WASHINGTON – Durante anos, Bernie Sanders e Joe Biden lutaram pelo futuro do Partido Democrata em um cabo de guerra público que durou três eleições, dois governos e uma disputa nas primárias.
Mas, quando Sanders entrou em sua primeira reunião no Salão Oval com o novo presidente na semana passada e viu o retrato de Franklin Roosevelt em frente à mesa presidencial, o expoente da esquerda sentiu como se não estivesse mais lutando contra Biden pela alma do partido.
“O presidente Biden entende que, como Roosevelt, ele assumiu o cargo em um momento de crises extraordinárias, e está preparado para pensar grande a fim de resolver os muitos, muitos problemas enfrentados pelas famílias trabalhadoras”, disse Sanders em uma entrevista. “Há um entendimento de que, se vamos encarar as crises que este país enfrenta, estaremos todos juntos.”
Depois de uma disputa nas primárias de 15 meses que destacou profundas divisões dentro do partido, Biden e sua turbulenta coalizão democrata estão, em grande parte, mantendo-se juntos. Unido por um momento de crise nacional, o novo presidente está desfrutando de uma lua-de-mel antecipada com uma ala progressista que passou meses se preparando para apertar o novo governo.
Os democratas permaneceram decididos a aprovar o plano de Biden em resposta ao coronavírus, de US$ 1,9 trilhão, contra a discordância quase unânime dos republicanos, e estão determinados a responsabilizar o ex-presidente Donald Trump por seu papel no ataque ao Capitólio em 6 de janeiro, no julgamento de impeachment que começou ontem.
Ícones progressistas como Sanders e a senadora Elizabeth Warren, de Massachusetts, estão segurando qualquer crítica. O “esquadrão” progressista na Câmara — a congressista Alexandria Ocasio-Cortez, de Nova York, e suas aliadas — concentrou sua ira nos republicanos que inspiraram o cerco ao Capitólio.
Os ativistas que construíram carreiras orquestrando campanhas de pressão pública foram desarmados pela linha aberta com Casa Branca e pelo incentivo que recebem dos escalões mais altos — um sinal de que o governo está atendendo à base democrata de uma maneira diferente do que acotecia durante os anos Obama ou Clinton.
O momento de unidade pode ser frágil: diferenças agudas permanecem entre Biden e a ala esquerda sobre questões como saúde, custos das faculdades, expansão da Suprema Corte e combate à desigualdade de renda.
Uma batalha se aproxima sobre a prioridade a ser dada à aprovação do aumento do salário mínimo pa US$ 15 por hora. O debate esquentou novamente na segunda-feira, quando um relatório do Escritório de Orçamento do Congresso disse que os US$ 15 reduziriam significativamente a pobreza, mas custariam centenas de milhares de empregos.
Ainda assim, no estágio embrionário do governo Biden, os democratas parecem estar coexistindo sob um mesmo teto.
Mesmo a decisão de Biden de realizar sua primeira reunião de grande importância na Casa Branca com senadores republicanos, e não democratas, não intimidou os progressistas, que o instaram a permanecer firme diante dos inúmeros pedidos para a redução do seu pacote de estímulo de US$ 1,9 trilhão.
“Biden disse que entraria em contato com os republicanos”, disse o senador Jeff Merkley, do Oregon, um dos membros mais progressistas da Câmara, em uma entrevista. — Ele teve que tentar.
A harmonia reflete o quanto Biden e seu partido se deslocaram para a esquerda durante o governo Trump. Durante a campanha, os republicanos acusaram Biden de ser um “cavalo de Tróia” dos interesses progressistas. Mas o governo não tentou contrabandear propostas da esquerda; simplesmente as rebatizou como suas.
Elementos do New Deal Verde, propostas econômicas e iniciativas sobre igualdade racial e imigração estão aparecendo nas ordens executivas e planos legislativos que o governo anunciou.
Dentro da bancada democrata, a equipe de Biden evitou armadilhas que ele testemunhou durante o governo Obama, quando porta-vozes da Casa Branca descartaram ativistas como "a esquerda profissional" e baniram os críticos de dentro do partido dos círculos de influência do governo.
