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Opinião | Turquia e Israel saem na frente na corrida pelos espólios da queda de Bashar Assad na Síria

Ganhadores e perdedores da queda da ditadura são, por enquanto e em maioria, as forças estrangeiras interessadas no território

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Foto do author Filipe Figueiredo
Atualização:

Depois de mais de meio século, a família Assad não manda mais na Síria. O ex-ditador Bashar Assad está em Moscou, “exilado” depois de fugir das forças oposicionistas que tomaram Damasco. O futuro da Síria, entretanto, não promete ser brilhante, como um filme de Hollywood poderia querer retratar. Ao menos não no curto prazo, quando as incertezas ainda vão pairar sobre os sírios. Os ganhadores e perdedores da situação são, por enquanto e em maioria, as forças estrangeiras interessadas no território.

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A família Assad chegou ao poder em 1971, com o patriarca Hafez. Comandante da então poderosa força aérea síria, Hafez participou de uma série de golpes de Estado que alteraram a configuração do poder no país, até o golpe que o consagrou mandatário supremo sírio. Nominalmente, Hafez Assad era líder do Partido Baath sírio, o partido do socialismo secular pan-árabe. Na prática, entretanto, o ditador sírio abandonou algumas das principais bandeiras baathistas e partiu para uma simples ditadura de culto de personalidade.

Seu governo somou fracassos e vitórias na política externa, expandindo sua influência no Líbano e mantendo forte aliança com a União Soviética, enquanto sofreu derrotas perante Israel e sem conseguir capitalizar eventuais posturas “pró-Ocidente”, como o antagonismo perante Saddam Hussein. Seu governo se mantinha mantendo e explorando as divisões sectárias da sociedade síria, sendo a família Assad um exemplo da minoria influente dos alauitas, um ramo do xiismo islâmico.

Mural com a foto de Assad é cravejada de balas na Síria Foto: Omar Albam/AP

Hafez Assad morreu em 2000, sucedido por seu filho, Bashar Assad. Como em um conto antigo, Bashar não era o filho preferido para ser o sucessor. Esse cargo seria de Bassel Assad, que morreu em um acidente automobilístico em 1994. Bashar estudou medicina no exterior e era visto pelo pai como alguém inteligente e estudioso, mas que não teria as virtudes e a força necessárias para ser um ditador. Após a morte do irmão, entretanto, a decisão foi tomada.

Por anos, Bashar teve a imagem cultivada como sucessor, incluindo assumir postos na administração pública. O culto de personalidade continuava. Desde o início de seu governo, Assad enfrentou protestos e problemas, alguns decorrentes da percepção de que ele não contava com o mesmo grau de lealdade que seu pai em alguns setores do Estado. Em 2011, as manifestações no contexto da romanticamente chamada “Primavera Árabe” iniciaram um levante generalizado e ações externas contra seu governo.

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Treze anos depois, Assad parecia ter consolidado sua vitória na guerra civil, contanto com o apoio da Rússia, do Hezbollah e do Irã. Seu governo já era normalizado na Liga Árabe. E, subitamente, em três semanas, Assad caiu. Essa mais de década na história recente síria não foi um processo nem rápido, nem homogêneo e nem completamente orgânico. Diversos interesses e movimentos estrangeiros estão em ação, já que o território sírio é estratégico, por suas reservas de petróleo e por sua posição geográfica.

Perdas e ganhos

Nesse momento, os dois grandes vencedores da situação síria são a Turquia e Israel. O governo turco, inclusive, foi tema da mais recente coluna de nosso espaço. A Turquia é o principal apoiador do núcleo de grupos rebeldes que foi vitorioso, especialmente o Tahrir al-Sham, um grupo islamista com ligações à Al-Qaeda. Nas últimas semanas, o grupo busca uma ofensiva de imagem para melhorar sua imagem internacional, tentando transmitir a ideia de que supostamente seria um grupo “moderado” agora.

Se isso vai se mostrar verdade, é cedo para dizer. O fato é que a Turquia agora controla indiretamente a Síria e o maior grupo armado do território. Contará com isso para deter os grupos curdos sírios, vistos como uma ameaça existencial na ideologia de Estado turca. Israel, por sua vez, não queria a queda de Assad. Com essa realidade, entretanto, o país está capitalizando sua posição. Expandiu sua presença nas colinas de Golã e intensificou bombardeios aéreos contra arsenais do agora ex-Exército nacional sírio.

Ao fazer isso, Israel busca impedir que tais arsenais caiam nas mãos islamistas apoiadas pela Turquia. Curiosamente, em 2010, Israel esteve muito perto de um acordo com Assad pela normalização de relações e devolução do território das Colinas de Golã. Hoje, Israel sabe que demorará ao menos uma geração para um governo sírio que tenha força suficiente para uma negociação desse tipo, se é que isso vai acontecer. Como disse Netanyahu, a anexação das Colinas de Golã agora está consolidada.

Já o maior perdedor com a queda de Assad é a Rússia. Sim, o Irã também perde um aliado, mas a Rússia precisará revisitar toda sua estratégia global de projeção de força. As ações russas na África e no Oriente Médio dependiam das bases em território sírio, que tiveram que ser evacuadas. A Rússia já sinalizou querer desempenhar um papel de mediação no futuro sírio, inclusive por isso asilou Assad. Essa mediação é para tentar garantir o uso de tais bases. Podem até conseguir, mas, no momento, o revés é notório, depois do investimento de bilhões de dólares em esforços militares para manter Assad no poder. Tudo ruiu em semanas.

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Opinião por Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo é graduado em história pela USP, comentarista de política internacional e criador dos podcasts Xadrez Verbal e Fronteiras Invisíveis do Futebol, sobre política internacional e história

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