EUA estudaram hábitos de líder da Al-Qaeda antes de disparar drone que o matou

Informações da inteligência americana mapearam estilo de vida do terrorista, morto após ser atingido por dois mísseis na varanda do seu esconderijo

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Por Zeke Miller e Aamer Madhani
Atualização:

WASHINGTON (ASSOCIATED PRESS) - O sol nascia em Cabul quando dois mísseis Hellfire disparados por um drone militar americano encerravam o reinado de uma década de Ayman al-Zawahiri como líder da Al-Qaeda, no domingo, 31. O sucesso dos disparos também concluíam uma operação audaciosa dos EUA, planejadas ao longo de meses na área de contraterrorismo.

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Autoridades americanas construíram um modelo do esconderijo onde Al-Zawahiri estava e o levaram até a Casa Branca para mostrá-lo ao presidente Joe Biden. Observaram tanto a vida do terrorista mais procurado do país que construíram um “padrão de vida” de forma meticulosa. Por isso, sabiam que Al-Zawahiri gostava de se sentar na varanda de casa – e estavam confiantes de que ele estaria lá no momento em que os mísseis foram disparados, como de fato estava.

Segundo Joe Biden, anos de esforços de agentes de inteligência dos EUA para rastrear Al-Zawahiri e pessoas próximas a ele tiveram resultados no início deste ano, quando o terrorista foi localizado. Ele foi procurado por duas décadas, período em que os EUA tiveram quatro presidentes.

Presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, em discurso direto da Casa Branca na segunda-feira, 1º, para anunciar morte de Ayman al-Zawahiri, então líder da Al-Qaeda. Terrorista era procurado havia duas décadas Foto: Al Drago / NYT

Ayman al-Zawahiri se tornou o número 2 na lista de mais procurados dos EUA em 2001, após os ataques do 11 de setembro. Ele foi co-planejador dos ataques e era braço direito de Osama bin Laden, então líder da Al-Qaeda e o único a ser mais procurado.

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Bin Laden foi assassinado em 2 de maio de 2011 por uma equipe de assalto dos EUA liderada pelos membros da força especial da Marinha. Al-Zawahiri assumiu o posto de líder e, uma década depois, também morreu.

A família de Zawahiri era apoiada pela rede Haqqani, um grupo que faz parte do governo taleban, e passou a residir na residência de Cabul quando os americanos retiraram as tropas militares após 20 anos de combates. Neste período, os EUA pretendiam, em parte, manter o controle do país e impedir a Al-Qaeda de recuperar uma base de operações no Afeganistão.

O primeiro passo da operação foi saber que Zawahiri estava em Cabul. Os próximos eram confirmar a identidade, planejar um ataque em uma cidade lotada, de maneira que não colocasse a vida de civis em risco, e garantir que a operação não atrasasse outras prioridades dos EUA. Foram necessários meses para o plano se concretizar.

Esse esforço envolveu equipes independentes de analistas que chegaram a conclusões semelhantes sobre a probabilidade de Al-Zawahiri de fato estar no local especulado. Depois, houve a construção da maquete em escala e estudos de engenharia da residência, para avaliar os riscos para as pessoas que estariam próximas. A recomendação unânime dos assessores de Joe Biden para prosseguir com o ataque foi o último passo.

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“Eu autorizei o ataque de precisão que o tiraria do campo de batalha de uma vez por todas. Essa medida foi cuidadosamente planejada, com rigor, para minimizar o risco de danos a outros civis”, declarou o presidente americano, que classificou a operação de “clara e convincente”.

Errar nesse tipo de decisão pode ser devastador. Há um ano, os EUA realizaram um ataque de drone em meio à caótica retirada das forças americanas do Afeganistão e matou 10 civis inocentes, dos quais 7 eram crianças. Desta vez, Biden ordenou o que as autoridades chamaram de “ataque aéreo sob medida”, projetado para que os dois mísseis destruíssem apenas a varanda da residência fortificada onde Al-Zawahiri estava escondido há meses, poupando pessoas em outras partes do edifício.

