‘Estão esquecendo de incluir as pessoas nessas soluções para a guerra’, diz Nobel da Paz ucraniana

Oleksandra Matviichuk por meio de sua organização Centro das Liberdades Civis, que foi laureada com o Nobel de 2022, já documentou mais de 81 mil crimes de guerra no conflito com a Rússia

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Foto do author Carolina Marins
Atualização:
Foto: Reprodução/Facebook
Entrevista comOleksandra MatviichukAdvogada ucraniana e líder da organização Centro das Liberdades Civis, laureada com o Nobel da Paz de 2022

Toda essa discussão atual sobre uma proposta de paz para a Ucrânia parece surreal para a advogada ucraniana Oleksandra Matviichuk pelo simples fato de não mencionar em nenhum momento as vidas daqueles impactados pela guerra. A ativista de direitos humanos lidera a organização Centro das Liberdades Civis, com sede em Kiev, que foi laureada com o prêmio Nobel da Paz em 2022 junto com uma organização russa e ativistas de Belarus.

Oleksandra conversou com o Estadão por videochamada de Varsóvia, depois de ter participado da Conferência de Segurança de Munique, na Alemanha, onde a Ucrânia foi o tema central. As discussões ganharam nova importância depois que Donald Trump revelou estar em conversas com Vladimir Putin sobre um possível acordo de paz. A Ucrânia não participou dos diálogos. Pelo contrário, vem sendo pressionada pelo americano a aceitar as demandas russas.

“Donald Trump disse publicamente várias vezes que se importa com as pessoas que morreram nesta guerra e é por isso que ele iniciou essa negociação de paz e é por isso que ele quer parar esta guerra porque centenas de milhares de russos e ucranianos morreram e ele acha isso absurdo e a guerra tem que ser parada”, disse advogada. “Se o presidente Donald Trump se importa com as pessoas morrendo na guerra, isso também significa que ele tem que se importar com as pessoas morrendo em prisões russas. E isso é o que eu não ouvi em todas as conversas, seja em Munique ou geralmente na conversa pública.”

Ucraniana durante o funeral de seu filho que foi morto no campo de batalha, em um cemitério em Vinnitsia, em 10 de maio de 2024, em meio à invasão russa da Ucrânia Foto: Roman Pilipey/AFP

Sua organização coleta relatos e evidências de crimes de guerra durante este conflito em larga escala que começou há exatos três anos. Em geral, diz a ativista, essa apuração ocorre após o fim dos conflitos. No caso desta guerra, o Centro das Liberdades Civis, em conjunto com outras instituições, tem feito simultaneamente à guerra.

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“Nesses três anos de guerra, documentamos conjuntamente mais de 81 mil episódios de crimes de guerra. E 81 mil são apenas da nossa iniciativa civil. E já é uma quantidade enorme, mas ainda é apenas a ponta do iceberg, porque a Rússia usa crimes de guerra como métodos de guerra”, afirma.

Confira trechos da entrevista com Oleksandra Matviichuk:

Você esteve na Conferência de Segurança de Munique, como foram as discussões para um fim do conflito?

Eu acho que uma das coisas importantes que temos que fazer neste tempo turbulento é não perder o foco em algo que é realmente importante. E o que é realmente importante, apesar de todos os eventos que aconteceram na Conferência de Segurança de Munique, é a questão de como parar a guerra de agressão russa contra a Ucrânia e não dar aos russos a possibilidade de ir mais longe e atacar outro país. O que temos no momento atual? Temos o objetivo de Putin que não mudou após três anos de guerra. Putin iniciou esta guerra de agressão, não porque quer apenas capturar mais uma parte da terra ucraniana. Putin iniciou esta guerra de agressão porque quer ocupar e destruir o país inteiro e ir mais longe. Ele sonha com a restauração forçada do Império Russo. Ele pensa em seu legado. Sua lógica é histórica. E o problema é que mesmo após três anos de guerra em grande escala, ele não desiste de seu objetivo, apesar de todas as perdas humanas porque a vida humana é o recurso mais barato no Estado russo. Então, temos que levar isso a sério se quisermos alcançar uma paz sustentável em nossa região. Isso significa que o foco principal deve ser em como projetar garantias de segurança apropriadas como medidas coletivas de dissuasão e reação se a Rússia iniciar a guerra novamente no futuro. E isso também foi parte de diferentes conversas em Munique, apesar de todas as outras discussões.

Americanos a russos reunidos na Arábia Saudita para falar da Ucrânia Foto: Evelyn Hockstein/AP

Como você vê as recentes declarações de Donald Trump, de que a Ucrânia começou a guerra e chamando Volodmir Zelenski de ditador?

