José “Pepe” Mujica, ao contrário da maioria de nós, não parece ter medo da morte. Nesta quinta-feira, 9, o ex-presidente do Uruguai, disse em entrevista ao jornal Búsqueda que foi desenganado pelos médicos na luta contra o câncer que enfrenta desde o ano passado.
“Estou morrendo”, disse o ex-guerrilheiro tupamaro, de 89 anos, com a simplicidade que lhe caracteriza há décadas.
Mujica explicou na entrevista que o câncer de esôfago que trata desde abril do ano passado se espalhou para o fígado. Em razão da idade avançada e de doenças crônicas, o ex-presidente não pode recorrer a tratamentos mais invasivos.
Perto da despedida
A franqueza e a resignação com que Mujica trata a doença comoveu todo o Uruguai. Ele já discursa em tom de despedida desde o ano passado. Durante as eleições presidenciais, o ex-presidente apareceu de surpresa em um comício político do então candidato presidencial Yamandú Orsi e se disse emocionado por não poder participar da campanha eleitoral por estar “lutando contra a morte”.
“Sou um ancião que está muito perto de empreender a retirada da qual não se volta”, disse Mujica, emocionando muitos até às lágrimas. “Mas estou feliz porque vocês estão aqui, porque quando meus braços se forem, haverá milhares de braços substituindo a luta. E durante toda a minha vida eu disse que os melhores dirigentes são aqueles que deixam um grupo que os supera com vantagem”, acrescentou, mencionando Orsi.
A luta contra o fim deve ser a última de Mujica, mas não a única. Nascido numa família de imigrantes bascos e italianos em 1935, o ícone da esquerda uruguaia se tornou um dos símbolos do século 20 na América Latina.
Origem guerrilheira
Militante político desde a juventude, se radicalizou nos anos 60, quando aderiu à guerrilha tupamaro. Foi baleado seis vezes durante confronto da guerrilha com a polícia e o Exército, mas sobreviveu. Ficou preso por 15 anos, 12 deles completamente isolado numa solitária.
Este período da vida de Mujica é belamente retratado no filme Uma Noite de 12 anos, que narra por meio da prisão da cúpula dos tupamaro os horrores da ditadura uruguaia.
Com a redemocratização, Mujica e seu grupo entraram para a Frente Ampla, coalizão que reuniu diversas tendências de esquerda nos anos 80. Durante os anos 90, quando os partidos Nacional e Colorado se alternaram no comando do país, foi deputado e senador.
No começo dos anos 2000, numa tendência que se repetiu por toda a América do Sul, a esquerda chegou ao poder no Uruguai pela primeira vez, com Tabaré Vasquez. Mujica serviu como ministro da Agricultura e, ainda no mandato de Vasquez, começou a preparar sua candidatura para sucedê-lo.
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Chegada ao poder
Sua vitória em 2010 simbolizou a conversão dos adeptos da luta armada à democracia. Uma vez no poder, empreendeu uma série de reformas no país, das quais ficaram mais conhecidas a legalização da maconha, do aborto e do casamento entre pessoas do mesmo sexo.
Além das mudanças comportamentais patrocinadas por Mujica, sua retórica chamou atenção por onde passou. Defensor e adepto de uma vida simples e sem luxos, alertou para os males do consumismo e para os riscos que o capitalismo impõe para o futuro do planeta.
Um alerta para o futuro
Um de seus discursos mais conhecidos foi feito na Assembleia-Geral da ONU em 2013, com trechos como os a seguir:
“Me angustia, e como, o amanhã que não verei, e pelo qual me comprometo. Sim, é possível um mundo com uma humanidade melhor, mas talvez, hoje, a primeira tarefa seja cuidar da vida.
Mas sou do sul e venho do sul, a esta Assembleia, carrego inequivocamente os milhões de compatriotas pobres, nas cidades, nos desertos, nas selvas, nos pampas, nas depressões da América Latina pátria de todos que está se formando.
Parece que nascemos apenas para consumir e consumir e, quando não podemos, nos enchemos de frustração, pobreza e até autoexclusão.
O certo, hoje, é que, para gastar e enterrar os detritos nisso que se chama pela ciência de poeira de carbono, se aspirarmos nesta humanidade a consumir como um americano médio, seriam imprescindíveis três planetas para poder viver.
Nossa civilização montou um desafio mentiroso e, assim como vamos, não é possível satisfazer esse sentido de esbanjamento que se deu à vida. Isso se massifica como uma cultura de nossa época, sempre dirigida pela acumulação e pelo mercado.
Prometemos uma vida de esbanjamento, e, no fundo, constitui uma conta regressiva contra a natureza, contra a humanidade no futuro. Civilização contra a simplicidade, contra a sobriedade, contra todos os ciclos naturais.
O pior: civilização contra a liberdade que supõe ter tempo para viver as relações humanas, as únicas que transcendem: o amor, a amizade, aventura, solidariedade, família.”