Imagem de 30 de agosto de 2021 em Cabul, quando ataque de drone americano disparou míssil em área de civis e matou 10 pessoas, incluindo 7 crianças Foto: Jim Huylebroek / NYT

Cronograma

Segundo um alto funcionário do governo dos EUA, Al-Zawahiri foi identificado em várias ocasiões, por longos períodos de tempo na varanda onde morreu. Ele acrescentou que diversas informações de inteligência convenceram os analistas americanos da presença dele no local, eliminando “todas as opções razoáveis” que iam além da presença do terrorista.

A primeira vez que a informação da inteligência chegou a dois altos funcionários da segurança nacional dos EUA foi no início de abril. Biden foi informado pouco depois através de Jake Sullivan, conselheiro de segurança nacional. Durante maio e junho, um pequeno círculo de funcionários do governo trabalhou para examinar as informações e elaborar opções para Biden.

No dia 1º de julho, após retornar de uma viagem de cinco dias à Europa, Biden recebeu a apresentação da proposta de ataque através dos assessores da área. Foi nessa reunião que ele viu a maquete do esconderijo e questionou os conselheiros – que incluíam o diretor da CIA, a diretora da Inteligência Nacional e a diretora do Centro Nacional de Contraterrorismo – sobre as certezas de que Zawahiri estaria de fato escondido nele.

Presidente Joe Biden durante apresentação da operação criada para matar Ayman Al-Zawahiri em imagem divulgada nesta terça-feira, 2. Inteligência dos EUA criou maquete de esconderijo e fez estudos de engenharia para mitigar riscos Foto: Casa Branca / via Reuters

Ainda segundo um alto funcionário, Biden também pressionou as autoridades a considerar os riscos que o ataque poderia representar para o americano Mark Frerichs, que está em cativeiro do Taleban há mais de dois anos, e para os afegãos que ajudaram os EUA enquanto eles estavam no país.

Os advogados do governo analisaram a legalidade do ataque e consideraram que o fato de Al-Zawahiri ser chefe da Al-Qaeda o tornaram alvo legal. As informações da inteligência americana indicam que Zawahiri construiu um modelo organizacional que lhe permitiu liderar a Al-Qaeda mesmo isolado – portanto, ele continuava líder e apoiador das ações terroristas.

No dia 25 de julho, 6 dias antes do assassinato e quando Biden se isolou na Casa Branca por conta da covid-19, ele recebeu a apresentação final da equipe sobre a operação. Todos os funcionários que participaram da reunião recomendaram fortemente a operação, e Biden deu a aprovação definitiva para que ela fosse posta em prática quando a oportunidade surgisse.

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Essa unanimidade faltou uma década antes, quando Biden ocupava o papel de vice-presidente no governo de Barack Obama e deu ao presidente conselhos para adiar a operação que matou Osama bin Laden, mas eles não foram seguidos.

O dia

A oportunidade de matar Al-Zawahiri surgiu no final de sábado em Washington, madrugada de domingo no Afeganistão. O presidente recebeu a informação quando a operação começou e quando foi concluída, de acordo com funcionários.

O assassinato permaneceu um segredo durante 36 horas, enquanto a inteligência americana analisava membros da rede taleban Haqqani realocar a família do líder da Al-Qaeda e restringir acesso ao local. As autoridades interpretaram esse movimento como uma tentativa do Taleban omitir que escondeu Zawahiri.

Imagem do dia 31 de julho mostra fumaça saindo de uma residência em Cabul, no dia em que os EUA dispararam contra Ayman al-Zawahiri Foto: AFP

Após a retirada das tropas americanas do Afeganistão no ano passado, os EUA ficaram com menos bases na região para coletar informações e realizar ataques a alvos terroristas. Não está claro de onde saiu o drone que transportava os mísseis e se os países sobrevoados estavam cientes de sua presença.

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Autoridades também afirmam que o Taleban não recebeu nenhum aviso prévio do ataque. Em entrevista ao “Good Morning America” da emissora ABC nesta terça-feira, 2, Jake Sullivan afirmou que ninguém estava com uniformes militares no local no momento do ataque e que está em contato direto com o Taleban para tratar o assunto.

Onze meses atrás, Biden havia dito que os EUA manteriam a luta contra o terrorismo no Afeganistão e em outros países, apesar de retirarem tropas. “Nós simplesmente não precisamos de uma guerra terrestre para fazer isso”, declarou. “Temos o que chamamos de capacidades além do horizonte”.

Até que, no domingo, os mísseis sugiram.

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