Em 1984, Geraldine Ferraro fez história ao se tornar a primeira candidata a vice-presidente de um grande partido - o Democrata - dos Estados Unidos. Na época, uma entrevista repercutiu quando o jornalista Marvin Kalb perguntou se ela teria a coragem necessária para “apertar o botar nuclear” se fosse preciso. Ela então respondeu que tinha dúvidas se ouviria este tipo de questionamento se fosse um homem.
Geraldine não se tornou a primeira mulher vice-presidente dos Estados Unidos. Quarenta anos depois, este posto é de Kamala Harris, eleita vice em 2020. Este ano ela tentou subir mais um degrau, o da presidência. Mas foi derrotada por Donald Trump. Com isso, os EUA continuaram de fora do clube das nações que já tiveram uma presidente ou primeira-ministra mulher.
Esta foi a segunda vez que Donald Trump derrotou uma mulher que buscava a Casa Branca. Hillary Clinton abriu o precedente em 2016 contra o mesmo Trump. A diferença é que desta vez as eleições tinham uma clara clivagem de gênero, tornando o tema uma narrativa - e um eleitorado - em disputa.
Após a queda do precedente ao aborto, levado à cabo graças a uma Suprema Corte mais conservadora de Trump, as mulheres rejeitaram com mais força o republicano. Por outro lado, o ex-presidente transformou a sua campanha em um espaço para homens jovens manifestarem suas frustrações com o avanço do progressismo. Com isso, cerca de 53% das mulheres votaram em Harris e 55% dos homens optaram por Trump.
As razões para a derrota de Kamala não necessariamente passam pelo seu gênero. Análises apontam diferentes motivos, como distanciamento dos trabalhadores, tempo curto de campanha e até um cansaço dos americanos com a elite política.
Mas cientistas políticas que estudam a questão de gênero se perguntam o quanto o tema pode influenciar o voto. Se uma candidata por ser vista como fraca ou “não forte o suficiente” para a maior potência do mundo, especialmente uma potência militar e nuclear.
“Os EUA são a maior potência militar do mundo. Harris precisaria ser uma nova espécie de guerreira se ganhasse”, argumenta Katie Pickles, pesquisadora e professora de História na Universidade de Canterbury, na Nova Zelândia.
“Outras potências globais, como Rússia e China, ainda não elegeram uma líder mulher. Para liderar essas nações, você precisa estar à frente do Exército, e isso pode ser visto como um trabalho de macho-alfa que não combina com mulheres. É o ‘trabalho mais masculino’ do mundo”, completa.
Dos 193 países do mundo, 80 já tiveram mulheres em seu cargo máximo (como presidente ou primeira-ministra) e apenas quatro foram em países nucleares (Reino Unido, Israel, Paquistão e Índia). Nenhum considerado potência de fato, como EUA, China e Rússia. A maioria dessas lideranças femininas está no sudeste e sul asiático, América Latina e nos países nórdicos da Europa.
Este número de 80 pode variar a depender dos critérios considerados. Há quem inclua países onde mulheres governaram por poucos dias (Ivy Matsepe-Casaburri foi presidente da África do Sul por catorze horas apenas em 2008) ou por circunstâncias atípicas (como em El Salvador, onde Claudia Rodríguez de Guevara substitutiu Nayib Bukele por seis meses para que ele pudesse concorrer à presidência novamente, em uma manobra considerada inconstitucional).
“Existem esses estereótipos de gênero que ainda persistem, onde acredita-se que uma mulher precisa provar que é forte, especialmente se ela for a Comandante-Chefe dos Estados Unidos, que politicamente falando é um dos país mais importantes do mundo”, concorda Farida Jalalzai, professora no Departamento de Ciência Política da Universidade Tech Virginia.
Há um argumento de que outros líderes com quem precisamos negociar podem ter problemas para lidar com ela por ser mulher. Parte disso se deve ao momento em que estamos passando sobre quem vai ser o líder mais forte no palco mundial militarmente. E essas coisas estão carregadas de estereótipos de gênero. Uma mulher tem que se esforçar mais para mostrar essa força, mas ao mesmo tempo, ela vai receber muitas críticas se ela for muito belicista.
Farida Jalalzai, professora no Departamento de Ciência Política da Universidade Tech Virginia
Durante a campanha, Kamala pisou em ovos para não tornar a sua identidade o ponto focal dessas eleições. Por raras vezes ela levantou a bandeira de ser mulher, negra e filha de imigrantes. Uma pauta que poderia atrair eleitores progressistas, mas afastar conservadores que não necessariamente se alinham a Trump e estão preocupados com outros temas, como a inflação.
Mesmo assim, a então candidata ouviu, de forma irônica, que era a preferida de Vladimir Putin para ganhar as eleições por seu “sorriso contagiante”. Para completar, ela concorria contra um candidato que, na época que era presidente, afirmou que seu “botão era maior que de Kim Jong-un”.
Mulheres líderes pelo mundo
Ao observarmos o mapa de países que já tiveram suas primeiras mulheres presidentes, veremos grandes manchas descoloridas.
A África e o norte da Ásia seriam as maiores (no continente asiático muito por culpa da Rússia e da China). A Europa teria uma clara divisão entre seu leste, com muito mais cor, que seu oeste, onde Reino Unido, Portugal, Irlanda, Luxemburgo, Alemanha e Itália são as exceções.
As Américas seriam bastante coloridas, com algumas exceções sendo, justamente, os EUA, Venezuela, Uruguai, Paraguai, Colômbia, Guatemala, El Salvador, Haiti, Cuba, Porto Rico, Guiana Francesa, Suriname e Belize.
