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Opinião | Trump está pronto para sacrificar a Ucrânia por questões muito menos nobres que as de Chamberlain

O que se desenha é um conflito congelado, com eventuais ganhos russos na Ucrânia e com os ucranianos com a economia em escombros; Trump vai bradar que fez o melhor acordo da História do universo

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Foto do author Filipe Figueiredo

A possibilidade de um acordo entre o governo Trump e a Rússia que reconheça o controle russo sobre territórios ucranianos gerou comparações com a histórica Conferência de Munique, em 1938. Naquela ocasião, a Tchecoslováquia foi retalhada e, no ano seguinte, teria seus territórios anexados pela Alemanha nazista, pela Polônia e pela Hungria. A comparação com a Ucrânia em 2025, entretanto, é míope, tanto sobre a História quanto sobre a atualidade.

A Tchecoslováquia foi traída pelo Reino Unido e pela França em 1938. Um país soberano e membro da então Liga das Nações foi retalhado e teve seus territórios distribuídos como espólios entre os vizinhos com governos abertamente ou quase fascistas. A Alemanha nazista, sob a justificativa de proteger os alemães étnicos dos Sudetos, anexou regiões ricas em minérios e, principalmente, onde estavam as principais fortificações tchecas.

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O então primeiro-ministro britânico, Neville Chamberlain, costuma ser lembrado como um ingênuo, alguém que teria sido passado para trás por Hitler e feito concessões quando deveria ter lutado. Essa imagem é injusta e desconexa com as pesquisas mais recentes, com documentos do governo britânico que se tornaram públicos apenas décadas depois do conflito. Principalmente, essa imagem foi alimentada por seu principal rival.

No caso, Winston Churchill, rival de Chamberlain pelo protagonismo no Partido Conservador, que herdaram essa rivalidade de suas famílias. Churchill, obcecado com sua imagem pública e com seu legado, autor da frase “a História será gentil comigo pois pretendo escrevê-la”, não hesitava em difamar os outros para parecer maior. Naquele contexto, parecer ser o líder de um Reino Unido em guerra, contra um suposto líder fraco.

Hoje, a imagem de Churchill continua inchada, com seus fracassos e perversidades deixados convenientemente de lado: Galípoli, as derrotas eleitorais, o uso de australianos e neozelandeses como bucha de canhão e a defesa aberta de uma política genocida na Índia são alguns dos exemplos. A questão é que Chamberlain não era o fracote ou o ingênuo que Churchill queria fazer parecer.

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Foto de 2018 mostra o presidente russo Vladimir Putin e o presidente dos EUA, Donald Trump, em uma entrevista coletiva conjunta na Finlândia Foto: Pablo Martinez Monsivais/AP, arquivo

Chamberlain sabia que o Reino Unido não estava pronto para uma guerra, depois de décadas de políticas desarmamentistas após a Grande Guerra. Ele sacrificou a Tchecoslováquia em um tabuleiro maior, para ganhar tempo. É possível escrever um longo texto sobre isso, mas Chamberlain, em suma, expandiu o alistamento e o orçamento militar e modernizou as forças, sob resistência de Churchill, especialmente a força aérea, que se provou essencial na guerra.

Não é possível comparar aquele contexto com o atual. Chamberlain, novamente, sacrificou a Tchecoslováquia para se preparar para uma guerra que duraria anos contra um inimigo totalitário que ele sabia que não ficaria satisfeito. Daí a astúcia de conseguir a assinatura de Hitler em um documento, para deixar claro ao seu público o que ocorria. Trump está pronto para sacrificar a Ucrânia por questões muito menos nobres.

Não existe solução militar simples para a guerra na Ucrânia, especialmente no que concerne à península da Crimeia. A Rússia é uma potência militar e não cansa de lembrar o mundo disso. Daí, entretanto, abandonar a Ucrânia, sob retóricas populistas de “eles nos devem quinhentos bilhões” ou “é tudo culpa de Biden”, vai um pélago. Para o autor da “arte da negociação”, começar um acordo abandonando suas posições não é nem um pouco inteligente.

Mais do que a Ucrânia, Trump está abandonando seus aliados europeus, causando pânico com uma guinada brusca na política externa de seu país. Está simplesmente cedendo e cedendo ao homem que ele talvez mais inveje no mundo, Vladimir Putin. A política anterior, de desgastar a Rússia e incentivar a indústria dos EUA via a ajuda militar aos ucranianos, era eticamente falida, mas ainda possuía algum sentido estratégico.

Trump não faz sentido, nesse caso, é apenas errático e sem fibra moral. Resta uma possibilidade apenas para que a atual concessão por Trump faça sentido, que é uma eventual troca. Os EUA cedem na Ucrânia enquanto a Rússia concede no Irã, deixando os iranianos mais isolados e em posição mais fraca de negociação perante os EUA e, indiretamente, perante Israel. Não há sinais públicos disso, entretanto, se trata de mera conjectura da coluna.

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O que se desenha no futuro próximo é um conflito congelado, com eventuais ganhos russos na Ucrânia e com os ucranianos com a economia em escombros. Os europeus buscarão preencher o vácuo deixado pelos EUA, com uma oportunidade para finalmente aprofundarem sua integração militar. Trump vai bradar que fez o melhor acordo da História do universo. E Chamberlain, infelizmente, continuará injustiçado em seu túmulo.

Opinião por Filipe Figueiredo

Filipe Figueiredo é graduado em história pela USP, comentarista de política internacional e criador dos podcasts Xadrez Verbal e Fronteiras Invisíveis do Futebol, sobre política internacional e história

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