EUA, China e uma crise de confiança entre as superpotências; leia a coluna de Thomas Friedman

A verdade é que os dois países têm demonizado um ao outro a tal grau recentemente que é fácil esquecer o quanto temos em comum enquanto povos

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Por Thomas L. Friedman

Esta é a primeira parte do artigo de Thomas L. Friedman EUA, China e uma crise de confiança entre as superpotências. O texto foi dividido em capítulos para facilitar sua leitura

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TAIPÉ, Taiwan — Acabo de retornar de uma visita à China, a primeira desde o início da pandemia de covid-19. Voltar a Pequim serviu como lembrete da minha regra número um do jornalismo: quem não vai não fica sabendo. As relações entre China e Estados Unidos azedaram tanto, tão rapidamente, e nossos pontos de contato foram tão reduzidos — restam pouquíssimos repórteres americanos na China, e as lideranças dos dois países mal se falam — que agora somos como dois gorilas gigantes olhando um para o outro por um buraquinho na parede. Nada de positivo pode vir disso.

A visita recente da presidente de Taiwan, Tsai Ing-wen, aos EUA — que levou Pequim a realizar manobras com munição real perto do litoral de Taiwan e a alertar novamente que a paz e a estabilidade no Estreito de Taiwan são incompatíveis com qualquer tentativa de Taiwan no sentido de alcançar a independência formal — foi somente o mais recente lembrete do quanto essa atmosfera está superaquecida. O menor erro de cálculo de algum dos lados pode dar início a uma guerra entre EUA e China que faria a Ucrânia parecer uma briga de rua.

Esse é um dos motivos pelos quais achei útil voltar a Pequim e poder observar a China novamente por uma abertura maior do que um buraquinho. Participando do Fórum de Desenvolvimento da China — uma reunião muito útil promovida por Pequim aproximando lideranças empresariais locais e globais, autoridades do alto escalão do governo chinês, diplomatas aposentados e alguns jornalistas locais e ocidentais — fui lembrado de certas verdades antigas e poderosas, e fui exposto a algumas realidades novas e surpreendentes em relação ao que realmente está erodindo as relações entre EUA e China.

O presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, se encontra com o presidente da China, Xi Jinping  Foto: Saul Loeb/ AFP

Dica: a grande novidade tem muito a ver com o papel cada vez mais importante que a confiança, e a sua falta, desempenham nas relações internacionais, agora que tantos bens e serviços que os EUA e a China vendem um ao outro são digitais e, portanto, têm utilidade dupla — o que significa que podem ser ferramentas e armas ao mesmo tempo. Justamente no momento em que a confiança se tornou mais importante do que nunca entre EUA e China, ela também se tornou mais escassa do que nunca. Péssima tendência.

De um ponto de vista mais pessoal, voltar a Pequim também foi um lembrete de quantas pessoas eu passei a conhecer e de quem aprendi a gostar ao longo de três décadas de viagens e reportagens — mas, por favor, não conte a ninguém em Washington que eu disse isso. Parece haver hoje uma disputa entre democratas e republicanos para saber quem consegue ser mais crítico em relação à China. A verdade é que os dois países têm demonizado um ao outro a tal grau recentemente que é fácil esquecer o quanto temos em comum enquanto povos. Não consigo pensar em nenhum outro grande país além dos EUA que apresente uma disciplina de trabalho protestante e uma população tão naturalmente capitalista quanto a China.

Um salto de modernidade e vigilância

Voltar ao país foi também um lembrete dos formidáveis peso e força do que a China construiu desde a sua abertura para o mundo nos anos 1970, e desde a chegada da covid em 2019. O governo do Partido Comunista da China exerce um controle mais poderoso do que nunca sobre a sociedade, graças à sua vigilância de estado policial e aos sistemas digitais de rastreamento: as câmeras de reconhecimento facial estão por toda parte. O partido esmaga qualquer desafio à sua autoridade ou à do presidente Xi Jinping. Atualmente, um colunista em visita tem muita dificuldade em conseguir que alguém se identifique como fonte — seja um funcionário do alto escalão do governo ou de um café da esquina. As coisas não eram assim dez anos atrás.

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Dito isso, que ninguém se iluda: o controle do Partido Comunista também é produto de todo o trabalho duro e toda a poupança do povo chinês, que possibilitaram ao partido e ao estado a construção de uma infraestrutura de nível mundial e bens públicos que tornam a vida progressivamente melhor para as classes média e baixa da China.

Pequim e Xangai, em particular, se tornaram cidades habitáveis, com a maior parte da poluição do ar apagada e muitos espaços verdes novos para caminhar. Como informou meu colega do Times, Keith Bradsher, em 2021, Xangai construiu recentemente 55 novos parques, chegando a um total de 406, e há planos para a construção de quase 600 mais.

Bradsher, um dos poucos repórteres americanos que viveram na China continental durante quase três anos de uma rigorosa política de “Covid zero”, também destacou para mim que há aproximadamente 900 cidades na China que são atendidas por trens de alta velocidade, o que torna a viagem até comunidades remotas incrivelmente barata, fácil e confortável. Nos 23 anos mais recentes, os EUA construíram exatamente uma linha de trem de velocidade mais ou menos alta, a Acela, que cumpre 15 paradas entre Washington, D.C., e Boston. Pense nisso: 900 a 15.

Com isso, não estou dizendo que trens de alta velocidade são melhores do que a liberdade. Estou dizendo que estar em Pequim nos lembra que a estabilidade da China é produto de um estado policial cada vez mais onipresente e de um governo que melhorou constantemente o padrão de vida da população. É um regime que leva a sério tanto o controle absoluto quanto a construção nacional implacável.

