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Ex-militares dos EUA vendem serviços inspirados no que viram em zonas de combate

Americanos abrem negócios que se valem de suas experiências no Iraque e no Afeganistão — e as empresas prosperam

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Por Jennifer Steinhauer

THE NEW YORK TIMES - Ao longo de duas décadas de guerra, militares americanos que serviram no exterior têm voltado o olhar para além dos escombros, dos campos devastados e dos lares despedaçados — e enxergam possibilidades. Um tomou chá pela primeira vez durante o serviço no exterior; outro ficou encantado com botas de combate inspiradas em chinelos de dedo. Mulheres ex-militares que serviram no Afeganistão passaram conhecer as afegãs e imaginaram para elas vidas empoderadas economicamente. Um ex-piloto de helicóptero do Exército que voltou para a casa doente em razão da exposição a plásticos queimados mudou a visão que tinha sobre o meio ambiente.

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Vários militares veteranos batalharam por conta própria, valendo-se de programas destinados a pequenos negócios, e criaram empresas inspiradas em suas experiências em zonas de combate e calibradas para enfrentar problemas sociais e econômicos nos países em que serviram.

Nick Kesler, um ex-militar ativista que anteriormente administrou uma firma de consultoria sem fins lucrativos para dar apoio a empresas inspiradas pelo serviço militar, afirmou que os veteranos por trás dele “sabem qual é o verdadeiro custo da instabilidade e do conflito sobre as famílias que eles planejam apoiar”.

“Essas empresas criam uma conexão entre a vida que eles levaram fardados, no exterior, e suas vidas civis, em seu próprio país”, afirmou ele.

Leia abaixo as histórias de quatro dessas empresas

Rakksan Tea Company

A primeira vez que ele provou chá de verdade foi no Iraque, acompanhado de combatentes curdos que carregavam fuzis AK-47 pendurados pelas bandoleiras. Foi um dos muitos momentos reveladores em seus períodos de serviço militar no Iraque, no Paquistão e no Afeganistão.

À parte o sabor, tomar chá no Iraque representava “dar um tempo e diminuir o ritmo”, afirmou Brandon Friedman, da Rakksan Tea Company . “Era uma maneira de se apartar da vida cotidiana.”

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Quando voltou para sua casa em Dallas, em 2004, ele passou a vasculhar lojas de alimentos halal à procura dos sacos marrons de chá vendido a granel. A vida continuou, ele se casou, fez pós-graduação, teve um filho e arrumou um emprego na política. “Saí da guerra e deixei o chá no passado.”

Em 2016, Friedman começou a pesquisar as origens do chá que ele adorava. (O chá preto do Ceilão que ele tomou no Iraque vinha do Sri Lanka e de outros países.) Logo, ele começou a estudar maneiras de importar o chá de antigas zonas de conflito. Seu aprendizado sobre chá começou com determinação, e ele foi conhecendo aromas e sensações na boca de diferentes matizes.

Veterano das Forças Armadas dos EUA e empresário, Brandon Friedman montou uma loja de chás com importações de Nepal, Colômbia, Vietnã e outros países Foto: Nitashia Johnson / NYT

Trabalhando em conjunto com uma ONG, ele buscou dinheiro no Kickstarter, com um ex-colega do Exército — ex-boina verde — e ambos inauguraram a Rakkasan Tea Company em 2017, com sede em um escritório de 23 metros quadrados nos fundos de um pequeno edifício, importando chá do Nepal, da Colômbia, do Vietnã e de outros países cujos chás podem ser difíceis de encontrar nas lojas americanas. Agora, eles possuem uma loja com vitrine, de 185 metros quadrados, e negociam 45 tipos de chá de 9 países.

Alguns fornecedores “são muito mais casuais a respeito de cronogramas”, afirmou ele, e foi difícil fazê-los atender agendas de temporadas de vendas. O maior problema surge, no entanto, quando nações que passaram por conflitos, como Mianmar e Etiópia, “voltam a ser países em conflito”. Além disso tudo, evidentemente, vieram os problemas nas cadeias de fornecimento ocasionados pela pandemia.

