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EUA e Otan aceleram mobilização para armar a Ucrânia e reabastecer os próprios arsenais

O Ocidente pensou que a Europa jamais veria outra guerra de tanques e artilharia, permitindo o encolhimento dos estoques de armas. Foi um erro.

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Por Steven Erlanger e Lara Jakes

BRUXELAS — Quando a União Soviética ruiu, os países europeus se agarraram ao “dividendo da paz”, reduzindo drasticamente seus orçamentos de defesa, exércitos e arsenais.

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Com a ascensão da Al-Qaeda quase dez anos mais tarde, o terrorismo se tornou o alvo, exigindo investimentos militares diferentes e forças mais leves e expedicionárias. Até o longo envolvimento da Otan no Afeganistão pouco se parecia com uma guerra terrestre na Europa, que envolveria tanques e artilharia, de um tipo que quase todos os ministros da defesa pensaram que jamais ocorreria.

Mas foi isso que ocorreu.

Soldados ucranianos preparam disparo de artilharia em Kherson, em 30 de outubro. Foto: Ivor Prickett/The New York Times

Na Ucrânia, o tipo de guerra europeia tido como inconcebível está consumindo os modestos estoques de munição, artilharia e defesas aéreas que alguns na Otan chamam de “exércitos bonsai” da Europa, como as pequenas árvores japonesas. Até os poderosos Estados Unidos têm apenas um estoque limitado das armas que os ucranianos desejam e das quais necessitam, e Washington não está disposta a desviar armamento importante de regiões delicadas como Taiwan e a Coreia do Sul, onde China e Coreia do Norte testam constantemente os limites.

Agora, passados nove meses desde o início da guerra, o despreparo fundamental do Ocidente levou a uma mobilização acelerada e caótica para fornecer à Ucrânia o armamento de que necessita, ao mesmo tempo reabastecendo os estoques da Otan. Com ambos os lados consumindo armas e munição em um ritmo como não se via desde a 2ª. Guerra, a concorrência para manter os arsenais abastecidos se tornou uma frente de batalha fundamental que pode se revelar decisiva para os esforços da Ucrânia.

O uso da artilharia é de um volume surpreendente, dizem funcionários da Otan. No Afeganistão, as forças da Otan talvez fizessem 300 disparos por dia, sem grandes preocupações com a defesa antiaérea. Mas, na Ucrânia, são feitos milhares de disparos por dia, e o país precisa desesperadamente de alguma defesa antiaérea contra os mísseis russos e drones de fabricação iraniana.

“Um dia na Ucrânia equivale a um mês ou mais no Afeganistão”, disse Camille Grand, especialista em defesa do Conselho Europeu de Relações Internacionais, que até recentemente atuou como secretária-geral-assistente da Otan para investimentos em defesa.

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Em meados do ano, na região de Donbas, os ucranianos faziam de 6.000 a 7.000 disparos de artilharia por dia, de acordo com um funcionário do alto escalão da Otan. Os russos fizeram de 40.000 a 50.000 disparos por dia. A título de comparação, os EUA produzem munição para apenas 15.000 disparos por mês.

Com isso, o Ocidente está se mobilizando para localizar o raro equipamento e munição da era soviética que a Ucrânia pode usar agora, incluindo os sistemas de defesa antiaérea S-300, os tanques T-72 e, principalmente, munição para a artilharia dos calibres soviéticos.

O Ocidente também busca sistemas alternativos, ainda que mais velhos, para substituir os mísseis de defesa aérea e os Javelins antitanque, cada vez mais escassos. Tudo isso sinaliza à indústria ocidentaI da defesa a possibilidade de contratos de prazo mais longo, com o emprego de mais turnos de funcionários e a reforma de linhas de montagem mais antigas. Tenta-se comprar munição de países como a Coreia do Sul para “tapar o buraco” deixado pelo armamento enviado à Ucrânia.

Fala-se até na possibilidade de a Otan investir em fábricas antigas na República Checa, Eslováquia e Bulgária para reiniciar a produção de munição calibre 152-mm e 122-mm, do período soviético, para alimentar a artilharia da Ucrânia, que remonta principalmente à era soviética.

