Êxodo venezuelano - De ônibus, a arriscada fuga da Venezuela

Classe média abandona casas, carros e roupas para escapar da morte que já a rodeia

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Por Rodrigo Cavalheiro e Caracas

CARACAS - A pedra dos saqueadores rompe a janela do ônibus quando a enfermeira Lila Valera ainda se acomoda na escada em que passará a noite. E não é qualquer noite. É sua última na Venezuela, país onde passou todos os dias de seus 37 anos.

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Em sua primeira viagem ao exterior, enfermeira Lila Valera deixa Venezuela sem pretensão de voltar; ela quer enviar dinheiro para filhas Foto: Rodrigo Cavalheiro / Estadão

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Ela é um típico alvo de assaltantes que atacam logo na saída de Caracas os ônibus com imigrantes que fogem rumo a San Cristóbal, na fronteira com a Colômbia, uma viagem de 808 quilômetros prevista para durar 15 horas. Os ladrões sabem que ali há venezuelanos de classe média com seus bens mais valiosos e dinheiro vivo, algo tão raro que uma cédula é revendida por três vezes o valor nominal. 

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Lila tem o equivalente a US$ 20 na bolsa. É muito para ela, que recebeu US$ 1 como último salário na chefia da enfermaria infantil do hospital de San Juan de los Morros, a 218 quilômetros de Caracas. Ela tinha 42 subordinados. O salário mínimo da Venezuela equivale a US$ 3, suficiente para 1 kg de carne. O FMI prevê inflação de 13.800% para 2018.

Passageiros como ela abandonam casas, carros e empregos não “por uma vida melhor”. O fazem por sobrevivência – a própria ou a de parentes – ou por não tolerar mais mortes evitáveis. “Na véspera do Natal, de madrugada, o coração de três bebês internados parou ao mesmo tempo. Éramos só duas na enfermaria. Um deles morreu. A mãe não queria soltar o corpo de seu primeiro filho. O pai o arrancou dos braços dela e me entregou. Levei-o para o necrotério, mas lá também faltava funcionário. Sentei no chão, abracei o cadáver daquele anjinho e o cuidei por horas até alguém chegar. Morreu de desnutrição”, conta Lila, após checar que a menina ao lado da janela despedaçada não se feriu.

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Como não houve perseguição dos assaltantes ao ônibus, a viagem segue, agora com ventilação natural e a ordem expressa do motorista para que todos fechem suas cortinas. Antes da nova partida, a enfermeira pede para tirar algo do bagageiro. Volta com o diploma universitário, emitido há 19 anos. “É a única coisa que eles não podem roubar. É a prova do meu conhecimento.” A entidade Cáritas estima que 280 mil bebês vão morrer em 2018 na Venezuela de desnutrição.

Cai a noite e o veículo, que deixou Caracas às 18 horas, se aproxima de Barinas, terra de Hugo Chávez. Aí ocorre o primeiro reparo mecânico, no eixo dianteiro. Seriam cinco consertos no ônibus, fabricado no Brasil. Boa parte da frota do país está parada por falta de peças de reposição para os veículos. Insumos como pneus são artigos de luxo na Venezuela, por terem preço atrelado ao dólar. Um deles equivale a 46 salários mínimos.

A maior parte dos passageiros viaja em silêncio, alguns choram discretamente. Só ao amanhecer, eles percebem o atraso, que fará a viagem durar 20 horas. Alguns reclamam em voz alta e a suposta passividade da população venezuelana passa a ser debatida.

“A culpa dessa situação é nossa, que não reagimos”, desabafa uma passageira. “Vivemos numa ditadura disfarçada”, diz outra, professora primária. Uma terceira denuncia que na escola para crianças deficientes em que trabalha três delas morreram no ano passado por desnutrição. Uma quarta passageira, também professora, acusa o governo até de “roubar” uma cozinha recém-instalada em sua escola. “Fizeram a entrega, a foto da inauguração e em seguida levaram tudo. Geladeira, fogão, tudo.”

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Lila, que se equilibrou sem dormir na escada na madrugada, senta-se agora no assento 23, aproveitando que alguém desceu no caminho. Ela pagou 800 mil bolívares (US$ 1) “por fora” pelo lugar improvisado no ônibus. Aos demais, a passagem custou 1.350.000 bolívares (US$ 1,50). Mesmo após a noite em claro, a enfermeira não dorme. Fica agarrada à bolsa em que leva dinheiro, passaporte e, mais importante, seu diploma. Sua meta é chegar ao Peru, onde tem promessa de emprego, teto e comida. 

Seu dinheiro só dá para ir até a fronteira. Como trabalhava entre 12 e 18 horas por dia no hospital, acredita que não terá problema em dar conta de dois empregos, um na área médica e algum outro bico. Seu objetivo é mandar dinheiro para as três filhas, duas gêmeas de 15 anos e a mais velha, de 18, que escapou por pouco da morte ao dar à luz. Foram 15 dias de internação por uma infecção bacteriana contraída durante a cesárea. Segundo os últimos dados oficiais, a mortalidade infantil aumentou 30% em 2016, enquanto a materna subiu 65%. 

No hospital Israel Ranuárez Balza, onde a enfermeira trabalhava, faltavam antibióticos, adrenalina e funcionários. Mães cortavam lençóis para fazer fraldas improvisadas. Era comum Lila ser chamada na casa de três quartos em que vivia, onde chegou a ter dois carros e uma moto, para achar uma veia que ninguém mais encontrava ou cauterizar um ferimento. “Os melhores profissionais estão saindo, sobram os iniciantes”, lamenta.

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O ônibus da empresa Flamingo estaciona no terminal de San Cristóbal, está com o piso molhado pela chuva que entrou pela janela. O recém-formado grupo de revoltados com o chavismo decide dividir o táxi até a fronteira, onde atuam atravessadores, contrabandistas e narcotraficantes. 

Lila cruza a fronteira sem dificuldade, encontra uma amiga venezuelana do outro lado, mas não pode avançar. Não tem os US$ 250 para cruzar por terra Colômbia e Equador e chegar a Lima, onde tem parentes e garante ter oferta de emprego. Não tem nem mesmo US$ 150, com que conseguiria voar de Bogotá a Lima.

Vive de favor perto de Cúcuta, de 650 mil habitantes, a maior cidade colombiana na fronteira, em uma ocupação chamada La Fortaleza, e o bairro é El Talento. Tentou emprego na área da saúde e no comércio. Ouviu que não há vaga para “venecos”. As venezuelanas que chegaram ali antes têm na prostituição a principal ocupação. E pressionam Lila para que comece logo a trabalhar.

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