VIITNA, ESTÔNIA – Eles deixaram a França no início da madrugada, voaram em direção nordeste sobre cidades adormecidas até se situar a menos de 160 quilômetros da fronteira russa. E então saltaram.
Os paraquedistas franceses que flutuaram até os campos da Estônia em maio eram parte de um ensaio intensificado da movimentação que seria necessária para reforçar um batalhão se a nação – e, consequentemente, a Otan – fosse atacada.
Antes da Rússia lançar sua invasão à Ucrânia, no ano passado, as tropas de múltiplas nacionalidades estacionadas nos países bálticos e na Polônia tinham a função de “disparador” – uma presença grande o suficiente para sinalizar que qualquer agressão será respondida coletivamente e capaz apenas de diminuir o ritmo de avanço de forças inimigas até que cheguem reforços.
Agora, como parte de um movimento que a Otan classifica como sua “maior reforma” desde a Guerra Fria, a aliança afirma que pretende defender “cada centímetro” de seu território desde o início, enviando uma mensagem para Moscou ao mesmo tempo que tranquiliza países que temiam ser abandonados sob uma eventual ocupação russa. “Como isso funciona? Mandando um sinal claro para a Rússia de que nós estamos bem preparados para enfrentá-la. Nem pense nisso”, disse a primeira-ministra da Estônia, Kaja Kallas, em entrevista ao Washington Post.
Pelo menos essa é a ideia. Pouco mais de um ano após o início das hostilidades, uma Otan energizada e expandida mantém mais soldados em países aliados próximos à Rússia. A aliança está treinando tropas de prontidão para mobilização nos Estados fronteiriços mais rapidamente. E começa a pré-posicionar armas pesadas e equipamentos que não cabem nas mochilas dos paraquedistas.
Mas a Otan não se comprometeu no nível de mobilização permanente de tropas terrestres que algumas nações pretenderam. E entrevistas com mais de uma dúzia de autoridades e ex-autoridades graduadas e analistas sugerem que a reforma ainda tem um longo caminho a percorrer antes de a aliança ser capaz de repelir a Rússia sem perder nenhum centímetro de território.
“Ser mais rápido que os russos para alcançar alguma posição crítica é a única métrica que importa para uma dissuasão eficaz, e nós ainda somos capazes disso”, afirmou o tenente-general do Exército aposentado Ben Hodges, ex-comandante das tropas americanas na Europa.
“A mobilidade militar ainda é um problema”, afirmou ele. “É melhor do que cinco anos atrás, mas não é essa a métrica que importa.”
Se precisassem repelir um ataque russo, os comandantes militares americanos temem a possibilidade de não chegarem a tempo.
Ordem de segurança da Europa
Reforços no flanco oriental
Desde a invasão russa em escala total à Ucrânia, a Otan reforçou seu flanco oriental em parte estabelecendo grupamentos de batalha em outros quatro países: Bulgária, Hungria, Romênia e Eslováquia. Há neste momento 10 mil soldados divididos em oito grupamentos de batalha; em comparação, 5 mil soldados se dividiam por quatro grupamentos em 2021, segundo a porta-voz da Otan, Oana Lungescu.
Lungescu afirmou que os aliados mandaram outras dezenas de navios e centenas de aviões para o flanco oriental da aliança – o que é especialmente importante para os países bálticos, que não possuem caças de combate.
Os aliados acionaram adicionalmente uma quantidade “sem precedentes” de defesas antiaéreas com base terrestre, como mísseis Patriot e navios com capacidade de defesa antiaérea, acrescentou ela.
Outros aspectos da postura fortalecida ainda estão em discussão.
O secretário-geral, Jens Stoltenberg, afirmou anteriormente à cúpula da Otan no ano passado que a aliança “reforçaria” seus grupamentos de batalha no flanco oriental do nível de batalhão ao nível de brigada – o que significa, geralmente, segundo afirmou Lungescu, ir de aproximadamente 1 mil soldados para 3 mil ou mais. Mas a declaração na cúpula foi qualificada, afirmando que o reforço ocorreria “onde e quando requerido”, o que deixou aliados se perguntando o que “requerido” significa na prática.
Ainda que as preocupações recentes a respeito de provocar Moscou com uma presença grande demais tenham arrefecido, alguns aliados afirmam que o gasto implicado por um contingente maior não compensa, e poderia limitar a flexibilidade da Otan.
A Alemanha, por exemplo, que comanda o grupamento de batalha na Lituânia, se opôs a pedidos por uma brigada permanente por lá, afirmando que faz mais sentido manter tropas alemãs em alerta nas bases. As Forças Armadas alemãs enviaram outros 20 soldados para a Lituânia como “elemento de comando avançado” de uma brigada adicional. Aproximadamente mais 6 mil poderiam ser acionados “se necessário”, afirmou um porta-voz, “o mais rapidamente possível”.
Autoridades lituanas rebatem afirmando que, em razão da geografia de seu país, a Rússia seria capaz de cercá-lo rapidamente, com pouco tempo para a chegada de reforços.
Plano de reforços rápidos em formulação
Stoltenberg alcançou as manchetes em junho do ano passado com o anúncio de que a aliança estava colocando 300 mil soldados em prontidão elevada – contra 40 mil anteriormente. Sob este novo modelo de força, afirmou a Otan, soldados seriam pré-acionados para países específicos, com 100 mil homens acionáveis em dez dias e outros 200 mil em 30 dias.
O anúncio pareceu pegar de surpresa algumas autoridades de defesa europeias, e as fez imaginar se seus soldados entravam nessa conta e de que maneira. As autoridades da Otan fizeram ressalvas quase imediatamente. O número geral almejado ainda era conceitual, afirmaram elas, e compromissos nacionais precisavam ser negociados. “O trem partiu da estação antes da ferrovia ser construída”, afirmou recentemente ao Post Tomas Jermalavicius, diretor de estudos e pesquisador do Centro Internacional para Defesa e Segurança, com sede da Estônia.
