THE WASHINGTON POST - Três soldados taleban olhavam para o espantoso buraco no penhasco de 38 metros onde uma das duas grandes estátuas de Buda ficava antes de ser destruída e se perguntavam, em voz alta, quem seria o culpado pela destruição, 22 anos atrás.”É a identidade do nosso país”, afirmou Kheyal Mohammad, de 44 anos, que usava um boné de tecido camuflado, curvando-se sobre um gradil no alto da gigantesca cavidade. “Não deviam ter bombardeado.”
Os soldados, que desfrutavam de um raro dia de folga do treinamento militar para visitar o local, qualificaram as pessoas que destruíram as esculturas como “imprudentes” e afirmaram que o monumento deve ser reconstruído. “Se Deus quiser!”, exclamou Mohammad.
Em 2001, o fundador do Taleban, Mohammad Omar, declarou os budas falsos deuses e anunciou planos de destruí-los. Ignorando apelos provenientes de todo o mundo, combatentes taleban detonaram explosivos e dispararam armas de defesa antiaérea para reduzir a escombros os imensos relevos do século 6.
O ataque contra o inestimável monumento ancestral estarreceu a comunidade internacional e cimentou a reputação de extremistas convictos dos taleban.
Com o grupo novamente no poder, Bamian adquire nova importância simbólica e econômica para a região carente: as autoridades veem os escombros dos budas como uma possível fonte lucrativa de receita e estão trabalhando para atrair turismo para o local. O Taleban sugere que seus esforços não constituem apenas um gesto para os arqueólogos, mas também refletem um regime que é mais pragmático hoje do que quando governou pela primeira vez, de 1996 a 2001.
“Bamian — e os budas, em particular — são de grande importância para o nosso governo, da mesma forma que para mundo”, afirmou em entrevista o vice-ministro taleban da Cultura, Atiqullah Azizi. Ele disse que mais de mil guardas foram acionados para proteger o patrimônio cultural do Afeganistão em todo o país, restringindo o acesso aos locais e gerindo vendas de ingressos. Os funcionários do Museu Nacional do Afeganistão, em Cabul, surpreenderam-se no mês passado ao ver autoridades taleban na inauguração de uma ala proeminente da instituição, dedicada a artefatos budistas.
Mas outros membros do Taleban têm dificuldade em aceitar artefatos que ainda consideram blasfemos. O governador da Província de Bamian, Abdullah Sarhadi, afirmou que está comprometido em preservar o patrimônio cultural do Afeganistão. Mas disse que turistas devem ser levados para outros locais.”
“Nós somos muçulmanos”, disse em entrevista Sarhadi, que afirma ter sido preso pelos Estados Unidos na Baía de Guantánamo. “Nós devemos seguir os desígnios de Deus.” Para ele, a ordem de destruir os budas foi uma “boa decisão”.
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Para arqueólogos, Bamian é um teste que determinará se o rico patrimônio cultural do Afeganistão, que também inclui sinagogas e artefatos hindus, é capaz de sobreviver ao retorno do Taleban. Mas que também poderia ajudar a responder uma questão maior: que tipo de governo o regime taleban quer ser desta vez? E em que medida o grupo mudou realmente desde 2001?
Esperança para uma região empobrecida?
Visitantes que entram na pequena capital provincial de Bamian, cercada de campos de batata aos pés das montanhas nevadas da cordilheira do Hindu Kush, deparam-se com uma placa que culpa o “grupo terrorista Taleban” pela destruição dos budas. A palavra “terrorista” está quase totalmente apagada.
As autoridades montaram um posto de venda de ingressos diante de onde ficava a maior das estátuas, onde cobram de afegãos US$ 0,58 e de estrangeiros US$ 3,45 a visita. Guardas armados estavam sentados ao lado de uma barraquinha de sorvetes nas proximidades. Havia poucos clientes.
