Uma complexa cadeia de eventos pode se desencadear no futuro próximo, alterando profundamente a região mais conhecida como Oriente Médio, ou Ásia Ocidental. Na noite da última terça-feira, no horário local, o Irã disparou cerca de duzentos mísseis contra Israel. O governo iraniano afirmou ser uma retaliação pelos assassinatos de Hasan Nasrallah, ex-líder do Hezbollah, e de Ismail Haniyeh, ex-líder político do Hamas. O governo israelense prometeu retaliar o ataque, possivelmente fazendo com que a guerra entre os dois países deixe de ser indireta e se torne um conflito generalizado.
Pouco mais de um mês atrás, comentamos aqui na coluna que uma retaliação pelo assassinato de Ismail Haniyeh era certa, mas que uma disputa interna ao Estado iraniano deixava incerta a intensidade desse ataque. De um lado, a Guarda Revolucionária Islâmica, desejosa de um conflito generalizado para desviar o foco dos problemas sociais e políticos do país. Do outro lado, o novo governo de Masoud Pezeshkian, eleito em uma plataforma moderada e de aproximação com o chamado Ocidente. Na primeira vez que o Irã atacou o território israelense, em abril, foi adotada uma tática de um ataque limitado.
O ataque do último dia primeiro, embora relativamente pequeno, aparentemente utilizou armamento de maior tecnologia, incluindo mísseis hipersônicos, com imagens mostrando que mísseis conseguiram furar as defesas israelenses e atingir o solo. É impossível saber nesse momento quais foram os danos, dada a forte censura militar existente em Israel. Meios de comunicação ocidentais, entretanto, falam em disparos contra alvos militares como a sede do Mossad, o serviço de inteligência externo de Israel, e uma das principais bases aéreas do país, localizada ao sul, no deserto do Negev.
Além de um ataque mais refinado, o governo iraniano afirmou que essa seria a “primeira onda” de ataques. Esses são sinais preocupantes, diferentes do ocorrido em abril, quando o Irã deixou claro que tratava-se apenas de demonstração de força. O fato é que o Irã está em uma encruzilhada. Não pode deixar de agir de alguma maneira, sob os riscos de parecer fraco perante os assassinatos de seus aliados e de parecer que não pode socorrer esses mesmos aliados, além de precisar dar satisfações ao público interno. Ao mesmo tempo, o governo iraniano sabe que um ataque generalizado ou com uso excessivo da força pode gerar uma resposta conjunta de Israel e dos EUA, que o Irã não teria como rechaçar.
O governo dos EUA já declarou que apoiará uma retaliação de Israel e que o país estaria se defendendo. O recente discurso de Netanyahu na ONU, como comentado aqui na coluna, foi em maior parte direcionado ao Irã. É possível um ataque aéreo israelense contra instalações nucleares ou petrolíferas iranianas, de importância estratégica. O ex-premiê Naftali Bennett defendeu que Israel use essa oportunidade para destruir completamente o que chamou de “ameaça iraniana”, a “cabeça” do “polvo” que ameaça Israel, que já teria imobilizado seus tentáculos, o Hamas e o Hezbollah.
É perfeitamente plausível que o governo israelense determine algum curso de ação baseado em mentalidade similar. Netanyahu afirmou que o Irã “pagará o preço”. O primeiro-ministro israelense vende a ideia de que se trata de uma luta do “bem contra o mal”, da “luz contra a escuridão”. O faz pois é conveniente para ele e trata-se de um discurso sedutor, especialmente dentre algumas vertentes do cristianismo. Essa ideia, entretanto, acaba nublando os inúmeros interesses na região, onde os atos armados podem desencadear complexas cadeias de eventos.
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Atacar a capacidade petrolífera do Irã, por exemplo, parece ser um alvo óbvio, mas colocaria Israel e China em rota de colisão, já que o gigante asiático é o principal comprador de petróleo iraniano. A hostilidade com Israel pode aproximar Irã e Turquia, dois rivais regionais e históricos, mas ambos atualmente com posições antagônicas aos israelenses. A Índia é um país com relações próximas com ambos os países. Mesmo as bobagens de “guerra cultural” não se aplicam à realidade concreta da região. A cristã Armênia precisa do apoio do vizinho islâmico Irã para conter outro vizinho islâmico, o Azerbaijão, aliado de Israel.
A postura da Rússia pode ser decisiva. O país compra vastas quantidades de munições e drones iranianos para sua guerra contra a Ucrânia. Uma escalada entre Irã e Israel não é do interesse russo, já que poderia comprometer esse suprimento, que precisaria ser utilizado pelos iranianos. Ao mesmo tempo, uma escalada poderia significar o comprometimento das capacidades de defesa antiaérea de Israel, algo conveniente para a Rússia, pois tais defesas precisariam ser substituídas pelos EUA, direcionando material de guerra que poderia ir para a Ucrânia. A queda do regime religioso iraniano, entretanto, seria um baque inaceitável para Moscou, que já solicitou que Israel se retire do Líbano e provavelmente veria um ataque israelense contra instalações nucleares iranianas como uma linha cruzada.
Tudo isso sem mencionar os países árabes, com crises que poderiam se aprofundar e se transformar em guerras civis deflagradas, como no Iraque ou no Líbano. Os houthis iemenitas, apoiados pelo Irã, ao atacar navios rumo ao canal de Suez, afetam todo o comércio mundial e prejudicam a economia egípcia. Os sauditas condenaram a violação da soberania libanesa, que há muito é quase ficção. Esses são alguns exemplos de relações que costumam fugir do imaginário popular quando se fala desse tema. As peças de dominó estão todas enfileiradas, resta saber se alguma vai desencadear o processo de derrubada.
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