Famílias russas se frustram ao buscar por soldados desaparecidos na guerra da Ucrânia

Sem um sistema oficial organizado, parentes buscam seus entes queridos por conta própria, em necrotérios, grupos na internet e até na linha de frente do conflito

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Por Neil MacFarquhar e Alina Lobzina

THE NEW YORK TIMES - Durante os seis dias que passou folheando fotos de soldados mortos no principal necrotério militar da Rússia, Irina Chistyakova tentou não olhar diretamente para os cadáveres desfigurados. Se o rosto estivesse carbonizado a ponto de não ser reconhecido, ela se concentrava em tentar descobrir se os dentes se assemelhavam aos de seu filho Kirill, um soldado que a contatou pela última vez de dentro da Ucrânia, no final de março. No total, ela viu cerca de 500 fotografias.

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Chistyakova está entre as centenas de russos envolvidos em um esforço para encontrar filhos, maridos, irmãos e outros entes queridos desaparecidos lutando pela Rússia na Ucrânia, um papel que lhes coube porque o Ministério da Defesa está despreparado para a tarefa, segundo defensores dos direitos humanos do país.

Os números são impressionantes. O Pentágono estimou que entre 70 mil a 80 mil soldados russos foram mortos ou feridos, e muitos ainda estão desaparecidos. Mas o destino destes últimos continua sendo um mistério para muitos de seus entes queridos, que dizem que o sistema para encontrar soldados desaparecidos é tão desorganizado quanto o esforço militar da Rússia, que foi marcado por problemas desde o início da guerra, em fevereiro.

Famílias russas sofrem para buscar entes queridos que foram lutar na Ucrânia; em Donetsk foram realizados diversos bombardeios  Foto: Finbarr O’Reilly/The New York Times

“No telefone, eles nos dizem que está tudo bem, que estão procurando, e escrevem exatamente a mesma coisa em suas respostas formais e escritas”, disse Chistyakova, de 44 anos.

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Quando ela viajou para a cidade de Rostov, no Sudeste do país, para ver as fotos dos mortos, identificou dois homens dados como desaparecidos da unidade de infantaria de seu filho. “Como podem ainda estar procurando, se eu fui ao necrotério e encontrei dois dos soldados lá? Essa é a questão.”

Em sua busca por respostas, parentes tentam encontrar informações em todos os lugares, inclusive ligando várias vezes para uma linha direta especial do Ministério da Defesa. Eles apelam para as autoridades das províncias, contatam comandantes militares ou outros soldados, visitam hospitais e necrotérios e passam incontáveis horas digitalizando vídeos de soldados capturados, além de buscar pistas em grupos de bate-papo online.

Falta de repostas

A maioria sai frustrada, e sem respostas. “Conseguir informações sobre soldados russos que estão na guerra, que foram feitos prisioneiros ou que morreram é um problema desde o início do conflito”, disse Sergei Krivenko, diretor de um grupo de direitos humanos que presta assistência jurídica a soldados no país. “Ninguém no Ministério da Defesa esperava tal escala e simplesmente não criaram os serviços apropriados.”

Até agora, a Rússia só anunciou o número de baixas duas vezes, no fim de março e em setembro, quando o ministro da Defesa, Sergei Shoigu, disse que quase 6 mil soldados morreram. As estimativas do Ocidente, no entanto, são muito maiores. Não há dados públicos do governo russo sobre os desaparecidos: as tropas muitas vezes deixam os cadáveres abandonados na beira da estrada enquanto se retiram.

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Na Ucrânia, cenário diferente

A Ucrânia também está lidando com soldados desaparecidos, mas a resposta do país tem sido muito diferente. Equipes de busca conjuntas formadas por militares e civis foram criadas em sete áreas de conflito, de acordo com Oleh Kotenko, alto funcionário ucraniano nomeado para organizar o esforço para rastrear pessoas desaparecidas. Mais de 4 mil pessoas estão listadas como soldados desaparecidos, afirmou Kotenko a jornalistas na semana passada. Ele estima que até 15% dos desaparecidos são civis.

Soldados ucranianos na linha de frente de Mikolaiv Foto: Finbarr O’Reilly/The New York Times

Na Rússia, a ausência de qualquer sistema oficial levou os pais a se organizarem por conta própria. Inúmeras salas de bate-papo surgiram — muitas vezes focadas em soldados de uma determinada região ou de unidades específicas.

Embora as salas funcionem como uma espécie de grupo de apoio, também servem para mensagens de frustração, amargura e desconfiança. Abundam as suspeitas de que alguns participantes sejam espiões ucranianos que procuram explorar informações sobre soldados.

Chistyakova, mãe de Kirill, vê a guerra como uma batalha existencial com o Ocidente, ecoando a narrativa promovida pelo Kremlin, mas não acha que a Rússia ou a Ucrânia precisassem passar por isso.

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Ela passou cinco meses lutando contra a burocracia militar, inclusive tendo que apresentar uma carta ao Kremlin pedindo respostas, assinadas por parentes de mais de 100 desaparecidos. Chistyakova então decidiu procurar por si mesma. Viajou para o necrotério em Rostov, e chegou pouco antes de 26 de agosto, aniversário de 20 anos de seu filho.

O extenso necrotério fica dentro de uma série de armazéns, atrás de um hospital militar. Uniformes esfarrapados e ensanguentados estão espalhados pelo local e um cheiro terrível paira no ar, segundo ela.

Os parentes podem ver fotos dos corpos em vários computadores do escritório. Um psicólogo militar fica pelas proximidades, oferecendo tranquilizantes. Um grupo de homens chechenos em busca de parentes ficou morando perto do necrotério, dentro de seus carros, por várias semanas.

Chistyakova disse que havia encorajado outro homem, relutante em entrar, a olhar as fotos. Ele encontrou o filho dele.

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Com sua própria pesquisa, ela descobriu que 32 soldados do pelotão de seu filho foram mortos, quatro estão desaparecidos e quatro permanecem vivos. Chistyakova até enfrentou a travessia para a zona de guerra, rumo a Donetsk, no Leste da Ucrânia, onde uma mãe encontrou seu filho no necrotério.

Em Rostov, conseguiu identificar um soldado porque ele tinha uma tatuagem incomum de garra de urso na mão direita. Seu corpo chegou ao necrotério em 3 de junho, mais de dois meses antes de ser encontrado por ela. Ninguém estava buscando por ele ativamente, porque seus pais estavam mortos. Então ela ligou para a madrasta para contar.

Depois do primeiro dia de buscas, Chistyakova se sentou no chão de uma calçada escura na cidade, chorando e rezando. Seu filho ainda está desaparecido e agora ela avalia se deve voltar para o necrotério. “Nós não damos a mínima para a política. Se eles foram mortos, apenas devolvam seus corpos.”

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