sentirem poderosos. Eles veem a ameaça nuclear como uma prerrogativa própria e acreditam que os demais deveriam se render na primeira menção de suas armas. Os ucranianos não permitiram que isso afetasse suas táticas.

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Se os russos detonarem uma arma nuclear, eles perderão aquele tesouro cuidadosamente guardado do status de superpotência. Uma ação como essa constituiria uma admissão de que seu Exército foi vencido — uma tremenda perda de supremacia. Pior ainda, seus vizinhos construiriam (ou reforçariam) seus próprios arsenais nucleares. Isso furtaria da Rússia o status de superpotência nas mentes dos próprios russos. Este é, para a liderança russa, o único desfecho verdadeiramente intolerável desta guerra. Na minha visão, o maior risco de uma ação nuclear da Rússia nesta guerra seria, portanto, um estratagema em que Moscou coloque a culpa na Ucrânia, como a destruição deliberada da Usina Nuclear de Zaporizhzhia.

A guerra é imprevisível. A história militar é repleta de surpresas. Putin empreendeu uma guerra de atrocidade, e mais atrocidades são uma certeza conforme a guerra continuar. A Rússia engendrou não apenas sofrimentos desnecessários, mas também um risco desnecessário quando invadiu a Ucrânia. Nós temos de trabalhar dentro desse mundo de risco e horror — e avaliá-lo calmamente. Nenhuma opção está livre de perigos; nossa responsabilidade é reduzi-los. Quando os russos falam de guerra nuclear, a resposta mais segura é garantir sua derrota absoluta na guerra convencional. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Timothy Snyder, professor Levin de história em Yale, estudou controle de armas nucleares antes de se dedicar à história do Leste Europeu. Ele é autor, entre outras livros, de “Terras de sangue: A Europa entre Hitler e Stalin”.

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