Vou aproveitar esta oportunidade para lembrar que esta guerra não começou em fevereiro de 2022, mas sim em fevereiro de 2014. Quando a Ucrânia teve nossa chance para uma rápida transição democrática, após o colapso do governo autoritário pró-Rússia, devido à Revolução da Dignidade. E, para nos impedir neste caminho democrático, Putin iniciou esta guerra de agressão. Ele ocupou a Crimeia, parte das regiões orientais, e há três anos estendeu esta guerra para uma invasão em larga escala. Por que eu lembro disso? Porque em 2014, quando a Rússia iniciou esta guerra, a Ucrânia era, de fato, neutra. A neutralidade estava escrita em nossa Constituição. Ninguém pensava em entrar na Otan. Mas tivemos zero chance para isso na na na estrutura constitucional anterior. Mas tivemos uma chance para reformas democráticas e essa foi a principal razão para Putin porque ele não teme a Otan. Ele teme a ideia de liberdade que se aproximou da fronteira russa. O que significa que, o que quer que façamos, Putin atacará porque o mundo livre sempre representa uma ameaça para os ditadores de que perderão seu poder.

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Citando os territórios ocupados pela Rússia, o secretário de defesa americano disse que é irrealista falar em recuperar essas regiões. Como é ouvir isso depois de três anos desse conflito em larga escala?

Donald Trump disse publicamente várias vezes que se importa com as pessoas que morreram nesta guerra e é por isso que ele iniciou essa negociação de paz e é por isso que ele quer parar esta guerra porque centenas de milhares de russos e ucranianos morreram e ele e ele acha isso absurdo e a guerra tem que ser parada. Se o presidente Donald Trump se importa com as pessoas morrendo na guerra, isso também significa que ele tem que se importar com as pessoas morrendo em prisões russas. E isso é o que eu não ouvi em todas as conversas, seja em Munique ou na conversa pública. Políticos falam sobre minerais naturais, sobre acordos de paz, sobre eleições, sobre concessões territoriais, mas não sobre pessoas. E isso é ridículo. Porque, antes de mais nada, temos que nos importar com as pessoas e temos muitas questões que nem sequer são discutidas. O que acontecerá com 20.000 crianças ucranianas que foram legalmente deportadas para a Rússia e separadas de suas famílias? Nos campos de educação russos disseram que elas não são ucranianas, são crianças russas, suas famílias as abandonaram, e elas serão adotadas por famílias russas que as criarão como russas. O que acontecerá com os milhares e milhares de civis detidos ilegalmente, homens e mulheres, assim como prisioneiros de guerra, que são submetidos a tortura diária e maus-tratos? Parte deles não terá chance de estar vivo até o final desta negociação de paz.

Eu sei do que estou falando porque entrevistei centenas de pessoas que sobreviveram ao cativeiro russo. Eles me contaram como foram espancados, estuprados, esmagados em caixas de madeira, seus dedos foram cortados, suas unhas foram arrancadas, suas unhas foram perfuradas, eles tomaram choques elétricos em seus genitais. Uma mulher me contou como seu olho foi retirado com uma colher. O que acontecerá com as pessoas nos territórios ocupados em geral? Porque eles vivem em uma zona cinzenta. Eles não têm ferramentas para defender seus direitos, sua liberdade, sua propriedade, suas vidas, seus filhos, seus entes queridos. Então, não é normal. Não está certo que políticos não discutam coisas humanas. Temos que devolver essa dimensão humana a toda essa conversa. É sempre fácil falar sobre interesses, sobre política. Vamos falar sobre pessoas.

Aproveitando que você citou os relatos que ouviu de ucranianos em prisões russas, como é feito o trabalho de registro do Centro das Liberdades Civis? Vocês documentam regiões sob ocupação, como Donetsk e até Luhansk, onde dizem que é impossível saber o que acontece lá

Ninguém tem acesso, falando francamente [a Luhansk]. Mas esta é a guerra mais documentada na história da humanidade. Porque primeiro começamos a documentação em tempo real. Na maioria das guerras, organizações de direitos humanos e investigadores internacionais investigam o que aconteceu quando a guerra termina. Estamos fazendo isso simultaneamente. E segundo, agora temos ferramentas digitais que nos fornecem muitas oportunidades para restaurar o que aconteceu, coletar evidências, comunicar com pessoas em territórios ocupados e identificar perpetradores, o que nem poderíamos sonhar há 30 anos atrás, durante a guerra dos Bálcãs.

Quando a guerra de grande escala começou, unimos nossos esforços com dezenas de organizações de diferentes regiões e construímos uma rede nacional de documentadores locais. Cobrimos todo o país, incluindo territórios ocupados, e para cada região é responsável uma equipe que é originalmente daquele território, daquela região. Isso significa que pessoas que conhecem todos e tudo nos territórios ocupados estão trabalhando nisso de um lugar seguro e isso significa que essas pessoas têm muitas conexões, ainda podem manter essas conexões e se comunicar, e também usamos diferentes fontes de informação. Analisamos dados abertos com verificação adicional. Entrevistamos pessoas que deixaram esses territórios. Coletamos testemunhos de vítimas e testemunhas. Com essa metodologia, nesses três anos de guerra, documentamos conjuntamente mais de 81 mil episódios de crimes de guerra. E 81 mil são apenas da nossa iniciativa civil. E já é uma quantidade enorme, mas ainda é apenas a ponta do iceberg, porque a Rússia usa crimes de guerra como métodos de guerra. A Rússia instrumentaliza a dor e deliberadamente inflige dor enorme a civis para quebrar sua resistência e ocupar o país.

