Opinião | Estados Unidos e China são dois elefantes se olhando através de um canudo. Por que isso é um risco?

Os EUA e a China têm muito mais sobre o que conversar do que apenas comércio e Taiwan — e quem é o indiscutível campeão peso-pesado do século 21

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Por Thomas Friedman (The New York Times)

Foram muitas as sobrancelhas levantadas e as risadas silenciosas este mês quando o presidente eleito Donald Trump convidou o presidente Xi Jinping para Washington para sua cerimônia de posse. Líderes estrangeiros não comparecem às cerimônias de posse de presidentes americanos, é claro, mas acho que a ideia de Trump foi na verdade boa. Tendo acabado de retornar de uma viagem à China, posso dizer que se eu desenhasse uma imagem das relações entre americanos e chineses hoje, seria a imagem de dois elefantes se observando através de um canudo.

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Isso não é bom. Porque, subitamente, os EUA e a China têm muito mais a debater do que apenas o comércio e Taiwan — e quem seria o campeão indiscutível dos pesos-pesados do século XXI.

O mundo hoje enfrenta hoje três desafios de nossa época: a inteligência artificial descontrolada, as mudanças climáticas e a desordem disseminada por estados em colapso. Os EUA e a China são as superpotências de IA do mundo. Eles são os dois maiores emissores de carbono do mundo. E eles têm as duas maiores forças navais do mundo, capazes de projetar poder globalmente. Em outras palavras, os Estados Unidos e a China são as únicas duas potências que, juntas, podem oferecer alguma esperança de administrar superinteligência, supertempestades e pequenos grupos superpoderosos de homens raivosos em estados falidos — sem mencionar supervírus — em um momento em que o mundo se tornou superfundido.

É por isso que precisamos de um Comunicado de Xangai atualizado, o documento que estabeleceu parâmetros para normalizar as relações EUA-China quando Richard Nixon foi à China e conheceu Mao Tsé-tung em 1972. Agora, infelizmente, estamos desnormalizando essas relações. Nossos dois países estão se afastando cada vez mais, em todos os níveis. Nas três décadas em que visitei Pequim e Xangai, nunca senti o que senti nesta viagem — como se eu fosse o único americano na China.

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O presidente eleito dos EUA, Donald Trump, e o presidente chinês, Xi Jinping, em cúpula em 2019: relação tumultuosa  Foto: Nicolas ASFOURI / AFP

Claro que não era, mas os sotaques americanos que você normalmente ouviria em uma grande estação de trem de Xangai ou no saguão de um hotel de Pequim estavam notavelmente ausentes. Os pais chineses dizem que muitas famílias não querem mais que seus filhos vão para os EUA para estudar, porque temem que isso esteja se tornando perigoso — o FBI pode segui-los enquanto estiverem nos EUA, e seu próprio governo pode suspeitar deles quando retornarem para casa. O mesmo agora é verdade para estudantes americanos na China. Um professor na China que trabalha com estudantes estrangeiros me disse que alguns americanos não querem mais estudar lá passando semestres no exterior, em parte porque não gostam de competir com estudantes chineses superintensos e em parte porque, atualmente, ter estudado ou trabalhado na China pode levantar suspeitas de segurança com futuros empregadores em potencial nos EUA.

É verdade que, por baixo de toda a conversa falando em uma nova guerra fria entre China e EUA, ainda há mais de 270.000 estudantes chineses estudando nos EUA, de acordo com a Embaixada dos EUA em Pequim, mas agora há apenas cerca de 1.100 estudantes universitários americanos estudando na China. Isso é uma queda em relação a cerca de 15.000 dez anos atrás — mas um aumento em relação a algumas centenas em 2022, não muito depois do pico da Covid. Se essas tendências continuarem, de onde virá a próxima geração de acadêmicos e diplomatas americanos que falam chinês e, da mesma forma, de chineses que entenderão os EUA?

“Devemos competir com a China — pois é nosso maior rival em termos de poderio militar, tecnológico e econômico global — mas a realidade complicada é que também precisamos trabalhar com a China em questões de mudança climática, fentanil e outras questões para criar um mundo mais estável”, disse-me o embaixador dos EUA na China, Nicholas Burns, em Pequim. Portanto, “precisamos de um grupo de jovens americanos que falem mandarim e tenham amizades com jovens chineses. Temos que criar espaço para que pessoas de ambos os países se conectem. Eles são o lastro no relacionamento. Costumávamos ter cinco milhões de turistas indo e voltando de um país para o outro, e hoje o fluxo é uma fração disso”.

