Joe Biden oficialmente abandonou sua candidatura presidencial nos EUA. O anúncio foi feito neste domingo, dia 21 de julho, via um documento escrito publicado nas redes sociais do atual presidente dos EUA. Documento publicado com seu timbre pessoal, sem timbre ou formatação da Casa Branca ou do partido Democrata. O anúncio, especulado e até esperado, abre uma corrida totalmente diferente para o Salão Oval.
Frisar a maneira como o anúncio foi feito é importante e já se tornou parte do discurso republicano. Joe Biden não apareceu em um pronunciamento. No jargão popular brasileiro, não “deu a cara à tapa”. Mesmo isolado por ordem médica devido à covid-19, ele poderia gravar um discurso em um ambiente devidamente controlado. Um mero documento escrito poderia ser suficiente em 1930, não em 2024 e com as redes sociais.
Donald Trump afirma que Biden “nunca teve capacidade de ser presidente”, insere o médico de Biden em um rol de “mentirosos” e que Biden nunca sai “do porão”, termo que ele usa para quando Biden fica longe dos holofotes, especialmente após suas gafes de memória. Mike Johnson, republicano presidente da Câmara e conhecido como “MAGA Mike”, foi além e disse que os democratas forçaram a saída de Biden da corrida, daí sua ausência.
Seu discurso relaciona que os democratas teriam “invalidado” os milhões de votos nas primárias e o partido seria uma ameaça à democracia, em um modus operandi similar ao discurso sobre os emails democratas na última eleição. Também disse que, se Biden não está apto para concorrer à presidência, ele deveria renunciar agora. Claro, é só discurso, mas poderia ser evitado se Biden tivesse aberto mão da candidatura em um pronunciamento.
Isso não quer dizer que a situação republicana agora está tranquila. São cem dias de campanha ainda, um período mais longo do que as campanhas em alguns países, como na recente eleição no Reino Unido. Além de ser uma nova corrida, cheia de incógnitas, flancos também foram abertos na campanha republicana. Por exemplo, o argumento da idade avançada agora foi invertido, para ônus de Trump.
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A maior incógnita provavelmente será sobre o vasto tesouro de campanha de Biden, o mais recheado da História. Não há consenso entre juristas dos EUA sobre esse dinheiro. Para alguns, ele precisa ser devolvido aos doadores. Para outros, ele poderia ser utilizado por Kamala Harris, registrada como candidata à vice-presidente. Caso ela se torne cabeça de chapa, talvez possa usar o dinheiro, mas pode haver judicialização por parte dos republicanos.
Os grandes doadores de campanha, inclusive, foram chave para esse movimento de desistência de Biden, embasbacados pela aparente fragilidade física e mental do presidente, especialmente após o desastre do mais recente debate televisionado. Levando esse aspecto financeiro em conta, Kamala Harris sai na frente em busca da nomeação democrata. Na verdade, tudo se desenha para isso, e a nomeação será pelo comitê, sem primárias.
Ela terá apoio do atual governador da Califórnia, Gavin Newsom, que era também um presidenciável, sendo Kamala também da Califórnia. Uma campanha de Kamala provavelmente será centrada na ideia de que ela é uma agente da lei contra um Trump condenado criminalmente. Curiosamente, esse foco na pauta de “lei e ordem” é que pode afastar uma demografia importante de votar nela.
Como procuradora-geral da Califórnia por oito anos, ela teve posturas agressivas que desagradaram os setores mais progressistas do direito penal, como buscar mais e maiores condenações, diminuir o acesso à liberdade condicional e a defesa da constitucionalidade da pena de morte, enquanto abrandava essa posição se declarando pessoalmente contra a pena capital. Inclusive, quem doou para a campanha dela em 2014? Trump e sua filha.
Essa postura “lei e ordem” não vai atrair o eleitorado conservador, fixado em Trump, mas potencialmente alienar o eleitorado jovem e não-branco, a demografia que decidiu a última eleição em favor de Biden. É essencial ter em mente que as duas pessoas mais votadas da História dos EUA foram Biden e Trump em 2020. Em um país onde o voto é facultativo, isso é essencial e é razoável duvidar da capacidade de Kamala de atrair as pessoas para as urnas.
Ainda precisamos aguardar as primeiras pesquisas, especialmente nos chamados swing states, os Estados-pêndulo, sem partido definido, que por vezes votam em democratas e outras em republicanos. O fato é que os democratas precisavam ter feito esse planejamento antes. E isso era óbvio, algo observado por esse mesmo colunista anos atrás. Quando Biden se vendia como “candidato de transição”, apresentar Kamala como sua sucessora era o natural. Os democratas perderam três anos e precisam reparar o prejuízo em cem dias.
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