As declarações do presidente Luiz Inácio Lula da Silva sobre a ditadura venezuelana, durante a passagem de Nicolás Maduro por Brasília, prejudicam a reputação do Brasil no exterior, na avaliação do professor de relações internacionais da FGV e colunista do Estadão, Oliver Stuenkel. Na opinião de Stuenkel, as declarações de Lula representam um grande triunfo diplomático para o ditador venezuelano.
“Com isso, Maduro sente que tem apoio incondicional do Brasil e não tem incentivos para permitir a organização de eleições livres no ano que vem”, diz. Leia a seguir trechos da entrevista:
O senhor disse que a retórica bajuladora em relação ao venezuelano Nicolás Maduro é muito mais prejudicial à reputação internacional do governo brasileiro do que qualquer outra coisa que Lula tenha dito ou feito até agora. Por quê?
Há dois motivos pelos quais a retórica pró-Maduro de Lula é mais prejudicial do que, por exemplo, os comentários controversos do presidente brasileiro sobre a Ucrânia. Em primeiro lugar, a palavra do Brasil pesa muito na América Latina e Lula dizer que é “um absurdo” alguém questionar a legitimidade democrática de Maduro representa uma grande derrota para aqueles na Venezuela que lutam por eleições livres no ano que vem. Ao chamar os relatos sobre abusos dos direitos humanos na Venezuela de “narrativa”, o presidente brasileiro deslegitima não apenas aqueles na Venezuela que ainda têm a coragem de criticar o presidente Maduro. Também deslegitima as milhares de vitimas da repressão sistemática do regime e os milhões de cidadãos venezuelanos que fugiram, muitos dos quais perderam tudo ao deixar suas casas para trás. As declarações de Lula, portanto, representam um grande triunfo diplomático para Maduro, que sente que tem apoio incondicional do Brasil e não tem incentivos para permitir a organização de eleições livres no ano que vem.
Isso afetou a cúpula?
Ao fazer essas declarações, Lula acabou contaminando toda a cúpula, obrigando, por exemplo, os presidentes do Uruguai e o Chile a publicamente discordar do que o presidente brasileiro havia dito. A reunião, cujo propósito principal foi reestabelecer pontes e fortalecer o diálogo, será lembrada pela discordância sobre como lidar com a Venezuela. Os comentários controversos de Lula sobre a Ucrânia, por outro lado, podem reduzir o potencial do Brasil ter algum papel em uma possível mediação de paz lá na frente, mas não tem impacto real sobre o conflito em si. Em segundo lugar, a visão de Lula sobre a Ucrânia causou forte rejeição no Ocidente, mas ela não é muito diferente daquilo que outros líderes no Sul Global acreditam. A África do Sul, por exemplo, possui uma postura ainda mais pró-Rússia do que o Brasil. Nesse sentido, a postura brasileira não é excepcional. Exaltar Nicolas Maduro, por outro lado, faz com que o Brasil seja visto como um dos aliados-chave da ditadura venezuelana.
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Como essa posição do Lula prejudica a política o Brasil e a imagem do País no exterior?
Ao explicitamente adotar a narrativa do governo venezuelano, o Brasil perde a chance de mediar entre o presidente Maduro e a oposição. Abre mão, portanto, de participar de um dos maiores e mais difíceis conflitos na América do Sul. A postura limita o espaço do Brasil para exercer liderança na região.
Lula disse achar impossível “que não exista o mínimo de democracia” na Venezuela, e que o assessor especial Celso Amorim foi à Venezuela e disse nunca ter “encontrado tanta tranquilidade”. Onde está o erro nessa visão de mundo do Lula, na sua opinião? Existe democracia na Venezuela?
A erosão da democracia Venezuela vem ocorrendo desde a primeira reeleição de Hugo Chávez em 2006, quando lideranças com ambições autoritárias costumam intensificar a repressão. A partir daí, Chávez adotou medidas claramente ditatoriais como não renovar licenças de canais de TV críticos ao Governo, enfraquecer a assembleia nacional e prender e intimidar juízes. Militarizou o governo e combateu as universidades públicas e a sociedade civil. Conseguiu tudo isso com bastante facilidade porque conseguiu, temporariamente, aumentar os gastos sociais graças aos altos preços de petróleo, mas mesmo no auge, já dava para perceber que a economia ia implodir em algum momento. Mas sem dúvida ainda há resquícios de democracia na Venezuela. Apesar da repressão, é fácil encontrar venezuelanos dispostos a criticar o governo. O Estado venezuelano é fraco e não controla partes do território. É muito diferente de Cuba, onde o governo controla praticamente tudo e onde as pessoas têm medo de falar mal do governo mesmo a portas fechadas.
Se Celso Amorim visitou a Venezuela e disse nunca ter encontrado tanto tranquilidade, é porque teve uma escolta armada ou o governo fechou as ruas pelas quais passou. Caracas é uma das cidades mais perigosas do mundo, com uma taxa de homicídios de em torno de 100 por 100,000 habitantes. Mas quem tem acesso a dólares vive bem e tem acesso a tudo. Para quem não sai da bolha dos bairros ricos da capital, visitar a Venezuela de fato pode ser uma experiência muito tranquila.
Por que o senhor acha Lula e Celso Amorim insistem nessa visão aparentemente retrógrada de defesa do chavismo em vez de adotar uma postura de esquerda moderna, como a adotada pelo presidente do Chile, que criticou a Venezuela?
A esquerda chilena passou por um processo de transformação e uma mudança geracional. Boric, que nasceu em 1986, faz parte de uma geração de lideres estudantis que acumulou experiência política durante as manifestações dos estudantes de colégio em 2006 (conhecido como “Marcha dos Penguins”) e protestos universitários de 2011. Quando aconteceram as grandes manifestações de 2019, Boric, apesar da sua juventude, já era um político experiente e a esquerda tradicional não conseguiu cooptá-lo. Diferentemente do Brasil, onde o atual presidente Lula soube dominar o campo de esquerda e dificultar a emergência novas lideranças que pudessem desafiá-lo (como Marina Silva e Ciro Gomes), no Chile havia espaço para uma renovação genuína. Isso explica por que Boric, social-democrata e progressista, vem de um contexto político completamente distinto daquele do presidente brasileiro.
A cúpula que Lula chamou de “retiro” terminou sem medidas concretas nem uma sinalização clara de caminhos a seguir. A ideia de união dos países sul-americanos não prosperou? Por quê?
A ideia de uma cúpula para reiniciar o diálogo foi uma boa ideia que cumpriu seu objetivo. Sem diálogo a nível presidencial, tudo fica mais difícil. O Brasil precisa cooperar com seus vizinhos para lidar com muitos dos seus desafios internos, como o combate contra o crime organizado, o combate contra o desmatamento e a gestão da crise dos refugiados venezuelanas, que afeta toda a região. Goste-se ou não do governo venezuelano, o Brasil precisa ter um diálogo para lidar melhor com os problemas da fronteira com o a Venezuela, que tem uma extensão de 2200km. Não vejo muito potencial para construir novas estruturas neste momento porque atualmente quase todos os líderes da região enfrentam graves desafios internos. Nas próximas eleições argentinas, a direita ou extrema-direita chegará ao poder. Pouco adianta fazer grandes planos agora se o/a próximo/a presidente da Argentina não estiver de acordo, por exemplo.
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