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Opinião|Como o agro ajuda a explicar a relação do Brasil com a Ucrânia?

O governo Lula é o segundo governo brasileiro que manteve uma postura de ‘neutralidade’ perante o conflito porque a produção agrícola brasileira precisa do comércio com a Rússia

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Foto do author Filipe Figueiredo

O que rege a postura do Brasil perante a guerra na Ucrânia é o interesse. Especificamente, o interesse econômico. Mais ainda, o interesse econômico da grande produção agrícola, o popular “agro”. É imprescindível não perder de vista o potencial impacto da guerra na economia brasileira, além dos diversos impactos já existentes na economia mundial, por mais que uma postura ética ou moral seja justificada.

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Recentemente, o presidente da Ucrânia, Volodimir Zelenski, concedeu entrevista ao apresentador de televisão brasileiro Luciano Huck. O apresentador viajou ao país europeu para a produção de um documentário, motivado, também, pelo fato de ser país de onde vieram três de seus quatro avós. A entrevista, assim como outras declarações de Zelenski, abordou a postura de neutralidade brasileira no conflito.

A Ucrânia foi invadida pela Rússia em fevereiro de 2022. Isso é um fato. Sob o prisma legal, a Ucrânia é vítima de uma guerra de agressão. Sim, é importante conhecer e debater outros aspectos desse conflito e, principalmente, dos últimos vinte anos de política externa russa, como a Doutrina Karaganov, dentre outros. Ainda assim, a Ucrânia foi invadida e, pelos padrões éticos, é com ela que deveria estar a simpatia dos países.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, participa de uma reunião em Brasília  Foto: Wilton Junior/Estadão

Especialmente, de acordo com Zelenski, a simpatia dos países democráticos. Na mesma entrevista ao apresentador, ele questiona que o Brasil estaria na companhia de um círculo de países, como Irã, China e Coreia do Norte, todos eles com governos não-democráticos segundo Zelenski, que basicamente emula a retórica de Joe Biden, de que se trata de uma situação moral e de um cenário de democracias versus autocracias.

O cenário de democracias versus autocracias é absolutamente falacioso e de conveniência, como sempre foi. O que não faltam são exemplos históricos de relações ou alianças entre países democráticos e países autoritários. Por exemplo, entre os EUA e a Turquia, país-membro da OTAN, ou a Arábia Saudita. O governo Biden recentemente retirou a suspensão simbólica da exportação de “armas ofensivas” aos sauditas, que havia sido imposta após o assassinato brutal do jornalista Jamal Khashoggi.

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Sauditas esses que Zelenski não cansa de cortejar, assim como outras monarquias árabes do Golfo. A União Europeia, ao mesmo tempo em que fala da valorização da democracia, assina um acordo bilionário com um dos governos mais autoritários do mundo, a ditadura do Azerbaijão, para a compra de hidrocarbonetos, com grande parcela de origem russa. É claro que a democracia é imprescindível e deve ser valorizada.

Não se trata de desacreditar a democracia, mas apontar a conveniência do argumento. O que aproxima os EUA, a UE ou qualquer Estado democrático de um Estado não-democrático, invariavelmente, é a mesma coisa: seu interesse. E esta é a explicação do porque o Brasil evitar pagar, literalmente, pelo julgamento moral sobre a guerra. O Brasil é o quarto maior consumidor global de fertilizantes, atrás apenas de China, Índia e Estados Unidos.

Desse enorme montante de fertilizantes, mais de 70% são importados, e o maior fornecedor de fertilizantes para o Brasil é a Rússia, segundo maior produtor e exportador do mundo. Sem a cooperação econômica entre Brasil e Rússia, o agronegócio brasileiro entra em parafuso. O mesmo “agro” que é tema de frequentes elogios pelo apresentador Luciano Huck e que garante uma balança comercial superavitária ao Brasil.

Independentemente da existência dos BRICS ou de qualquer outra cooperação, a produção agrícola brasileira precisa do comércio com a Rússia. Nota-se o fato de que o governo Lula é o segundo governo brasileiro que manteve uma postura de “neutralidade” perante o conflito, sequer trata-se de uma pauta partidária. O Brasil, claro, não é o único país cuja economia é afetada, ou potencialmente afetada pela guerra.

O presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, se encontra com o chanceler da Rússia, Sergei Lavrov, em Brasília  Foto: Ricardo Stuckert/Presidência da República

Um caso é o da Índia, a maior importadora de petróleo russo do mundo hoje, mais do que substituindo o papel europeu nesse comércio antes da guerra. Também integrante dos BRICS, depois de mais de dois anos de guerra, entretanto, Narendra Modi se encontrou com Zelenski em Kiev, depois de diversos encontros com Putin. As conversas, claro, não impedem o fluxo do petróleo.

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A postura indiana não é por uma posição moral, nem sacrifica seus interesses econômicos. O governo indiano apenas notou que, depois de anos, faria bem em balancear sua imagem externa e a posição de seu governo seria beneficiada por um encontro com Zelenski. Baseado nessas premissas, talvez o governo brasileiro possa olhar com certo apreço para a postura recente do governo indiano. Conversar nunca prejudicou ninguém.

Opinião por Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo é graduado em história pela USP, comentarista de política internacional e criador dos podcasts Xadrez Verbal e Fronteiras Invisíveis do Futebol, sobre política internacional e história

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