Em Mianmar, a noite de domingo, 14, trouxe o terror. Em cidades de todo o país, veículos blindados avançaram com caminhões repletos de soldados camuflados. Forças de segurança dispararam balas de borracha, canhões d’água e gás lacrimogêneo contra uma multidão. Tropas cercaram os lares de funcionários do governo que ousaram aderir a uma campanha nacional de desobediência civil. Políticos, ativistas e jornalistas fugiram, desligando os celulares e desaparecendo nas sombras na esperança de escapar de seus perseguidores.
“Já sofri com a ditadura militar", disse Ma Tharaphe, uma contadora do governo que, como muitos outros servidores civis, boicotou o trabalho para exigir o retorno da liderança civil quase duas semanas após um golpe militar. “Mas, agora, tenho medo. Essa noite será um pesadelo.”Os generais promoveram um golpe no dia 1.º de fevereiro, depondo um governo eleito democraticamente e devolvendo o país a um regime militar, mas não fizeram demonstrações substanciais de força até domingo. Na noite de domingo, embaixadores de diferentes países ocidentais, entre eles o dos Estados Unidos, publicaram uma declaração alertando os golpistas para que “evitassem a violência contra manifestantes e civis, que estão protestando contra a deposição do seu governo legítimo". “Defendemos o povo de Mianmar na sua busca por democracia, paz e prosperidade", acrescentava a declaração. “O mundo inteiro está assistindo.” Depois que os militares tomaram o poder, milhões de pessoas aderiram a manifestações de rua e a um movimento de desobediência civil que busca paralisar o funcionamento do governo. Os dias têm sido repletos de protestos desafiadores, com motociclistas, fisiculturistas, estudantes, mulheres em trajes de gala e até criadores de cães da raça golden retriever reunidos para exigir a saída de um exército que controlou Mianmar por quase meio século antes de entregar parte do poder a um governo civil em 2015. Na manhã de domingo, hackers atacaram um site estatal de notícias, substituindo o conteúdo por um triplo ultimato: “Queremos democracia! Rejeitamos o golpe militar! Justiça para Mianmar!” O rosto inexpressivo do general Min Aung Hlaing, líder militar que comandou o golpe, foi usado em imagens de protesto incontáveis vezes em cartazes e na internet. Mas as noites trouxeram o medo. No sábado, o conselho de administração do estado, nome orwelliano escolhido pelos golpistas, anunciou a suspensão de liberdades civis elementares, possibilitando a detenção por tempo indefinido e autorizando a polícia a fazer buscas em lares impunemente. Mandados de prisão foram emitidos com os nomes de ativistas veteranos da luta pela democracia que já passaram anos na cadeia. Na madrugada de sábado para domingo, moradores de Yangon e Mandalay, as duas maiores cidades do país, assistiram horrorizados enquanto homens não identificados começavam incêndios para intimidar os bairros, fugindo em seguida. Batidas policiais foram voltadas contra manifestantes e políticos. No dia anterior, as prisões tinham sido esvaziadas de 23 mil detentos em uma anistia em massa. Agora há espaço de sobra para encarcerar pessoas em um país que, durante décadas, pareceu um estado policial. Na noite de domingo, veículos blindados circulavam pelas ruas, em um sinal da crescente ameaça. Em Sittwe e Mawlamyine, cidades no extremo oeste e leste do país, veículos blindados patrulhavam as ruas com soldados de prontidão nas metralhadoras. Agora, os habitantes de Mianmar se referem a essas noites de insônia e medo como forma de guerra psicológica. Em Myitkyina, cidade no norte do país, forças de segurança dispararam balas de borracha, canhões d’água e gás lacrimogêneo contra uma multidão reunida para protestar contra uma operação do exército que assumiu o controle de uma estação geradora de energia. “Agora, tenho medo do que vai acontecer essa noite, pois podem cortar a eletricidade e fazer o que quiserem", disse U Than Naing, funcionário da empresa local de energia. Os serviços ao cidadão da embaixada dos EUA em Yangon publicaram no Twitter que “há indícios de operações militares em Yangon e a possibilidade de interrupção nas comunicações durante a madrugada entre 1h e 9h da manhã". Com efeito, à 1h da madrugada, o acesso à internet foi interrompido. O exército limitou o acesso a boa parte da internet durante o golpe de 1.º de fevereiro, detendo dezenas de civis, entre eles a líder de facto do país Aung San Suu Kyi, eleita com a Liga Nacional pela Democracia em duas vitórias por ampla margem. Os generais cortaram novamente as redes de comunicações alguns dias mais tarde e proibiram Facebook, Twitter e Instagram. Na noite de domingo, a unidade de informações do exército emitiu um comunicado explicando a súbita mobilização militar nas cidades do país. “As forças de segurança vão zelar dia e noite para que o público durma em paz na comunidade", dizia o comunicado. Em Naypyitaw, capital construída sob medida para os militares, funcionários do governo olhavam pelas janelas enquanto eram cercados pelos soldados. Tharaphe, a contadora, disse que ainda não havia soldados na sua casa, mas ela os esperava. O filho pequeno estava na cama, mas ela, não. “Tudo pode acontecer, podem nos matar anonimamente", disse ela. “Só sei que não consigo dormir essa noite.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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