Para um americano, viajar de avião do aeroporto Kennedy, em Nova York, e chegar ao aeroporto internacional da capital, em Pequim, é como sair de um terminal de rodoviária superlotado e chegar em uma Disney do futuro. Tenho vontade de chorar quando penso em como desperdiçamos os oito anos mais recentes falando a respeito de um charlatão da construção nacional chamado Donald Trump.

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Os chineses e o ChatGPT

Em meu primeiro dia em Pequim, conversei com uma universitária chinesa. A primeira pergunta dela, fazendo referência a um livro que escrevi, foi: “Sr. Friedman, o mundo ainda é plano?”

Expliquei por que eu achava que se tornou mais plano do que nunca, de acordo com a minha definição — por causa dos constantes avanços na conectividade e na digitalização, mais pessoas podem concorrer, se conectar e colaborar em mais aspectos, por um custo mais baixo e a partir de mais lugares do que nunca antes. Durante o tempo que passei em Pequim, chamou minha atenção o quanto os chineses de escolaridade alta parecem mais conectados e capazes de evitar os bloqueios digitais.

Percebi que a mulher não se convenceu totalmente com a minha explicação, então falamos de outros temas. E então ela afirmou o seguinte: “Acabo de usar o ChatGPT”.

ChatGPT, um assistente virtual inteligente no formato chatbot online, foi desenvolvido pela OpenAI Foto: Michael Dwyer / AP

Eu disse, “Você usou o ChatGPT a partir de Pequim, e está me perguntando se o mundo ainda é plano?”

De fato, um dos assuntos comentados no momento em Pequim era o fato de muitos chineses terem começado a usar o ChatGPT para fazer a lição de casa para a célula local do Partido Comunista, para não terem que perder seu tempo com ela.

Mas é engraçado — bem no momento em que começamos a nos preocupar com o estado do aeroporto JFK, e com todas as histórias nos anos mais recentes dizendo que a China deixaria todos para trás na corrida pela IA, uma equipe americana, OpenAI, apresenta a melhor ferramenta de processamento de linguagem natural do mundo, permitindo que qualquer usuário tenha conversas como se interagisse com um humano, fazendo qualquer pergunta e obter respostas aprofundadas em todos os principais idiomas, incluindo o mandarim.

A China teve um progresso inicial acelerado em dois domínios da IA: tecnologia de reconhecimento facial e registros de saúde, pois praticamente não há restrições de privacidade à capacidade do governo de criar imensos conjuntos de dados para que algoritmos de aprendizado de máquina encontrem padrões neles.

Mas a IA generativa, como o ChatGPT, confere a qualquer pessoa, seja um agricultor pobre ou um professor universitário, o poder de fazer qualquer pergunta a respeito de qualquer assunto no próprio idioma do usuário. Isso pode representar um problema real para a China, pois seria necessário desenvolver muitas proteções nos seus próprios sistemas de IA generativa para limitar aquilo que os cidadãos chineses podem perguntar e o que o computador pode responder. Se não for possível perguntar qualquer coisa, como o que aconteceu na Praça da Paz Celestial no dia 4 de junho de 1989, e se o seu sistema de IA precisa decidir constantemente o que censurar, onde censurar e a quem censurar, sua produtividade será menor.

“O ChatGPT está levando alguns a indagar se os EUA estariam em ascensão novamente, como nos anos 1990″, disse o cientista político chinês Dingding Chen.

Adivinhando uma disputa entre potências

É por todas essas razões que pesar as mudanças no equilíbrio de poder entre EUA e China se tornou um passatempo tão popular entre as elites de ambos os países. Por exemplo, por meio das redes sociais, muitos chineses puderam assistir a partes da audiência de 23 de março no Capitólio, onde congressistas questionaram ou, melhor dizendo, repreenderam, discursaram e interromperam constantemente o diretor executivo do TikTok, Shou Chew, alegando que os vídeos do TikTok estariam ferindo a saúde mental das crianças americanas.

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Hu Xijin, um dos blogueiros mais populares da China, com quase 25 milhões de seguidores no Weibo, equivalente chinês ao Twitter, explicou para mim o quanto os chineses consideraram a audiência ofensiva. Foi algo amplamente comentado e ridicularizado na internet chinesa.

A rede social chinesa Tik Tok se tornou uma das plataformas mais populares do mundo  Foto: Loic Venance / AFP

(Com tudo isso, o YouTube foi banido da China em 2009 e, portanto, os americanos não são os únicos assustados com aplicativos populares. Proponho uma troca: os americanos aceitam o TikTok se Pequim deixar o YouTube entrar.)

“Entendo como vocês se sentem: passaram um século na liderança, e agora a China está em ascensão, e temos o potencial de nos tornarmos os líderes — e isso é difícil para vocês”, disse-me Hu. Mas “vocês não deveriam tentar deter o desenvolvimento da China. No fim, será impossível nos conter. Somos bastante espertos. E muito disciplinados. Trabalhamos com muito afinco. E somos 1,4 bilhão de pessoas”.

Antes da presidência de Trump, acrescentou ele: “Nunca imaginamos que as relações entre EUA e China se tornariam tão ruins. Agora, aceitamos a situação gradualmente, e a maioria dos chineses pensa que não há esperança de uma melhoria nessas relações. Acreditamos que a relação só vai piorar, e esperamos que não ocorra uma guerra entre os nossos países”.

Clique aqui para ler a segunda parte da coluna de Thomas Friedman.

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