Mas os obstáculos são tão variados quanto as soluções almejadas.

Os países da Otan — frequentemente com grande alarde — forneceram à Ucrânia algum equipamento ocidental de artilharia avançada, com o calibre 155-mm, padrão na Otan. Mas os sistemas da Otan raramente têm certificação para usar munição produzida em outros países, que frequentemente seguem diferentes técnicas de produção (é uma forma das empresas de armas garantirem que venderão munição para seus produtos, como as empresas de impressoras ganham dinheiro vendendo cartuchos de tinta).

Soldados ucranianos disparam com um obus autopropulsado polonês de 155 mm Krab em uma posição na linha de frente na região de Donetsk. Foto: Anatolii Stepanov/ AFP

E temos então o problema dos controles de exportação previstos na lei, que regem a possibilidade de venda de armas e munição para países que estejam em guerra. É por isso que os suíços, alegando neutralidade, recusaram a permissão pedida pela Alemanha para exportar à Ucrânia munição antiaérea muito necessária, fabricada pela Suíça e vendida à Alemanha. A Itália tem uma restrição semelhante à exportação de armas.

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Um funcionário da Otan descreveu a mistura de sistemas que a Ucrânia precisa administrar como “zoológico da Otan”, levando em consideração a preferência por nomes de animais para batizar armas como o Gepard (leopardo em alemão) e o míssil terra-ar Crotale (cascavel em francês). Isso dificulta o reabastecimento e a manutenção.

Os russos também enfrentam seus próprios problemas de reabastecimento. Agora estão usando menos munição de artilharia, mas usam muitas peças, mesmo que algumas sejam antigas e menos confiáveis. Diante de uma necessidade emergencial semelhante, Moscou também busca aumentar a produção militar e estaria interessada na compra de mísseis da Coreia do Norte e mais drones baratos do Irã.

Levando em consideração a anexação da Crimeia pela Rússia em 2014 e a guerra na região do Donbas, as novas metas de gastos militares da Otan — 2% do PIB até 2024, com 20% do valor investido em equipamento, e não em salários e pagamento de pensões — parecem modestas. Mas até estas foram amplamente ignoradas pelos principais países membros.

Em fevereiro, quando a guerra na Ucrânia teve início, os estoques de armamentos de muitos países eram apenas metade do que deveriam ser, disse o funcionário da Otan, de houve pouco progresso na criação de armas que pudessem ser intercambiadas entre os países da Otan.

Um tanque antiaéreo Gepard na fábrica Krauss-Maffei Wegmann em Munique. Foto: Felix Schmitt/The New York Times

Mesmo dentro da União Europeia, apenas 18% dos gastos dos países na defesa são cooperativos.

Para os países da Otan que ofereceram muitas armas à Ucrânia, especialmente países da linha de frente como a Polônia e os Países Bálticos, o fardo de substituí-las revelou-se pesado.

Os franceses, por exemplo, ofereceram parte do armamento avançado e criaram um fundo de € 200 milhões (cerca de US$ 208 milhões) para a Ucrânia destinado à compra de armas feitas na França. Mas a França já entregou pelo menos 18 howitzers modernos modelo Caesar à Ucrânia — cerca de 20% de toda a sua artilharia existente — e agora reluta em contribuir com mais.

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A UE aprovou um orçamento de € 3,1 bilhões (US$ 3,2 bilhões) para devolver aos países membros o que estes ofereceram à Ucrânia, mas esse fundo, chamado de European Peace Facility, já foi consumido em quase 90%.

No total, os países da Otan já forneceram cerca de US$ 40 bilhões em armamento à Ucrânia, aproximadamente metade do orçamento anual de defesa da França.

Soldados ucranianos disparam um obus autopropulsado francês Caesar contra um alvo russo na região de Donetsk em junho. Foto: Tyler Hicks/The New York Times

Os países menores já exauriram seu potencial, de acordo com outro funcionário da Otan, com 20 dos 30 membros da aliança “praticamente esgotados”. Mas os 10 remanescentes ainda podem oferecer mais, indicou ele, principalmente os aliados maiores. Isso incluiria França, Alemanha, Itália e os Países Baixos.