A discussão a respeito da proposta de nova estrutura da força – incluindo que soldados seriam pré-acionados para defender que países e qual nível de prontidão eles precisariam manter – está na agenda da cúpula de líderes da Otan em Vilna, a capital lituana, no próximo mês.
Autoridades que coordenaram os exercícios recentes na Estônia afirmaram que treinos conjuntos são importantes, mas maior prontidão depende de conhecer quais soldados realmente seriam acionados para a defesa durante uma crise.
“Precisamos conhecer exatamente (…) essas unidades que virão, para sermos interoperáveis, para treinar com elas (…) como recebê-las, como movimentá-las, como acioná-las”, afirmou o general Martin Herem, comandante das Forças Armadas da Estônia. “Isso torna tudo muito mais ágil. Se você não faz isso direito, a coisa leva tempo. Não dias, mas semanas.”
Oficiais militares estonianos afirmam que gostariam de receber mais detalhes a respeito do que dispararia esses acionamentos. “Precisamos de reforços não quando a agressão russa começar, mas a partir do momento que percebermos sinais iniciais e alertas”, afirmou Herem.
As autoridades estonianas também buscam garantias específicas de que o grupo de batalha multinacional estacionado por aqui fique onde está.
“Neste momento, nós temos acordos bilaterais com esses países e queremos que conste dos planos da Otan que se algum país decidir retirar suas tropas daqui haja outro que o substitua”, afirmou Kallas.
O primeiro-ministro está pressionando outros governos a seguir o exemplo da Estônia em aumentar o gasto militar para o equivalente a 3% de seus PIBs no próximo ano. Muitos aliados, porém, não alcançam nem o padrão estipulado pela Otan, de 2% do PIB. Alguns países, afirmou Kallas, têm esperança “de que este problema desapareça e não tenham de investir de verdade em defesa”.
E Estônia e outros países na Europa Central e do Leste consideram a ameaça da Rússia real e existencial.
“Eu acho que a Rússia está em uma trajetória de conflito ou guerra com a Otan”, afirmou o general Karel Rehka, chefe do Estado-Maior da República Checa, durante entrevista em Tallinn, a capital da Estônia. “Isso não significa que estejam planejando isso. A Otan não quer entrar em guerra com a Rússia tanto quanto a Rússia não quer entrar em guerra com a Otan, mas isso não significa que o conflito não possa ocorrer. Houve muitas guerras que nenhuma das partes planejava travar.”
Precisamos de reforços não quando a agressão russa começar, mas a partir do momento que percebermos sinais iniciais e alertas
Martim Herem, comandante das Forças Armadas da Estônia
Rehka disse que ficou incomodado com o aumento do sentimento nacionalista na Rússia e o anúncio dos planos do presidente Vladimir Putin de expandir suas Forças Armadas. “Independentemente da maneira que a guerra terminar” na Ucrânia, afirmou Rehka, “a Rússia ficará mais hostil e imprevisível em relação a nós”.
Estar pronto para se defender contra um inimigo como a Rússia exige poderio militar convencional, afirmou Herem: “bombas, não ciberataques”.
Analistas afirmaram que para prover dissuasão e defesas críveis a Europa precisará investir em logística militar. Hodges, o ex-comandante das forças americanas na Europa, afirmou que simplesmente não existem vagões de trem suficientes capazes de carregar veículos blindados, nem pontes e túneis largos o suficiente para os equipamentos das guerra moderna.
E também há o trabalho diplomático a ser feito. Hodges percebe uma necessidade de fazer algo como um “espaço Schengen militar” — como a zona comercial sem fronteiras da Europa — que permitiria a comboios militares “atravessar fronteiras com a mesma facilidade que caminhões carregados de maçãs”.
Construir confiança também é essencial, afirmou Camille Grand, francês que até o ano passado atuou como secretário-geral-assistente da Otan para investimento em defesa, e atualmente é pesquisador distinguido em políticas do Conselho Europeu de Relações Internacionais.
O desacordo entre Alemanha e Lituânia em relação aos níveis de tropas “tem a ver com confiança política e militar”, afirmou Grand. Os lituanos se preocupam que os reforços alemães possam ser adiados por trâmites políticos ou que lhe faltem capacidades relevantes, afirmou ele. “É por isso que os lituanos estão pressionando tanto e perguntando, ‘Eles cumprirão sua palavra?’.”
Lungescu, a porta-voz da Otan, afirmou que soldados alemães treinarão o reforço do grupamento de batalha da Lituânia para o nível de brigada. Os esforços da aliança “alcançam o equilíbrio correto entre uma presença militar avançada maior e a capacidade de enviar reforços rapidamente”, afirmou ela. “Não deve haver equívoco em relação à vontade da Otan e sua capacidade de proteger todos os aliados.”
Autoridades da Estônia dizem estar confiantes de que a Otan socorreria seu país e que a aliança, em última instância, prevaleceria em qualquer conflito com a Rússia.
“Estou bastante certo de que, se a Rússia agir, a Otan vencerá”, afirmou Herem. “Contudo, considerando o mapa, quanto território da Estônia teremos de ceder, e por quanto tempo?”
Ele continuou: “Haverá livros a respeito de como a pequena e heróica Ucrânia se defendeu da Rússia e foi bem-sucedida. Se nos aprofundarmos e virmos o que eles perderam, parece uma tragédia. Para evitar isso, nós temos de estar em muito mais prontidão do que hoje”. / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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