Falta de financiamento enfraquece plano americano para reabilitar uma força de segurança palestina

Um centro de treinamento na Cisjordânia é considerado essencial para os planos de Washington de fortalecer a Autoridade Palestina e torná-la capaz de estabilizar Gaza após a guerra; mas forças de segurança enfrentam diversos desafios

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Por Miriam Berger, Sufian Taha, Heidi Levine e Loveday Morris
Atualização:

JERICÓ, CISJORDÂNIA — Em um centro de treinamento financiado pelos Estados Unidos entre as colinas desérticas de Jericó, a próxima geração de forças de segurança da Autoridade Palestina preparava suas armas para uma missão.

O objetivo: deter dois “infratores da lei” que se refugiaram em um restaurante. O local: uma coleção de trailers de metal imitando um bairro palestino. O equipamento: máscaras, armas de plástico e munição de paintball.

Os recrutas se posicionaram metodicamente, aproximando-se e detendo os alvos sem disparar um só tiro.

O presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, e seu antecessor, o falecido líder palestino Yasser Arafat, são retratados juntos em um mural no centro de treinamento. Foto: Heidi Levine / The Washington Post

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O diretor do treinamento, um coronel, observava orgulhoso. Ele falou sob condição de ser identificado apenas pela patente para poder comentar assuntos sigilosos.

“Como vê, somos bem profissionais aqui”, disse ele à reportagem no mês passado no Instituto Central de Treinamento da Autoridade Palestina. “Estamos nos esforçando muito.”

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A reportagem teve acesso privilegiado ao centro de treinamento, observando de perto os desafios enfrentados pelas forças de segurança palestinas, que Washington considera centrais para seus planos de fortalecer a Autoridade Palestina e torná-la capaz de estabilizar Gaza após a guerra. Apesar de duas décadas de reformas, as forças de segurança seguem cronicamente mal financiadas e extremamente impopulares, mal equipadas para arcar com as imensas responsabilidades que seus apoiadores ocidentais têm em mente.

“Enquanto buscamos a paz, Gaza e Cisjordânia devem ser reunidas sob uma única estrutura de governo, preferencialmente sob uma Autoridade Palestina revitalizada”, escreveu o presidente Biden em artigo publicado no Washington Post em novembro. Nos meses transcorridos desde então, enviados dos EUA circularam entre Ramallah, Tel Aviv e capitais árabes, tentando tornar a visão do presidente uma realidade.

Mas a Autoridade Palestina e suas forças de segurança já enfrentam dificuldades para manter a ordem na Cisjordânia. Encurralada pela ocupação israelense, a força opera em um território cada vez menor. Seus membros estão sujeitos às mesmas restrições israelenses que os demais palestinos, e ao mesmo tempo são vistos por muitos em suas comunidades como opressores terceirizados de Israel.

As forças de segurança palestinas não podem intervir para deter a violência dos colonos nem operações militares israelenses. E não são bem-vindas em algumas cidades e vilarejos palestinos, onde grupos militantes se tornaram a autoridade local.

Hoje, esses agentes não podem nem sequer contar com o pagamento no fim do mês.

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A Autoridade Palestina pagou a seus funcionários menos da metade do salário devido desde 7 de outubro, por causa de um impasse envolvendo questões fiscais com Israel. De acordo com o coronel, nos doze meses mais recentes, o centro não recebeu munição real para treinamentos, porque as autoridades israelenses recusaram os pedidos de importação. Grupos selecionados são enviados à Jordânia para treinar com armamento real.

Exercício de treinamento em Jericho.  Foto: Heidi Levine / The Washington Post

Autoridades palestinas e ocidentais disseram que grandes esforços seriam necessários para expandir e treinar forças de segurança na escala necessária para Gaza, e para obter a aceitação política do governo israelense, que se opõe abertamente ao plano.

O apoio às forças de segurança palestinas por meio do departamento de estado exigiria um novo mandato, de acordo com um diplomata ocidental que falou sob condição de anonimato para poder comentar assuntos sigilosos.

“A AP não está pronta para chegar a Gaza, e nem estará pronta tão cedo”, disse o diplomata. “Eles não têm pessoal para tanto, nem disposição, e nem conhecem Gaza tão bem.”

