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Opinião | O inferno astral de Trudeau e a estranha obsessão de Trump em anexar o Canadá

O timing da renúncia permite colocar panos quentes e ‘congelar’ as crescentes tensões retóricas com o próximo presidente dos EUA

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Foto do author Filipe Figueiredo

Para surpresa de ninguém, Justin Trudeau, primeiro-ministro do Canadá, anunciou sua renúncia ao cargo e à liderança do Partido Liberal, de centro-esquerda. O anúncio era esperado há alguns meses, com crises políticas e baixo desempenho econômico de seu governo após a pandemia. Com o atual mandato durando até outubro, no máximo, Trudeau renunciou para que seu partido possa escolher uma nova liderança e melhorar suas chances no pleito vindouro.

Trudeau hoje não seria eleito síndico de prédio. De menino de ouro da política canadense, hoje sua reprovação passa dos 60% do eleitorado, independente da pesquisa escolhida. As pesquisas eleitorais indicam que o Partido Liberal não apenas perderia o próximo pleito por larga margem, mas poderia até mesmo deixar de ocupar a cadeira de oposição oficial, já que o Novo Partido Democrático, de esquerda, liderado por Jagmeet Singh, está se aproximando.

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No Modelo de Westminster, ou parlamentarismo inglês, adotado no Canadá, a posição de oposição oficial é importantíssima, pois permite confrontar diretamente o governo constituído. Quem ocupa essa função, cujo título completo é Lealíssima Oposição de Sua Majestade, é o maior partido que não seja integrante do governo, já que, nesse modelo, os mandatos são dos partidos, não dos indivíduos. Outros partidos menores, mesmo que da oposição, não possuem as mesmas prerrogativas que a oposição oficial.

Isso não é mero detalhe ou curiosidade para o leitor, é o termômetro da enorme crise e do pânico instalados no Partido Liberal. A chance de reverter a vantagem do Partido Conservador nas pesquisas é virtualmente nula, a corrida que restou aos liberais é a briga pelo segundo lugar, algo humilhante para um partido de mais de cento e cinquenta anos de História e que governou o Canadá pela maior parte do século 20 e do século 21. Em quarto lugar nas pesquisas, e crescendo, aparece o Bloco do Quebec, partido francófono.

O presidente Donald Trump e o primeiro-ministro canadense Justin Trudeau em Washington, em outubro de 2017. Foto: AP Photo/Carolyn Kaster, arquivo

Como mencionamos, o mandato é do partido, então, mesmo com a renúncia de Trudeau, os liberais continuam governando até o pleito. Esse é o milagre que buscam, que em apenas alguns meses o eventual novo governo reverta o cenário. Existem outras facetas da renúncia de Trudeau que precisam ser analisadas. Primeiro, alguns atores políticos canadenses já pedem por uma eleição antecipada, e que o parlamento poderia ser dissolvido o quanto antes, o que não necessariamente agrada aos liberais.

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A principal faceta, entretanto, é que o timing da renúncia de Trudeau também permite colocar panos quentes e “congelar” as crescentes tensões retóricas com Donald Trump, próximo presidente dos EUA. Trump, desde a campanha, tem falado em impor tarifas aos produtos canadenses, o que provavelmente geraria uma briga judicial, já que ambos os países, junto com o México, integram o USMCA, antigo Nafta. Nas últimas semanas a retórica trumpista aumentou e Trump tem falado até de uma “fusão” entre os dois países.

Seus apoiadores mais extremistas já chamam o Canadá de “51º Estado”. Isso provavelmente é bravata, mas, com maioria em ambas as casas do Congresso, pode-se esperar tudo de Trump. Canadá e EUA, embora possuam algumas semelhanças, são sociedades bastante distintas. Além disso, são dois países territorialmente enormes. Falar de uma “fusão” como algo simples, como se em um videogame, é pueril. Tal “fusão” atenderia basicamente apenas aos interesses dos EUA, principais consumidores dos recursos naturais canadenses.

Isso fica explícito na subordinação da expressão “51º Estado”, termo muitas vezes utilizado de forma pejorativa para se referir a países sob influência dos EUA. Trump disse que, “em troca” da tal “fusão”, o Canadá teria a proteção da maior força militar do mundo. Oras, o país já possui essa proteção, já que ambos são integrantes da Otan. Mais que isso, possuem diversas iniciativas conjuntas de defesa, como o Norad, Comando de Defesa Aérea da América do Norte, criado em 1958, durante a Guerra Fria.

Naquele momento, o monitoramento do Ártico, principal fronteira aeroespacial entre EUA e a URSS, tornava imperativa a cooperação com o Canadá. Quem provavelmente terá que lidar com Trump e sua retórica é Pierre Poilievre, líder dos conservadores, que está esfregando as mãos com a atual situação. Acusa Trudeau de “fraco” e diz que o Canadá jamais será um “51º Estado”. Disse que “retomaremos o controle do nosso Ártico para manter a Rússia e a China fora”, o que agrada seu eleitorado. E também aos ouvidos de Trump, obcecado com a China.

Opinião por Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo é graduado em história pela USP, comentarista de política internacional e criador dos podcasts Xadrez Verbal e Fronteiras Invisíveis do Futebol, sobre política internacional e história

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