Uma das minhas cláusulas pétreas de reportagem no Oriente Médio é que às vezes a gente precisa recontar uma história para ver as coisas com ainda mais clareza do que antes. Estou experimentando isso com a guerra Irã-Israel-Hamas-Hezbollah, que logo poderá atrair os Estados Unidos. Não poderia estar mais claro do que neste momento que, ainda que o ataque surpresa do Hamas contra Israel em 7 de outubro tenha sido motivado em parte pelas irresponsáveis expansões dos assentamentos coloniais israelenses, pelo tratamento brutal aos presos palestinos e pelas intromissões nos lugares sagrados para os muçulmanos em Jerusalém, o ataque terrorista também foi parte de uma campanha maior do Irã para expulsar os EUA do Oriente Médio e colocar contra as cordas os aliados árabes e israelenses dos americanos — antes que eles possam encurralar o Irã.
E por este motivo, se o atual conflito olho por olho, dente por dente entre Israel, Irã e os aliados de Teerã (Hamas, Hezbollah e os houthis) escalar para uma guerra em escala total — que Israel não teria capacidade de combater sozinho por muito tempo — o presidente Joe Biden poderia se ver diante da decisão mais fatídica de sua presidência: entrar ou não em guerra com o Irã, ao lado de Israel, e aniquilar o programa nuclear de Teerã, que é a pedra fundamental da rede estratégica iraniana na região. O Irã tem construído essa rede para suplantar os EUA enquanto força mais poderosa no Oriente Médio e fazer Israel sangrar em uma morte por mil cortes infligida pelos aliados de Teerã.
Mas os EUA têm de se precaver constantemente a respeito do que o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu possa aprontar. O ex-diplomata israelense Alon Pinkas observou no Haaretz, na quinta-feira, que devemos questionar por que Netanyahu escolheu este momento para assassinar em Teerã o líder do Hamas Ismail Haniyeh — em meio a delicadas negociações sobre a libertação dos reféns.
Apenas porque podia (Deus sabe que Haniyeh tinha nas mãos muito sangue israelense), ou Israel quis “provocar deliberadamente uma escalada na esperança de uma conflagração com o Irã atrair os EUA para o conflito, distanciando ainda mais o primeiro-ministro Binyamin Netanyahu do fracasso em 7 de outubro — uma calamidade pela qual, até aqui, ele não foi responsabilizado”.
Em seus quase 17 anos no poder, Netanyahu tanto colaborou para os interesses americanos na região quanto os minou. Duvido que Bibi poria os interesses dos EUA acima de suas próprias necessidades de sobrevivência política — pois nunca colocou nem mesmo os interesses de Israel acima disso.
Mas a honestidade também exige de mim reconhecer que algumas coisas são verdade ainda que Netanyahu acredite nelas. E uma dessas coisas é que o Irã é a maior potência imperial autóctone no Oriente Médio — e por meio de seus aliados Teerã tem dominado a política de milhões de árabes que vivem no Líbano, na Síria, em Gaza, no Iraque e no Iêmen; arrastando seus cidadãos a guerras contra Israel nas quais poucos deles têm interesse. Nenhum líder em nenhum desses Estados árabes pode hoje tomar decisões hostis aos interesses do Irã sem temer ser assassinado.
O Líbano não consegue empossar um presidente desde 30 de outubro de 2022, em grande medida porque Teerã não permite que algum libanês patriota assuma o poder por lá. O Líbano e a Síria tiveram de decretar três dias de luto após a morte do presidente iraniano em uma queda de helicóptero. Isso mesmo, três dias de luto pelo presidente de outro país. Isso tem um nome: imperialismo iraniano.
E algumas coisas também são verdade ainda que o Irã acredite nelas. Uma delas é que Biden, o secretário de Estado, Antony Blinken, e o conselheiro de segurança nacional, Jake Sullivan, têm silenciosamente e eficazmente construído uma rede de extensas alianças ao longo dos anos recentes para conter a China e isolar o Irã.
Outra é o novo agrupamento econômico chamado I2-U2, que inclui Índia, Israel, Emirados Árabes Unidos e EUA. E mais uma — ainda mais importante — é o Corredor Econômico Índia-Oriente Médio-Europa, conhecido como IMEC.
O IMEC foi projetado para fomentar relações comerciais mais próximas e linhas de abastecimento de energia entre a União Europeia e a Índia através dos países aliados dos EUA no Golfo Pérsico. O objetivo: ajudar a Índia a escapar dos esforços da China de circundar Nova Délhi com sua iniciativa de infraestrutura Cinturão e Rota e criar uma grande aliança geoeconômica pró-EUA abrangendo a UE e passando pela Arábia Saudita e os EAU até chegar na Índia que seja capaz também de isolar o Irã. Os parceiros fundadores do IMEC são EUA, UE, Arábia Saudita, Índia, EAU, França, Alemanha e Itália.