Em vez disso, a Casa Branca de Biden acolheu muitos desses críticos em reuniões virtuais, e o chefe da equipe, Ron Klain, encorajou críticas dos progressistas em seu feed do Twitter.
Melissa Byrne, uma ativista progressista, descobriu isso quando quis incitar Biden a se concentrar em perdoar dívidas de empréstimos estudantis. Para complementar seu fluxo constante de tuítes, Byrne comprou anúncios de página inteira no News Journal, um jornal que era entregue na casa de Biden em Delaware diariamente durante a transição presidencial.
Byrne esperava alguma irritação da equipe de Biden por causa de seus protestos públicos. Em vez disso, seus esforços foram encorajados. Klain disse a ela para manter a pressão, convidando-a para mais reuniões do Zoom com a equipe de transição. “Isso me mostrou que podemos fazer coisas legais, como ocupações e distribuição de banners, mas também podemos ser calorosos e simpáticos”, disse ela.
O foco especial na pandemia permitiu a Biden alinhar a promessa central de sua campanha — uma resposta mais eficaz do governo — com as prioridades dos dirigentes do partido nos estados onde eleição foi mais disputada, que dizem que os eleitores esperam que Biden entregue uma distribuição eficiente das vacinas juntamente com um alívio econômico direto. É consenso dentro do partido de que os democratas serão julgados nas eleições legislativas de 2022 e na disputa presidencial de 2024 pela forma como lidaram com as duas crises.
“Agulhas e cheques, esse deve ser o foco”, disse Thomas Nelson, da administração do Condado de Outagamie, em Wisconsin, que foi delegado de Sanders nas eleições primárias de 2020 e está concorrendo na eleição de 2022 ao cargo ocupado pelo senador Ron Johnson, um republicano. “Nós do meu condado precisamos desses cheques.”
Biden também prestou atenção a outras demandas políticas. Ele assinou cerca de 45 ordens executivas, memorandos ou proclamações decretando ou, pelo menos, iniciando grandes mudanças em questões como justiça racial, imigração, mudança climática e direitos dos transgêneros.
Pela primeira vez em suas décadas em Washington, Sanders é um ator influente na governança. Ele é o presidente do Comitê de Orçamento do Senado e fala frequentemente com funcionários do governo, incluindo Klain. Ele teve várias conversas com Biden, a quem considera um amigo, e disse que suas ligações para a Casa Branca foram retornadas "muito rapidamente".
“Ele vê o movimento progressista como uma parte forte de sua coalizão”, disse Sanders sobre Biden. “Ele está nos procurando e adotando algumas das ideias que apresentamos e que fazem sentido na crise atual.”
Há muitas coincidências entre a agenda de Biden e a ala esquerda, e alguns dos passos do novo presidente, prometidos durante a campanha, vêm sendo elogiados, incluindo voltar ao acordo climático de Paris.
Os republicanos reclamaram que Biden é um moderado que está sendo corrompido pela esquerda no Congresso e na Casa Branca. Mas, na medida em que a ideologia democrata foi mudando durante suas décadas em Washington, Biden sempre recalibrou suas posições para permanecer no centro de seu partido. Após quatro anos do governo Trump, esse centro mudou decididamente para a esquerda.
Embora Biden tenha se esforçado para se separar da esquerda progressista durante a campanha — "Eu venci o socialista", Biden costumava dizer depois que derrotou Sanders —, ele forjou uma reaproximação em meados do ano passado, quando sua campanha concordou em formar forças-tarefa para discutir políticas públicas com pessoas indicadas por Sanders.
Por sua vez, Biden reinterpretou sua promessa de campanha de reunir o país na definição mais vaga do termo. Seus assessores começaram a retratá-lo encontrando amplo apoio para seus planos entre os eleitores — independentemente de obterem os votos de algum republicano no Congresso.
“Se você aprovar uma lei que rompe as linhas partidárias, mas ela é aprovada, não significa que não houve unidade”, disse Biden recentemente. “Significa apenas que não foi bipartidário.”
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