A argumentação de Burns é fundamental. Foram as comunidades empresariais, turistas e estudantes que suavizaram os cotovelos cada vez mais afiados entre a China e os EUA, conforme a China ultrapassava a Rússia como principal rival global da América, e o relacionamento EUA-China pendia mais para o confronto direto do que para um equilíbrio entre competição e colaboração. À medida que esse lastro diminui constantemente, o relacionamento agora está sendo cada vez mais definido apenas pelo confronto bruto, deixando pouco espaço para a colaboração.

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Para seu embaixador na China, Trump escolheu David Perdue, que foi senador da Geórgia de 2015 a 2021. Perdue é um sujeito competente que fez negócios no Leste Asiático antes de ir para o Senado. Mas, em um ensaio de setembro de 2024 no Washington Examiner, ele escreveu a respeito do Partido Comunista Chinês: “Por meio de toda a minha atividade na China e na região, uma coisa ficou dolorosamente clara: o PCC acredita firmemente que seu destino legítimo é recuperar sua posição histórica como hegemônico da ordem mundial — e converter o mundo ao marxismo”.

Hmmm. Eu não contestaria a questão da hegemonia, mas “converter o mundo ao marxismo”? Antes de assumir seu posto, espero que Perdue seja informado para entender que a China hoje tem muito mais muskistas — jovens que querem ser como Elon Musk — do que marxistas. Os chineses estão tentando nos vencer em nosso jogo, o capitalismo, não nos converter ao marxismo.

Sim, o Partido Comunista Chinês está tão firmemente no controle da China agora quanto em qualquer outro momento desde o final dos anos 1980. Mas é comunista apenas no nome. A ideologia que ele promove é uma combinação de capitalismo dirigido pelo Estado e capitalismo selvagem do velho oeste, onde dezenas de empresas privadas e estatais se enfrentam em competições pela sobrevivência do mais apto em uma série de setores de alta tecnologia para aumentar a classe média da China.

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Embora Trump seja frequentemente retratado na China como um crítico da China e o “homem das tarifas”, fiquei impressionado com a quantidade de especialistas econômicos chineses com quem conversei que sugeriram que a China preferia lidar com ele do que com os democratas. Como David Daokui Li, diretor do Centro para a China na Economia Mundial da Universidade de Tsinghua e autor de “Visão do Mundo da China”, me apontou: “Muitas pessoas na China sentem que entendem Trump. Elas o veem como Deng Xiaoping. Os chineses se identificam com Trump porque ele acha que economia é tudo.”

Deng foi o famoso líder chinês pragmático, transacional e negociador que forçou a abertura da economia chinesa para o mundo com o lema nada marxista a respeito de como a China deveria deixar para trás o planejamento central comunista e simplesmente optar por qualquer coisa que funcionasse para criar crescimento — ou como ele disse: “Não importa se um gato é preto ou branco, contanto que ele apanhe ratos”.

Pessoas andam em uma rua de Pequim. Foto: ADEK BERRY/AFP

Nada disso impede a competição estratégica de grandes potências entre os EUA e a China — do hacking cibernético à espionagem de aeronaves e navios de guerra um do outro. O que quer que a China esteja fazendo conosco nesses reinos, espero que estejamos fazendo com eles. Mas duas grandes potências como os EUA e a China — que ainda acumulam quase US$ 600 bilhões em comércio bidirecional anualmente (os EUA importam cerca de US$ 430 bilhões da China e exportam perto de US$ 150 bilhões) — também têm um interesse mútuo em fazer outras coisas. Isso me traz de volta ao motivo pelo qual cnsidero um acerto Trump tentar romper as convenções e convidar Xi para Washington.

Quando estive em Xangai este mês, meu colega Keith Bradsher, chefe da sucursal do Times em Pequim, sugeriu que visitássemos o Jin Jiang Hotel, onde, na noite de 27 de fevereiro de 1972, Nixon e o premiê Chu En-lai assinaram o Comunicado de Xangai, orientando a renovação das relações EUA-China. Nele, os EUA reconheceram a visão de que havia uma China — o que foi uma concessão a Pequim na questão de Taiwan — mas afirmaram que qualquer resolução do futuro de Taiwan tinha que ser pacífica, e os dois lados também estabeleceram suas metas para relações econômicas e interpessoais. O salão onde a assinatura ocorreu estava adornado com fotos desbotadas de Nixon e Chu brindando calorosamente seu novo relacionamento. Olhando para elas hoje, eu só conseguia me perguntar: “Isso realmente aconteceu?”