‘Meu dever’

O coronel, de 45 anos, é de uma família de refugiados palestinos. Nascido no exílio no Líbano, ele voltou com a família para a Cisjordânia depois dos acordos de paz de Oslo de meados dos anos 1990, promovidos por Washington, que incumbiu a Autoridade Palestina da responsabilidade de governar um futuro estado palestino. Pelo acordo, essa autoridade teria direito a uma força de segurança limitada em lugar de um exército.

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O coronel dedicou a carreira ao serviço do estado palestino não reconhecido e à tentativa de melhorar suas forças de segurança. “Este é o meu país”, disse ele. “É meu dever.”

Depois que a Autoridade Palestina foi expulsa de Gaza em 2007, seus defensores ocidentais investiram pesado na reforma de suas unidades inchadas e desconexas, transformando-as em uma força disciplinada realmente capaz de coordenar a segurança com Israel. Com o passar dos anos, conforme as esperanças de uma solução de dois estados foram se perdendo, muitos palestinos passaram a ver a força como braço da ocupação israelense, ou como uma milícia privada que respondia às lideranças de Ramallah, cada vez mais autoritárias.

Desde o início, essas lideranças e seus defensores americanos estiveram preocupados com “a funcionalidade e efetividade das forças de segurança em conter confrontos ou resistência” à Autoridade Palestina, e não com sua legitimidade pública, disse Alaa Tartir, pesquisador sênior do Stockholm International Peace Research Institute.

Cadetes com armas de paintball participam de uma simulação de prisão de "infratores da lei" do lado de fora de trailers metálicos simulando um bairro. Foto: Heidi Levine / The Washington Post

Mas “tudo isso não se destina à segurança do povo palestino”, disse ele. “E aí está a ironia. … A sua reforma teve como objetivo oferecer estabilidade, coordenação e segurança para os israelenses, antes de mais nada.”

Agora formada por 35.500 membros, a força se vê muitas vezes em oposição aberta à comunidade a quem deveria servir. Os agentes reprimiram protestos palestinos contra a guerra em Gaza. Prenderam supostos membros do Hamas e críticos da Autoridade Palestina. Quando forças israelenses fazem operações em cidades e vilarejos palestinos, as forças de segurança palestinas são instruídas a não sair.

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“Se eu deixar meu posto, será o caos”, disse o coronel. “Independentemente dos desafios que eu enfrentar.”

O centro de treinamento de Jericó foi inaugurado em 1994, com uma instalação irmã em Gaza, disse o coronel. Sua sede atual, uma dentre cerca de 10 instalações de treinamento, foi erguida em 2008, nos primeiros dias dos esforços americanos para reconstruir, treinar e financiar a força.

Em 2005, Washington e sete países aliados criaram a Coordenação de Segurança dos Estados Unidos (USSC) para Israel e a Autoridade Palestina. Inicialmente, a USSC financiou os programas de treinamento palestinos em academias militares jordanianas, longe da pressão da política local; com o tempo, mais programas foram transferidos para a Cisjordânia.

O departamento de estado, que fala em nome da USSC, não quis comentar os planos de treinamento de Washington.

Os diferentes ramos das FSP, entre eles as Forças Nacionais de Segurança, a Guarda Presidencial, a Segurança Preventiva e os Serviços Gerais de Inteligência, respondem ao presidente da Autoridade Palestina, Mahmoud Abbas, 88 anos. A última eleição foi realizada em 2006.

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No dia 26 de fevereiro, ele aceitou a renúncia do primeiro-ministro palestino e de todo o seu gabinete, o primeiro passo em uma reforma mais ampla defendida por Washington e pelos países árabes, mas há ceticismo em relação a quanto de seu poder Abbas estaria disposto a ceder.

O Instituto de Treinamento Central em Jericho, Cisjordânia. Foto: Heidi Levine for The Washington Post

Abbas e seu antecessor, o líder palestino Yasser Arafat, são retratados juntos em um mural que dá para o centro de treinamento. Em uma manhã recente, um novo conjunto de recrutas da polícia alfandegária marcharam quase em sincronia. Eles usavam o mesmo uniforme, mas diferentes meias e calçados.

“Ansiamos pela escuridão”, entoavam eles, versos do poeta sírio Najib al-Rayyes. “Não vai demorar até que a noite seja sobrepujada pelo glorioso alvorecer.”