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Integrantes do Centro de Liberdades Civis da Ucrânia, laureados com o Prêmio Nobel da Paz de 2022 Foto: Reprodução/Centro de Liberdades Civis

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No ano passado, nossos amigos e colegas, o Centro Russo de Direitos Humanos Memorial [que também foram laureados com o Nobel da Paz de 2022], publicaram relatório e analisaram a tática russa na Chechênia, na Síria e na Ucrânia. E chegaram a conclusões muito claras e previsíveis de que este é o mesmo manual de crimes de guerra, o mesmo playbook, cadeia de crimes e cadeia de impunidade. Então, com nosso trabalho, estamos tentando quebrar essa cadeia, não apenas para as pessoas na Ucrânia que sofreram com crimes de guerra russos, mas sabemos que com esse trabalho pela justiça, estamos prevenindo o próximo ataque russo à próxima nação. E, como eu disse, o número real é muito maior e este mundo literalmente transforma pessoas em números. Então, o que estamos fazendo é devolvendo às pessoas os seus nomes, porque as pessoas não são números e a vida de cada pessoa importa.

Vocês já perderam pessoas nesse trabalho de registro dos crimes de guerra?

Esta é uma a guerra e não há mais um lugar seguro onde você possa se esconder dos foguetes russos, mesmo que não esteja perto da linha de frente. Quando vamos dormir, não temos ideia se vamos acordar na manhã seguinte. Essa é uma boa oportunidade para mencionar minha amiga, a escritora ucraniana Viktoria Amelina, especialmente agora, porque há apenas alguns dias seu livro foi publicado. Seu livro completo, o qual ela escreveu durante esses anos com o título “Olhando pra uma mulher olhando para a guerra”. Minha amiga Viktoria Amelina era jovem e talentosa. Ela recebeu vários prêmios internacionais por sua escrita. Mas quando a guerra de larga escala começou, ela decidiu se juntar à nossa luta pela justiça, porque sentia essa responsabilidade de que tinha que fazer mais. Então, ela começou a documentar os crimes de guerra e regularmente viajava para diferentes partes da Ucrânia para trabalhar nas áreas ocupadas e pela justiça, e também para o seu livro. Quando ela estava no leste, em um café com escritores colombianos, eles se viram no centro de um ataque russo e minha amiga Viktoria morreu depois que um foguete russo atingiu este café. Então, escritores amigos decidiram terminar este livro e reuniram tudo o que puderam, como notas, algumas fotos que Viktoria tirou, alguns rascunhos, e trabalharam todos juntos nesse projeto. É muito visível, quando você lê este livro, que ele não está completo, porque alguns capítulos não estão terminados, por exemplo, sobre mim. Porque Viktoria também me descreveu em seu livro. Mas é um livro muito visível, muito essencial, que é como um diário de guerra e justiça, e este livro está sendo traduzido para diferentes idiomas e agora começa a aparecer em diferentes países.

Oleksandra Matviichuk segura o livro póstumo de sua amiga escritora Viktoria Amelina em uma livraria de Londres Foto: Reprodução/Facebook

Considerando um futuro sem a ajuda dos EUA daqui pra frente, a Ucrânia e Europa são capazes de seguir se defendendo da Rússia?

Eu acho que não temos outra escolha. Porque isso não é apenas uma guerra entre dois Estados. Esta é uma guerra entre dois sistemas. É entre autocracia e democracia. Porque Putin, com esta guerra, não apenas puniu os ucranianos por nossa escolha democrática que fizemos há 11 anos. Ele também quer convencer o mundo inteiro de que liberdade, democracia, direitos humanos são valores falsos porque eles não conseguiram proteger ninguém na guerra. Ele tenta convencer que um país com forte potencial militar e arma nuclear pode quebrar a ordem internacional, pode ditar suas regras para toda a comunidade internacional e até mesmo mudar à força as fronteiras internacionalmente reconhecidas. E se Putin tiver sucesso, isso incentivará outros líderes autoritários em diferentes partes do globo a fazer o mesmo. E não é surpresa que o regime de Putin seja apoiado por outros regimes autoritários, como Irã, como Coreia do Norte, como China. Estamos lidando com a formação de um bloco autoritário inteiro. Se países autoritários que estão longe uns dos outros se apoiam, significa que as pessoas que acreditam em liberdade e dignidade humana têm que se apoiar ainda mais fortemente.

Como vê o futuro da Ucrânia?

Eu olho para o futuro com otimismo, o que significa que eu sei que Putin quer nos retornar ao passado, mas ele falhará porque o futuro virá, é inevitável. Mas eu não vejo que nosso futuro próximo será fácil, será muito, muito difícil. E eu também não sei como minha história pessoal vai acabar porque a guerra é uma loteria e, bem, não há garantia em nossa vida. Em geral, nunca teremos uma garantia, mas o que temos é esse entendimento de que o futuro não é apenas incerto, o futuro também não é pré-escrito. Ainda temos a chance de lutar pelo futuro, que queremos para nós e para nossos filhos, porque esperança, não é a confiança de que tudo ficará bem, mas é uma compreensão profunda de que todos os outros esforços têm um enorme significado.

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