O principal hotel daqui é cercado de arame farpado, mas candelabros de ouro reluzem sobre as bandeiras do Japão, da Austrália e do Taleban. Painéis pintados nas paredes retratam os budas antes de sua destruição. As autoridades taleban planejam instalar um novo mercado de souvenires próximo de lá, segundo o diretor de informação e cultura do governo provincial, Saifurrahman Mohammadi.
Com 26 anos, Mohammadi é jovem demais para se lembrar da destruição do monumento. Ele diz que é hora de o mundo esquecer esse assunto. “Estamos falando de algo que ocorreu décadas atrás”, afirmou ele.
Um mapa que marca os locais considerados patrimônio da humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura decora o prédio de escritórios em que Mohammadi trabalha. Desde 2003, a Unesco classifica os budas destruídos, uma cidadela fortificada e outras escavações em Bamian como locais históricos em risco.
No ano passado, afirmou Mohammadi, 200 mil turistas, afegãos em sua maioria, visitaram a província, gastando em média US$ 57. Com esforços adicionais para promover e revitalizar a região, acrescentou ele, o turismo “poderia se tornar uma fonte significativa de renda”.
Em um dos países menos desenvolvidos do planeta, Bamian é há muito tempo uma de suas regiões mais pobres. A população tenta garantir o sustento minerando carvão e com agricultura de subsistência. “Esses sítios arqueológicos poderiam melhorar a vida das pessoas daqui massivamente”, afirmou Mohammadi.
Mas as pessoas estão céticas. Pouca gente perdoou as atrocidades que grupos de defesa de direitos humanos afirmam que o Taleban cometeu entre 1996 e 2001 contra a população local predominantemente xiita, da minoria étnica Hazaras, que é relativamente progressista e escolarizada, mas empobrecida, e permanece crítica às políticas do Taleban atualmente.
Conforme a economia afegã continua a se deteriorar, com imposições de sanções internacionais e cortes na ajuda humanitária limitando a entrada de dinheiro no país, as pessoas daqui parecem ter pouco o que celebrar.
Duas irmãs adolescentes que trabalham em uma loja de souvenir mal iluminada em Bamian afirmaram que a rua costumava fervilhar de turistas, que compravam coloridos vestidos afegãos e tapetes tecidos a mão com imagens dos budas. Mas desde que o Taleban retornou ao poder, afirmaram elas, o movimento caiu 50%.
“A loja não vai sobreviver se as coisas continuarem como estão”, afirmou uma das irmãs, que falou sob condição de anonimato por temer represálias. Ela contou que, no dia anterior, autoridades taleban inspecionaram o colégio particular onde ela estuda. Ao encontrar meninas e meninos na mesma classe, os taleban suspenderam as aulas pelo restante do dia. A menina falou que ficou com medo demais de retornar naquela manhã. “Estou apavorada”, disse ela. “Não há futuro por aqui.”
Hoje em dia os budas de Bamian atraem principalmente dois tipos muito diferentes de visitantes: soldados taleban estacionados nas proximidades que se admiram com a beleza dos buracos esvaziados nos desfiladeiros; e afegãos urbanos escolarizados furiosos com o Taleban por destruir as esculturas — e as vidas que eles construíram nos 20 anos em que o grupo ficou afastado do poder.
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Conforme turistas visitavam o local em um dia recente de primavera (Hemisfério Norte), alguns reclamavam a uma distância que os guardas podiam ouvir. “O Taleban tem uma mentalidade de 500 anos atrás”, afirmou um iraniano de 27 anos. “Ele são mentalmente incapazes de fazer uso deste lugar.”
O afegão Sayed, de 22 anos, afirmou que tinha passado o dia inteiro dirigindo para chegar a Bamian, curioso para aprender a respeito da história de seu país anterior à ascensão do Islã como religião dominante. É impossível confiar no Taleban para preservar este lugar, afirmou ele. “Eles são profissionais em destruir coisas”, afirmou ele, “não em reconstruir”.