O plano americano foi conferir peso militar a essas alianças entrelaçadas forjando, em seu cerne, um tratado de defesa mútua com a Arábia Saudita que também envolvesse os sauditas normalizando relações com Israel contanto que os israelenses concordassem em progredir no sentido de uma solução de dois Estados com os palestinos. O pacto forjado significaria que todos os aliados dos americanos no Oriente Médio operariam como um time anti-Irã: Jordânia, Egito, EAU, Israel, Arábia Saudita e Bahrein, em particular.
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O Irã sabia que tinha de evitar esse acordo saudita-americano-israelense para não ficar isolado estrategicamente. O Hamas sabia que tinha de evitá-lo porque esse acordo possibilitaria a integração de Israel ao mundo muçulmano — em parceria com o principal rival palestino do Hamas, a Autoridade Palestina em Ramallah, e a Arábia Saudita.
Como sabemos que o Irã acreditava nisso? O líder-supremo do Irã nos disse isso quatro dias antes de o Hamas invadir Israel. É meio assustador ler hoje essa matéria do Times of Israel, de 3 de outubro de 2023:
O líder-supremo, Ali Khamenei, afirmou que os países muçulmanos normalizando relações com Israel “apostam no cavalo que vai perder”, noticiou a mídia estatal na terça-feira, conforme seu rival regional, a Arábia Saudita, se movimenta no sentido de estabelecer laços com Jerusalém. Khamenei também previu que Israel logo será erradicado, em um discurso a autoridades do governo e embaixadores de países muçulmanos. (…) “A posição definitiva da República Islâmica é que os governos que priorizarem o jogo de normalização com o regime sionista incorrerão em perdas”, afirmou ele. (…) “Atualmente a situação do regime sionista não deveria motivar proximidade; eles não deveriam cometer esse erro”.
Tendo sabido ou não a respeito do momento preciso anteriormente, o Irã sem dúvida considerou a invasão do Hamas em Gaza uma maneira de isolar Israel e seu patrono americano forçando os israelenses a infligir milhares de baixas civis para derrotar a rede subterrânea do Hamas e minar qualquer normalização entre sauditas, palestinos e israelenses. Esta é a maior história aqui.
Mas como ela vai acabar? No mês recente, Israel assassinou o comandante-sênior do Hezbollah, Fuad Shukr, em Beirute; o líder político do Hamas, Haniyeh; e Muhammad Deif, o comandante militar do Hamas, em Gaza. Todos eles eram obcecados em arrastar seu povo para uma guerra perpétua para destruir o Estado judaico.
Mas Israel já matou líderes n.º 1 e n.º 2 do Hamas antes. O problema é que o Hamas e o Hezbollah são redes, e, conforme me ensinou certa vez o estrategista de redes John Arquilla, autor de “Bitskrieg: The New Challenge of Cyberwarfare” (Bitskrieg: O novo desafio da guerra cibernética), “em uma rede, todos são n.º2″. Sucessores sempre emergem. E com frequência piores que seus antecessores.
A única maneira de marginalizar o Hamas politicamente de verdade e isolar o Irã regionalmente é Israel ajudar a dar poder à alternativa óbvia e mais moderada: a Autoridade Palestina, que adotou os Acordos de Oslo e coopera com Israel diariamente na tentativa de conter a violência na Cisjordânia — o que Netanyahu sabe muito bem mas não reconhece porque quer deslegitimar qualquer alternativa palestina crível ao Hamas, para poder dizer ao mundo e aos israelenses que Israel não tem um parceiro para uma solução de dois Estados.
Com esse único movimento de xadrez, aceitar a Autoridade Palestina, Netanyahu poderia cimentar a aliança entre EUA, Israel e os Estados árabes, instalar uma estrutura palestina de governo em Gaza que não ameaçasse Israel e isolar o Irã e seus aliados militarmente e politicamente, tornando sua aposta em uma guerra do Hamas um desperdício absoluto de vidas e dinheiro. Mas para fazer isso Bibi teria de colocar em risco sua coalizão de governo, porque seus parceiros messiânicos de extrema direita se opõem a qualquer acordo com qualquer entidade palestina crível.
Conclusão: eu creio desde o início da guerra em Gaza que é isso o que está em jogo, mas agora isso ficou claro como o dia. O que não está tão claro é o que Bibi vai fazer. Quais interesses ele irá servir? Os dele, de Israel, dos EUA ou do Irã?
Porque, se fizer a jogada certa neste momento, Netanyahu deixará o Irã despido politicamente. Teerã não seria mais capaz de disfarçar seu objetivo de controlar todo o mundo árabe escondendo a si mesmo e os seus aliados atrás da causa palestina. Há muito o Irã se alegra em deixar palestinos, libaneses, iemenitas, iraquianos e sírios morrer “pela Palestina”, mas nunca coloca iranianos em risco se puder evitar. As lágrimas de crocodilo derramadas pelos líderes religiosos do Irã pelos palestinos são uma fraude — um mero disfarce para a aventura imperialista de Teerã na região.
Netanyahu pode agora levantar a cortina e revelar toda essa encenação cínica. Mas isso exigiria que ele colocasse os interesses de Israel acima de sua própria sobrevivência política. Será que ele fará isso? / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO
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