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Vender chá virou uma extensão de sua missão militar, afirmou Friedman, cujo chá preferido ainda é o chá do Ceilão que ele provou pela primeira vez do Iraque. “Continuo convencido de que a maneira de solucionar um conflito é por meio do diálogo entre as pessoas e do comércio”, afirmou ele. “Chamamos isso de paz comercial.”

Rumi Spice

Emily Miller recorda-se da primeira vez que serviu ao Exército no Afeganistão, mais de uma década atrás, quando os militares americanos finalmente estavam se dando conta de quão culturalmente inapropriado tinha sido acionar soldados no sexo masculino para percorrer vilarejos e conversar com mulheres e crianças. Em 2011, ela foi integrada a uma equipe encarregada de abordar “os outros 50% da população, que tinham sido amplamente ignorados”.

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Miller terminou seus dois períodos de serviço militar no exterior “bem desiludida com o esforço de guerra e com o fato de que não estávamos ajudando ninguém”. Ela percebeu que empresas poderiam constituir uma força mais eficaz pelo bem. Logo, Miller estava na Harvard Business School falando por Skype com uma colega de classe, Kim Jung, e outro amigo, Keith Alaniz. Todos na chamada eram veteranos do Exército que haviam servido em diferentes partes do Afeganistão.

Da esquerda para direita, imagem mostra Kimberly Jung, Mohammad Mohammadali, Emilly Miller e Keith Alaniz em Chicado, em 2016. Empresa montada pelos veteranos de guerra compra açafrão e treina fazendeiros afegãos para ajudar desenvolvimento de economia local Foto: David Kasnic / NYT

Alaniz disse às suas amigas que no segundo período em que serviu na Província Maydan-Wardak conheceu Hajji Joseph, um agricultor que cultivava açafrão e ansiava por uma entrada no mercado americano.

Os três amigos começaram a ponderar sobre o açafrão. Eles imaginavam se seriam capazes de conectar os agricultores aos restaurantes nos Estados Unidos. E cogitaram abrir um negócio capaz de, ao funcionar, melhorar as condições econômica na zona rural do Afeganistão.

“Quando o açafrão entrava no ambiente”, recordou-se Jung sobre o tempo de estudo, “ele simplesmente enchia o ambiente com sua fragrância impressionante, que, pensei, faria qualquer chef de cozinha desmaiar”. Mas o produto vinha em uma caixa de papelão, amarrada por um cordão, pressagiando anos de trabalho para ensinar padrões americanos de embalagem e segurança sanitária para estudantes e agricultores locais, além da centralização do processamento na região, o que jamais havia sido feito.

Desde então, a Rumi Spice já treinou aproximadamente 4 mil mulheres afegãs para trabalhar em seus centros de processamento e atendimento, algumas delas recebendo salários pela primeira vez em suas vidas.

A equipe tomou cuidado para não se alinhar com os EUA nem com o governo afegão apoiado pelos americanos, o que se provou uma cautela premonitória.

Mesmo depois da desintegração do governo afegão no ano passado, a Rumi Spice — agora importando 12 produtos que são vendidos em 1,8 mil lojas em todas as regiões dos EUA — continua a dar emprego para milhares de mulheres e agricultores.

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Sheets Laundry Club

Durante os períodos em que serviu no Iraque, Chris Videau não pôde deixar de notar o lixo espalhado. Por todo lado havia pilhas de dejetos, e colunas de fumaça preta obscureciam o céu. O cheiro de plástico queimado pairava por todo lado.

As fossas em que os militares queimavam lixo — gigantescos depósitos incendiados com combustível de jato — brilhavam com tanta intensidade que Videau, que era piloto de helicópteros do Exército, conseguia se orientar pela luz que os incêndios emanavam.

Videau foi um dos dezenas de milhares de americanos expostos às fossas de lixo em chamas enquanto serviam no Iraque e no Afeganistão. Muitos deles deram entrada em processos em busca de indenização por doença junto ao Departamento de Assuntos de Veteranos. O Congresso também comprou sua briga.