Na Ásia muitas dessas mulheres líderes chegaram ao poder graças às suas heranças familiares. Já os países nórdicos possuem uma tradição progressista. Nos demais países, observa Katie Pickles, as lideranças femininas aconteceram por causa de mudanças drásticas no país, sejam elas fim da colonização, crise econômica, movimentos de revolução, entre outros. A própria escolha de uma mulher líder seria para refletir esse “sentimento de mudança”.
“Isso se aplica à América do Sul, com Dilma Rousseff, Michelle Bachelet, Jeanine Añez e Lidia Gueiler (ambas Bolívia), Dina Boluarte (Peru, que teve muitas presidentes mulheres de mandatos muito curtos) e Rosalía Arteaga (Equador)”, pontua. Muitas delas, porém, não permaneceram muito tempo no cargo - Rosalía Arteaga governou por cinco dias - indicando uma dificuldade de governabilidade.
“As instituições nos EUA são difíceis de superar para qualquer um e não temos dois cargos de liderança, com presidente e premiê juntos, como muitos outros países. Isso diminui as opções de canais para mulheres ascenderem ao cargo máximo” observa Farida Jalalza, autora dos livros “Women and the Executive Glass Ceiling Worldwide” (Mulheres e o teto de vidro Executivo no mundo todo, sem tradução no Brasil) e “Women Presidents of Latin America: Beyond Family Ties” (Mulheres Presidentes da América Latina: além dos laços familiares?, também sem tradução).
“Mas tem crescido. Se compararmos o momento em que Hillary Clinton concorreu com o cenário de hoje com Kamala vemos que há mais mulheres em posições que impulsionam à presidência, como Congresso, governos de Estado e gabinete de governo. Estamos melhor, mas historicamente outros países tem se saindo muito melhor que nós”.
Atualmente, 25% do Senado americano é composto por mulheres, assim como 29% do Congresso. Esses números são anteriores às eleições da última terça-feira, já que as cadeiras ainda estão sendo designadas. Além disso, 24% dos governos estaduais além de 33% do gabinete do país são compostos por mulheres. Segundo dados do V-Dem de 2024, os EUA têm menos mulheres no Parlamento que países como México, Costa Rica, Argentina, Equador, África do Sul, Etiópia, entre outros.
“Muitos de nós estamos esperando, nos EUA, pela eleição da primeira presidente mulher”, diz Jalalzai. “Mesmo que aconteça, isso não significa que suficiente parte do país apoia totalmente o papel igualitário das mulheres.”
Herdeiras, conservadoras ou reformistas
A primeira mulher líder de uma nação foi em 1960, quando Sirimavo Bandaranaike se tornou primeira-ministra do Sri Lanka (na época chamado Ceilão) após o assassinato do seu marido. Depois dela, nomes de destaque apareceram, entre eles: Indira Gandhi, Margaret Thatcher, Golda Meir, Isabelita Perón, Dilma Rousseff, Sanna Marin e a lista segue, com a última sendo Claudia Sheinbaum no México.
O que está oculto nesses nomes são os padrões que levaram essas mulheres a esses cargos. Nem todas chegaram por meio de voto direto. Katie Pickles, em seus estudos sobre lideranças femininas, separou em três esses padrões.
O primeiro são mulheres que ascenderam ao poder graças à linhagem familiar, em que seus pais ou maridos morreram e elas assumiram a cadeira. Neste grupo estão Sirimavo, Indira Gandhi na Índia, Benazir Bhutto no Paquistão, Park Geun-hye na Coreia do Sul, Violeta Chamorro na Nicarágua, entre outras.
No segundo grupo estão o que Pickles classificou como “homens honorários” conservadores. Mulheres que se adaptaram a um formato masculino de governar para serem vistas como fortes e que não promovem mudanças nos padrões de gênero. O caso mais emblemático é o de Margaret Thatcher, que ganhou a alcunha de “dama de ferro”. Mas também houve Golda Meir em Israel, Kim Campbell no Canadá, Jenny Shipley na Nova Zelândia e Theresa May e Liz Truss, ambas no Reino Unido.
O último grupo é o de mulheres “reformistas”. Em geral jovens, progressistas, de alta escolaridade, muitas delas sem filhos, que propõem desafiar os padrões de gênero. Neste grupo está Angela Merkel da Alemanha, mas também Michelle Bachelet do Chile, Jacinda Ardern da Nova Zelândia e Sanan Marin da Finlândia. Este grupo, pontua a pesquisadora, é o que encontra maior dificuldade em ascender ao poder e governar.
Vale ressaltar que uma mulher pode pertencer a mais de um grupo. Um exemplo seria Cristina Kirchner na Argentina, que transita tanto entre o primeiro quanto no terceiro grupo já que o respaldo de seu marido, Néstor Kirchner, foi fundamental para chegar ao poder. Se tivesse sido eleita, Hillary Clinton também transitaria em mais de um. Dilma e Claudia Sheinbaum também podem ter seus grupos ambíguos, já que foram eleitas com respaldo de seus padrinhos Luiz Inácio Lula da Silva e Andrés Manuel Lopez Obrador.
Sem uma linhagem familiar dentro da política americana e se distanciando do conservadorismo, Kamala Harris pertenceria ao terceiro grupo, se fosse eleita. O que, nos EUA, um país historicamente progressista que se apoia na bandeira das oportunidades individuais, deveria ser uma boa notícia.
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