O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, aconselhou a aliança — incluindo especialmente a Alemanha — dizendo que os parâmetros da Otan para os estoques que devem ser mantidos por cada membro não deve servir de pretexto para limitar a exportação de armas à Ucrânia. Mas também é verdade que Alemanha e França, como os EUA, desejam controlar o tipo de armamento que a Ucrânia recebe, para evitar uma escalada e possíveis ataques diretos à Rússia.

Os ucranianos desejam pelo menos quatro sistemas que o Ocidente não lhes ofereceu, nem deve fazê-lo: mísseis de superfície de longo alcance conhecidos como ATACMS, capazes de atingir a Rússia e a Crimeia; caças ocidentais; tanques ocidentais; e equipamentos de defesa antiaérea muito mais avançados, disse Mark F. Cancian, ex-estrategista de armamentos da Casa Branca que agora atua como consultor sênior do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais, de Washington.

Com alcance de aproximadamente 190 quilômetros, os ATACMS não serão entregues por causa do temor de atingirem a Rússia; os tanques e caças são simplesmente complicados demais, exigindo pelo menos um ano de treinamento para a operação e manutenção. Em relação à defesa antiaérea, disse Cancian, a Otan e os EUA desativaram a maior parte de sua defesa antiaérea de curto alcance depois da Guerra Fria, e restaram poucas peças. A produção adicional pode levar até dois anos.

A manutenção é essencial, mas há respostas inteligentes usando equipamento relativamente mais simples, como o howitzer modelo M-777 entregue à Ucrânia. Com as peças certas, um engenheiro ucraniano pode entrar em contato com um oficial de artilharia americano em Fort Sill, Oklahoma, para fazer passo a passo a manutenção via Zoom.

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Soldado ucraniano com um míssil Stinger na região de Donetsk, em maio. Foto: Finbarr O'Reilly/The New York Times

A Ucrânia também demonstrou capacidade de adaptação. Dentro da Otan, suas forças são conhecidas como “exército MacGyver”, referência à antiga série de TV na qual o protagonista usava a criatividade e engenhosidade com o que tinha à disposição para superar os perigos da vez.

Para bombardear as posições russas na Ilha da Cobra, por exemplo, os ucranianos usaram os Caesars, cujo alcance é de 40 quilômetros, instalaram-nos sobre balsas e os puxaram por cerca de 10 quilômetros para atingir a ilha, situada a 50 quilômetros dali, surpreendendo os franceses. A Ucrânia também afundou o Moskva, nau capitã da Frota do Mar Negro, com seus próprios mísseis adaptados, e construiu drones capazes de atacar navios no mar.

Funcionários do governo americano insistem que as forças armadas dos EUA ainda dispõem de material suficiente para seguir fornecendo ajuda à Ucrânia e defender os interesses do próprio país em outros lugares.

“Temos o compromisso de oferecer à Ucrânia o que o país precisa para o campo de batalha”, disse Sabrina Singh, vice-assessora de imprensa do Pentágono depois de anunciar este mês o envio de mais mísseis Stinger à Ucrânia.

Washington também está analisando alternativas mais antigas e baratas, como entregar à Ucrânia mísseis antitanque TOW, dos quais há amplo estoque, em lugar dos Javelins, e mísseis terra-ar Hawk em vez de versões mais modernas. Mas as autoridades estão cada vez mais pressionando a Ucrânia a ser mais eficiente, evitando, por exemplo, disparar um míssil de US$ 150.000 para derrubar um drone que custa US$ 20.000. Já há armas escassas.

Em setembro, os militares americanos tinham munição limitada para artilharia de 155-mm, e um número limitado de foguetes teleguiados, howitzers, Javelins e Stingers, de acordo com uma análise de Cancian.

A escassez de munição para a artilharia de 155-mm “é provavelmente a situação que mais preocupa os planejadores”, disse Cancian.

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“Se quisermos ampliar a capacidade de produção da munição de 155-mm”, disse ele, “levará algo entre quatro e cinco anos até vermos uma diferença na produtividade”./ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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