Um novo Comunicado de Xangai poderia ajudar a governar as novas realidades que ambos os países e o mundo enfrentam. A primeira é que as empresas de tecnologia dos EUA e da China estão correndo em direção à inteligência artificial geral; a deles está mais focada em aprimorar a produção industrial e a vigilância, e a nossa em uma ampla gama de usos, desde escrever roteiros de filmes até projetar novos medicamentos. Mesmo que a inteligência artificial geral — uma máquina consciente — esteja a cinco ou sete anos de distância, Pequim e Washington precisam colaborar em um conjunto de regras que ambos usaremos para governar a IA e que o resto do mundo deve seguir.

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Um faxineiro carregando uma vassoura e uma lata de lixo caminha por uma rua em Pequim. Foto: JADE GAO / AFP

Isso significaria incorporar em todos os sistemas de IA algoritmos que garantam que o sistema não possa ser usado para propósitos destrutivos por atores ruins e não possa tentar por conta própria destruir os humanos que o construíram.

Em um evento pouco notado, o presidente Biden e Xi deram os primeiros passos para construir tal regime quando concordaram em sua recente cúpula no Peru em uma declaração sustentando que “os dois líderes afirmaram a necessidade de manter o controle humano da decisão de usar armas nucleares”. Isso significa que nenhuma decisão de disparo de uma arma nuclear pode ser tomada por um robô de IA sozinho. Sempre deve haver um humano no circuito.

As autoridades dos EUA me disseram que essas 17 palavras levaram meses para serem negociadas. Elas não devem ser as últimas quando se trata de erguer barreiras em torno do uso da IA.

Em relação à gestão das mudanças climáticas, a China, o maior emissor mundial de carbono, e os EUA, o segundo maior, precisam concordar com um conjunto de estratégias para levar o mundo a zerar as emissões líquidas de carbono até 2050 — para reduzir os desafios de saúde, econômicos e climáticos extremos desastrosos causados pelas mudanças climáticas, que criarão uma desordem crescente em estados falidos.

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Como tentei explicar aos meus interlocutores chineses nesta viagem: vocês acham que somos inimigos mútuos. Talvez sejamos, mas agora também temos um grande inimigo em comum, assim como tínhamos em 1972. Só que, desta vez, não é a Rússia. É a desordem. Mais e mais estados-nação estão se desintegrando — em desordem — e perdendo sua população como imigrantes lutando para chegar a zonas de ordem.

Não são apenas a Líbia, o Iêmen, o Sudão, o Líbano, a Síria e a Somália no Oriente Médio que são atormentados pela desordem; são também alguns dos melhores amigos da China no sul global, como Venezuela, Zimbábue e Mianmar. E mais do que alguns participantes da Iniciativa Cinturão e Rota da China, para a qual a China emprestou bilhões, estão em dificuldades — incluindo Sri Lanka, Argentina, Quênia, Malásia, Paquistão, Montenegro e Tanzânia. Pequim agora está começando a exigir seu dinheiro de volta deles e restringiu novos empréstimos. Mas isso está apenas piorando a crise em alguns desses países.

Somente os EUA e a China, trabalhando em conjunto com o FMI e o Banco Mundial, terão os recursos, o poder e a influência para conter parte dessa desordem, e é por isso que desafiei repetidamente meus interlocutores chineses: por que vocês estão andando com perdedores como a Rússia de Vladimir Putin e o Irã? Como vocês podem ser neutros entre o Hamas e Israel?

A China passou de um país isolado e empobrecido para um gigante industrial com uma classe média crescente em um mundo no qual as regras do jogo — envolvendo comércio e geopolítica — foram amplamente definidas pelos Estados Unidos após a Segunda Guerra Mundial, para o benefício e estabilidade de todos.

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A ideia de que a China pode prosperar em um mundo moldado pelos valores de um ladrão assassino como Putin, que é um agente da desordem, ou pelo Irã fundamentalista, outro promotor da desordem e o próximo país com probabilidade de se fragmentar, ou pelo sul global — ou somente pela China — é loucura.

Se eu fosse Trump, exploraria uma jogada do tipo “Nixon vai à China” — uma reaproximação entre os EUA e a China que isole totalmente a Rússia e o Irã. É assim que se acaba com a guerra na Ucrânia, diminui a influência do Irã no Oriente Médio e acalma as tensões com Pequim em um só gesto. Trump é imprevisível o suficiente para tentar algo assim.

De qualquer forma, a China e os EUA são compelidos a trabalhar juntos se quisermos um século XXI estável. Se a competição e a colaboração derem lugar totalmente ao confronto, um século XXI desordenado nos aguarda a todos. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

Opinião por Thomas Friedman

É ganhador do Pullitzer e colunista do NYT. Especialista em relações internacionais, escreveu 'De Beirute a Jerusalém'

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