Donald Trump novamente afirmou querer comprar a Groenlândia da Dinamarca, algo que já havia feito em seu primeiro mandato. Além de seu habitual estilo bravateiro e maximalista em suas propostas, dessa vez Trump afirmou “não descartar” o uso da força militar, o que provocou repercussões negativas. O interesse dos Estados Unidos no território não é novo e, aparentemente, será concretizado em breve, com consequências complexas.
A primeira questão é a menos debatida, mas, curiosamente, de primeira grandeza: os motivos ideológicos da eventual compra. A Groenlândia é parte do continente americano, embora, politicamente e no imaginário popular, ela seja ligada aos nórdicos e seus navegadores, por ser uma posse dinamarquesa. Desde as primeiras décadas pós-independência dos EUA, um dos pilares da política externa do país é a remoção da influência europeia do continente, conhecido como Doutrina Monroe, aquela do mote “América para os americanos”.
Essa remoção permite a consolidação de um virtual monopólio de poder dos EUA no hemisfério. Nessa política se encaixa a compra do Alasca, talvez o melhor referencial histórico para o que o governo Trump deseja com a Groenlândia. Também pode-se citar a compra em 1917, durante a 1.ª Guerra, das Índias Ocidentais Dinamarquesas, rebatizadas de Ilhas Virgens Americanas.
Naquela ocasião, a ideologia se somou à geopolítica, já que, durante a Primeira Guerra Mundial, expandir a segurança do Canal do Panamá era uma das prioridades do país. Cálculo similar é feito com a Groenlândia. Como a Terra não é plana, o Ártico foi a principal fronteira da Guerra Fria, ponto de contato direto aéreo e marítimo entre EUA e URSS, algo quase imperceptível quando olha-se em um mapa plano, e não um globo.
Seria pelo Ártico que viajariam os mísseis nucleares da Guerra Fria. No século 21, o oceano Ártico ganha uma importância geopolítica inédita, por ser, além da citada fronteira entre potências, fonte potencial de recursos naturais importantes. As reservas totais de petróleo do Ártico são estimadas em noventa bilhões de barris, mais que três vezes que todo o petróleo existente nos EUA.
Boa parte dessas reservas potencialmente estão em zonas econômicas exclusivas da Groenlândia, que também é rica em minerais que podem ser utilizados pelas indústrias farmacêuticas e bélicas, como ouro, zinco, urânio e terras raras. Na última década, esses recursos são alvo de interesses chineses cada vez maiores, e Pequim tem negociado com a Dinamarca para executar investimentos pesados na ilha.
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A navegação pelo Ártico também está se intensificando, devido ao degelo causado pelas mudanças climáticas. Rotas marítimas árticas ligariam a Europa ao Japão em tempo muito menor de viagem. Essas rotas são de grande interesse russo, que explora a viabilidade da expansão da navegação comercial ártica junto com a China, a nova e futura rival sistêmica dos EUA e grande obsessão de Donald Trump e seu círculo próximo.
Ou seja, o interesse dos EUA na Groenlândia se encaixa em premissas ideológicas da política externa do país, na busca por recursos naturais, na competição sistêmica com a China e também em disputas geopolíticas mais amplas, envolvendo a Rússia e os países nórdicos. Sob essa ótica, as ambições de Donald Trump fazem todo o sentido do mundo. Os problemas estão em como realizar isso e nas eventuais consequências.
As bravatas de Trump deixam explícito que, por mais justificado ou necessário que essa negociação possa ser, se trata do bom e velho imperialismo, à moda do século 21
O estilo maximalista de Trump causa ruídos de comunicação. Ele afirma que pode até invadir para forçar uma negociação que chegue ao “meio termo” que, na verdade, era a posição desejada desde o início. A Dinamarca, dona do território, é um aliado dos EUA na Otan, e se sente claramente desrespeitada, reagindo até com a mudança do brasão nacional, destacando a Groenlândia e as Ilhas Faroe.
Outro empecilho de uma eventual compra é o fato de que a população da Groenlândia já deixou claro em diversos votos que prefere a independência. Como justificar uma compra de território que solape a autodeterminação local? Finalmente, as bravatas de Trump deixam explícito que, por mais justificado ou necessário que essa negociação possa ser, se trata do bom e velho imperialismo, à moda do século 21.
Isso abre flancos exploráveis pelos rivais dos EUA. Se os EUA podem usar seu poder para anexar a Groenlândia, a China pode usar o mesmo discurso sobre Taiwan, assim como a Rússia parcialmente justifica sua invasão da Ucrânia com a invasão do Iraque pelos EUA, em 2003. Talvez o caminho mais adequado, na ótica dos EUA, fosse uma espécie de protetorado na ilha, mas isso requer mais diplomacia e menos ameaça.