Dentro, alguns estudantes se dedicam ao inglês e ao hebraico. Outros participam de palestras sobre procedimentos criminais palestinos e simulações coordenando a resposta das diferentes agências a emergências. Desde 7 de outubro, treinamentos liderados por estrangeiros sobre temas como direitos de gênero e pilotagem em operações de alto risco foram pausados, de acordo com o coronel.

O centro pode abrigar até 900 recrutas por vez. Planos financiados por estrangeiros para expandir essa capacidade estão em andamento, disse ele, mas sofreram atrasos.

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Em uma estrada batida pelo vento, a galeria de tiro do centro, com 13 mil metros quadrados, está sem atividade desde fevereiro de 2023. O coronel disse que 400.000 balas destinadas ao treinamento estão na Jordânia aguardando liberação israelense.

A COGAT, agência do exército israelense encarregada dos territórios palestinos, não respondeu aos pedidos de comentário.

“Como posso manter a segurança sem oficiais bem treinados?” disse outro coronel responsável pela galeria de tiro, que também falou sob condição de ser identificado apenas pela patente. “Como ele pode atirar com precisão em campo e manusear as armas sem medo?”

Depois de receberem mais de um bilhão de dólares em financiamento estrangeiro, as forças de segurança palestinas estão “completamente diferentes” do que foram sob Arafat, disse Ghaith al-Omari, pesquisador sênior do centro de estudos estratégicos Washington Institute e ex-conselheiro da equipe palestina de negociação.

“O problema está na politização da liderança das forças de segurança”, prosseguiu ele. “A posição da AP é tão ruim agora que é difícil ver como elas podem fazer seu trabalho.”

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‘Um grande desafio’

De seu escritório em Ramallah, o porta-voz dos serviços de segurança palestinos, Talal Dweikat, reconheceu que o público confia pouco nas FSP. Mas, de acordo com ele, trata-se de um problema sistêmico.

Instituto de Treinamento Central em Jericho, Cisjordânia. Foto: Heidi Levine for The Washington Post

“Quando estou em uma cidade com minhas forças de segurança e o exército israelense chega em plena luz do dia, entrando em Jenin, Nablus, Ramallah e Hebron, isso não enfraquece nossa autoridade? Isso não amplia o fosso entre nossas forças e a população?”

Desde o mortífero ataque do Hamas contra o sul de Israel no dia 7 de outubro, forças israelenses e colonos já mataram mais de 400 palestinos na Cisjordânia e em Jerusalém Oriental, de acordo com as Nações Unidas, muitos deles atacados em operações contra grupos militantes que se enraizaram nos campos de refugiados do território.

A frágil economia da Cisjordânia está à beira do colapso.

Israel reteve a receita fiscal coletada mensalmente em nome da Autoridade Palestina, que costuma mandar cerca de metade dos recursos para Gaza, controlada pelo Hamas, para pagar por salários e serviços. O sitiado governo em Ramallah já está há dois anos sem pagar os salários integralmente, disse Dweikat. Nos primeiros três meses da guerra, os pagamentos foram reduzidos ainda mais.

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“É um grande desafio que limita nossa capacidade de recrutar pessoal”, disse ele, acrescentando que os supervisores passaram a ignorar os casos de funcionários que têm outros empregos.

“Se a situação está ruim agora, imagine adicionar mais 10 mil nomes à folha de pagamento”, disse o diplomata ocidental.

De sua parte, a liderança palestina rejeitou assumir qualquer papel em Gaza que não esteja diretamente ligado ao estabelecimento de um estado palestino. No mês passado, o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, apresentou um plano para o pós-guerra prevendo o controle militar israelense sobre o enclave por tempo indefinido.

Com o incentivo dos EUA, autoridades palestinas recuperaram as listas de nomes de seus antigos agentes de segurança em Gaza, 17 anos depois de o Hamas ter expulsado violentamente a AP do enclave. De um total de 26.000 nomes, apenas 2.000 a 3.000 estariam em condições de assumir o trabalho. Não se sabe quantos desses ainda estão vivos.

O coronel disse que suas forças estavam prontas para treinar para Gaza, mas em seus próprios termos.

“Se eu tivesse equipamento, acordos, decisões políticas, logística, então podemos conversar”, disse ele. “Se recebermos ordens do presidente palestino, nós obedeceremos. Será que isso vai acontecer?” Ele riu. “Ninguém pode responder, nem mesmo Biden.” / TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

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