Chris Videau, veterano das Forças Armadas dos EUA e co-fundador da Sheets Laundry Club, na sede da companhia em Mooresville, EUA, no dia 4 de fevereiro deste ano. Empresa trabalha na substituição do plástico Foto: Travis Dove / NYT

Videau achou que tinha deixado para trás todo o lixo queimado, assim como outros tantos aspectos de seu serviço militar, quando voltou para o Kansas, em 2007. Mas em 2008, ele começou a sofrer em suas corridas matinais. Um médico que examinou seus raios-x lhe disse que seus pulmões “pareciam de um idoso de 70 anos”, apesar dele ter apenas 30 e poucos.

“Comecei a pensar sobre o plástico”, afirmou Videau, e pouco depois, ele e sua mulher começaram a remover o quanto conseguiam de plástico de sua casa. “Isso mudou minha perspectiva sobre a vida.”

Mas Videau ainda não conseguia evitar as embalagens plásticas dos detergentes. Em 2017, ele começou a pesquisar detergentes em folhas e se esses produtos seriam capazes de substituir o sabão convencional. Depois de complexas negociações com uma empresa que detinha a patente dessas folhas, Videau e um sócio abriram seu negócio. Eles venderam rapidamente 25 mil caixas de sabão em folhas.

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Desde seu primeiro ano de atividade, afirmou Videau, o Sheets Laundry Club levantou mais de US$ 9 milhões em vendas e evitou que mais de 615 mil embalagens plásticas fossem comercializadas.

“A intenção não foi sensibilizar as pessoas sobre as fossas de queima de lixo”, afirmou ele. “A intenção foi criar uma empresa sustentável para a minha família. Nós acreditamos que se fizermos o que é certo, o dinheiro virá.”

A jornada de Videau completou seu ciclo, já que agora ele divulga seu argumento doando seus produtos para tropas que servem no exterior.

“Já estive lá”, afirmou ele. “Sei como é não dispor de informações.”

Matthew Griffin é da quarta geração de militares em sua família. Graduou-se em West Point e partiu para a guerra imediatamente após os ataques de 11 de setembro de 2001. “Eu cresci assistindo ‘Rambo’ e pensava que a melhor maneira de servir ao meu país era me tornando um army ranger”, afirmou ele.

Depois de deixar o serviço militar como capitão, em 2006, Griffin encontrou sua vocação no mundo da construção civil e, em 2008, voltou para o Afeganistão para ajudar a instalar clínicas médicas.

Certo dia, ele visitou uma fábrica de botas de combate em Cabul e ficou impressionado ao ver os funcionários produzirem uma bota que emulava uma sandália de dedo. Parecia que muitos combatentes afegãos, acostumados a calçados sem cadarços, “perdiam mil horas de trabalho diariamente” tentando amarrar os longos cadarços de suas botas de combate.

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O dono da fábrica tinha inventado sandálias militares “que acatavam suas normas culturais”, afirmou Griffin. Quando o proprietário lhe disse que não tinha planos de manter a fábrica depois da guerra, Griffin empreendeu para transformar a empresa em um negócio viável e duradouro, beneficiando o país onde ele havia lutado.

Griffin telefonou para um colega ranger, Donald Lee, e a dupla pensou sobre maneiras de inserir os calçados afegãos no mercado americano. Eles começaram a fabricar sandálias de dedo no Afeganistão em 2012 e faliram “imediatamente”, afirmou Griffin. Por fim, eles transferiram a produção para a Colômbia, beneficiando-se de acordos comerciais bilaterais entre o país latino-americano e os EUA, e começaram a vender as Combat Flip Flops online em 2013.

“Quando começamos, nossos clientes eram 80% militares e famílias de militares”, afirmou Griffin.

Sua clientela cresceu e se diversificou conforme eles acrescentaram ao catálogo de produtos bolsas, bijuterias e cachecóis fabricados no Afeganistão, no Laos e nos EUA. Depois que o Taleban retomou o controle do Afeganistão, no ano passado, a Combat Flip Flops adaptou sua tecelagem no Afeganistão para produzir cobertores e trajes contra o frio para afegãos deslocados que sofriam com o inverno gelado. Parte do lucro com as vendas da empresa foi destinada a financiamento de educação para meninas no Afeganistão, remoção de minas terrestres no Laos e serviços para veteranos portadores de deficiências no Estado de Washington. “Tem sido uma trajetória bem radical”, afirmou Griffin. / TRADUÇÃO DE GUILHERME RUSSO

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