‘Patrimônio do mundo inteiro’
Ainda que uma série de organizações e especialistas se preocupe com Bamian, pouco trabalho arqueológico foi feito por aqui desde que o retorno do Taleban ao poder, em agosto de 2021, fez governos e doadores estrangeiros congelarem sua ajuda e retirarem seus arqueólogos.
Mohammadi afirmou que o governo acionou guardas e instalou portões para proteger Bamian, mas não consegue financiar trabalhos mais extensivos. Os grupos que partiram, afirmou ele, serão bem recebidos se retornarem e retomarem seus projetos. “Nós pedimos sua volta não apenas em nome do governo, mas também em nome da humanidade”, afirmou ele. “Esse patrimônio é de todo o planeta.”
Mas muitas organizações não governamentais e doadores afirmam que seria imoral voltar para o Afeganistão enquanto o Taleban intensifica restrições sobre as mulheres.
Separadamente, mesmo antes do retorno do Taleban, estrangeiros discordavam a respeito do que fazer com os budas. Alguns eram favoráveis à reconstrução; outros queriam preservar os resquícios atuais.
Hoje, o sítio arqueológico dos budas de Bamian é coordenado por um amplo, mas esvaziado, centro cultural e museu construído durante a ausência do Taleban. As autoridades taleban permitiram que uma equipe do Washington Post visitasse o local. Portas vedadas levam a salões de armazenamento onde artefatos, visíveis através de fendas, parecem intactos.
A Unesco, que capitaneou a iniciativa de construção do centro, afirmou que sua inauguração “foi postergada indefinidamente” como resultado do “contexto político”. Ainda que os artefatos mantidos no centro aparentem estar seguros, afirmou a Unesco, a entidade permanece “profundamente preocupada a respeito da conservação do sítio arqueológico de Bamian” após saques e escavações ilegais ocorridos em 2021.
Mas em um sinal de que alguns arqueólogos internacionais poderiam por fim retornar, a Unesco retomou um projeto com 100 trabalhadores locais para conservar trilhas e desenvolver trabalhos de conservação em Bamian.
Philippe Marquis, que lidera uma delegação de arqueólogos franceses com foco no Afeganistão, afirmou que se preocupa mais com outros sítios arqueológicos menos afamados. Examinando imagens de satélite do norte do Afeganistão, afirmou ele, sua delegação localizou recentemente sinais de escavações em larga escala. Eles temem que sejam sinais de que afegãos desesperados economicamente possam estar tentando vender artefatos.
Azizi, o vice-ministro da Cultura, negou veementemente qualquer envolvimento do governo. Ele afirmou que as autoridades estão comprometidas em processar judicialmente os saqueadores.
Marquis disse que os taleban “entenderam que destruir sítios arqueológicos ou prédios históricos não lhes renderá apoio”. “Mas é fato que lhes falta capacidade e conhecimento. E eles são os primeiros em reconhecê-lo.”
Atrair turistas estrangeiros será um desafio. A empresa de turismo de Marc Leaderman, no Reino Unido, organizava excursões a Bamian antes do retorno do Taleban. Agora, afirmou ele, ninguém se interessa em voltar lá, nem o operador nem seus clientes. O Afeganistão ainda tem “muitíssimo a oferecer”, afirmou Leaderman, mas com o Taleban de volta ao poder, “neste momento não há muita alegria no país”.
Nem todos concordam. Numa tarde recente, um grupo de autoridades do governo — algumas do Taleban e outras remanescentes do governo apoiado pelos EUA que o grupo depôs — desfrutava de uma excursão a Band-e-Amir, um parque nacional próximo a Bamian que possui lagos azuis e pedalinhos para aluguel. “Estamos impressionados”, afirmou o ex-combatente taleban Mohammad Younus Mukhles, de 30 anos, que tomava chá e dava risada com amigos em um pedalinho. “É muito seguro.”/ TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL
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